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Colangite por IgG4 como diagnóstico diferencial do colangiocarcinoma hilar

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Relato de caso

Paciente de 50 anos de idade, obesa e diabética, iniciou quadro de mal estar, astenia e dor abdominal em hipocôndrio direito, sem perda ponderal, com piora progressiva ao longo de cerca de 40 dias. Na última semana a paciente evoluiu com síndrome colestática, com icterícia, colúria e acolia fecal e procurou pronto atendimento. Na investigação inicial foi verificada elevação de transaminases e enzimas canaliculares, além de hiperbilirrubinemia (15 mg/dL) às custas de bilirrubina direta.

Os exames de imagem (tomografia e ressonância magnética com colangiografia) evidenciaram dilatação de vias biliares intra-hepáticas (sobretudo à esquerda) com presença de espessamento na confluências dos ductos hepáticos, associada a estenose desta região, favorecendo a hipótese de um colangiocarcinoma hilar tipo IIIA de Bismuth-Corlette. Não havia sinais de metástases linfonodais ou à distância, nem invasões vasculares ou de outros órgãos, e a dosagem dos marcadores tumorais (CEA e Ca19.9) foram normais.

A equipe de cirurgia optou por drenagem transparieto-hepática para alívio da colestase com posterior programação cirúrgica de hepatectomia esquerda. Foi colocado um dreno transparietohepático de 12 fr no ramo posterior do hepático direito, com a extremidade distal internalizado para a luz duodenal (transpapilar), com alívio da icterícia.

A paciente foi então encaminhada para realização de procedimento endoscópico para diagnóstico histopatológico da lesão.

Ecoendoscopia

Primeiramente fizemos uma ecoendoscopia com punção da lesão do colédoco, com boa obtenção de material (foto).

Foto 1 – Imagem ecográfica da lesão

Foto 2 – punção ecoguiada

O resultado da punção evidenciou achados compatíveis com processo inflamatório agudo, acentuado, possivelmente com formação de abscesso, com abundante infiltrado neutrofílico, notando-se de permeio, ocasionais segmentos epiteliais mostrando alterações reativas evidenciadas pelo aumento da basofilia citoplasmática.

A paciente apresentou piora clínica evoluindo com quadro de febre, com leve elevação de bilirrubinas e leucocitose, sendo fechado diagnóstico de colangite e introduzida antibioticoterapia. 

Diante da piora clínica e da ausência do diagnóstico com punção ecoguiada foi optado pela realização de procedimento de CPRE com colangioscopia com Spyglass e biópsias da lesão.

Colangioscopia

Com o procedimento foi identificada, em topografia do colédoco proximal, presença de lesão intraductal elevada, de aspecto infiltrativo e inflamatório, com áreas de aspecto necrótico e presença de coágulos em sua superfície, que se estendia desde o colédoco proximal até próximo do ramo posterior do hepático direito, envolvendo o tronco do hepático esquerdo. Foram realizadas múltiplas biópsias com pinça SpyBite Max ®. Foi realizada também remoção do dreno transparietohepático e colocação de duas próteses biliares plásticas de 10 cm (10 Fr à direita e 8,5 Fr à esquerda), observando-se saída de grande quantidade de secreção purulenta após drenagem do hepático esquerdo.

Foto 3 – colangiografia demonstrando a estenose hilar

Foto 4 – colangiografia demonstrando o posicionamento do SpyGlass DS ®.

Foto 5 – aspecto final após colocação de próteses.

vídeo da colangioscopia

Anatomopatológico

A avaliação anatomopatológica das biópsias guiadas por colangioscopia demonstraram:

  • áreas de necrose e tecido viável com alterações reativas acentuadas do revestimento epitelial e estroma;
  • no estroma, edema, congestão vascular, proliferação de fibroblastos e infiltrado inflamatório misto acentuado, sem reação desmoplásica;
  • revestimento epitelial aparece hiperplásico e reativo, recobrindo a superfície e organizado em túbulos regulares, com formação de segmentos serrilhados ou eventualmente com aspecto degenerativo em túbulos com abscesso intraluminal e necrose do tecido adjacente;
  • epitélio viável apresenta atenuação celular e basofilia do citoplasma, mantendo polarização basal do núcleo, sem atipia nuclear.

O material foi enviado para análise imuno-histoquímica que evidenciou trechos de ulceração com crosta fibrino-leucocitária, intenso infiltrado inflamatório misto com plasmócitos, linfócitos e leucócitos polimorfonucleados, neoformação vascular e epitélio glandular adjacente com alterações reparativas, com o painel de marcadores demonstrado na foto 6.

Como comentários adicionais foi registrado o seguinte:

  • ausência de neoplasia nesta amostra;
  • observa-se borda de lesão ulcerada com importante infiltrado inflamatório misto, apresentando considerável componente plasmocitário;
  • observam-se áreas que demonstram subset de plasmócitos IgG4 positivos com mais de 10 células por campo microscópico de grande aumento;
  • nesta amostra não se observam outros fatores para diagnóstico morfológico de colangite por IgG4 como fibrose e alterações vasculares; neste caso, para firmar este diagnóstico é fundamental a correlação com dados clínicos, exames laboratoriais (como dosagem sérica de IgG4) e exames de imagem para definição diagnóstica. 

Foto 6 – tabela de marcadores da imuno-histoquímica.

Após o procedimento a paciente apresentou importante melhora clínica da dor e do quadro infeccioso.

A dosagem do IgG4 sérico foi negativa e, embora os achados da biópsia não apresentarem fibrose, o gastroenterologista assistente da paciente ficou inclinado a realizar um teste terapêutico com corticoterapia.

Discussão

A colangite associada ao IgG4 (CAI) é uma das manifestações de uma doença sistêmica autoimune que se caracteriza histologicamente com um infiltrado linfoplasmocítico com presença do IgG4.

As manifestações desta doença são amplas, podendo incluir a pancreatite autoimune do tipo 1, bem como nefrite tubulointersticial, sialoadenite, fibrose retroperitoneal e colangite esclerosante.

O diagnóstico depende de achados clínicos suspeitos, em conjunto com alterações em exames de imagem, dosagem sérica de IgG4 elevada e/ou presença de células positivas para IgG4 nas biópsias.

O espectro da colangite associada ao IgG4 envolve, em geral, estenoses biliareas intra e extra-hepáticas, e boa parte dos pacientes apresenta concomitantemente pancreatite autoimune do tipo 1 e níveis séricos elevados de IgG4. O uso empírico de corticoterapia pode ajudar a confirmar o diagnóstico se houver uma suspeição da doença. Alguns pacientes acabam sendo submetidos a ressecção cirúrgica por diagnóstico presumido de colangiocarcinoma.

Estudos descrevem uma alta associação entre a CAI e sintomas de icterícia obstrutiva, pancreatite autoimune, e aumento dos níveis séricos de IgG4 (1). A importância clínica da biópsia intraductal para o diagnóstico da CAI sempre foi visto como algo controverso antes da era da colangioscopia, com uma positividade para infiltrado linfoproliferativo para IgG4 (definido como mais do que 10 células positivas para IgG4 por campo de grande aumento) variando entre 18 e 88% e uma especificidade que se aproxima de 100% (1, 2-4). Até 10% dos pacientes com diagnóstico presumido de colangiocarcinoma e ausência de evidência de CAI que foram submetidos a ressecção em centros com experiência em cirurgia hepatobiliar são diagnosticados como doença hepatobiliar não maligna após a análise do espécime ressecado (5).

O tratamento empírico com corticoide pode ser utilizado para distinguir a CAI de outras causas de estenose biliar, porém realizado de forma seletiva e com acompanhamento próximo dos pacientes.

A colangite associada ao IgG4 pode mimetizar o colangiocarcinoma e boa parte destes pacientes apresentam elevados níveis de IgG4 sérico e segmentos longos de estenose biliar. Entretanto, em casos de obstrução hilar com dosagem sérica de IgG4 negativa, sem critérios definitivos para colangiocarcinoma a CAI deve ser considerada e a realização de biópsias guiadas por colangioscopia é atualmente o melhor método para obtenção de material para análise histopatológica para definição diagnóstica.

No caso apresentado, apesar da presença de mais do que 10 células positivas para IgG4 por campo de grande aumento na biópsia, a ausência de fibrose na espécime, bem como de outras manifestações sistêmicas associadas a doença por IgG4, gerou dúvida diagnóstica na equipe que acompanha a paciente. Nestes casos o tratamento empírico com corticoterapia pode ter grande importância propedêutica e terapêutica, devendo ser realizada em momento favorável, com o fator da colangite supurativa controlado e com uma boa drenagem biliar garantida.

Referências

  1. Ghazale A, Chari ST, Zhang L, et al. Immunoglobulin G4-associated cholangitis: clinical profile and response to therapy. Gastroenterology 2008;134:706-715.
  2. Naitoh I, Nakazawa T, Ohara H, et al. Endoscopic transpapillary intraductal ultrasonography and biopsy in the diagnosis of IgG4-related sclerosing cholangitis. J Gastroenterol 2009;44:1147-1155.
  3. Kawakami H, Zen Y, Kuwatani M, et al. IgG4-related sclerosing cholangitis and autoimmune pancreatitis: histological assessment of biopsies from Vater’s ampulla and the bile duct. J Gastroenterol Hepatol 2010;25:1648-1655.
  4. Zen Y, Nakanuma Y. IgG4 Cholangiopathy. Int J Hepatol 2012; 2012:472376
  5. Baskin-Bey ES, Devarbhavi HC, Nagorney DM, et al. Idiopathic benign biliary strictures in surgically resected patients with presumed cholangiocarcinoma. HPB (Oxford) 2005;7:283-288
  6. Zaydfudim VM, Wang AY, de Lange EE, Zhao Z, Moskaluk CA, Bauer TW, Adams RB. IgG4-Associated Cholangitis Can Mimic Hilar Cholangiocarcinoma. Gut Liver. 2015 Jul;9(4):556-60.

Como citar este artigo

Mendoça EQ. Colangite por IgG4 como diagnóstico diferencial do colangiocarcinoma hilar. Endoscopia Terapeutica 2023, Vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/colangite-por-igg4-como-diagnostico-diferencial-do-colangiocarcinoma-hilar/

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Graduação em Medicina pela UFG
Residência em Cirurgia Geral pelo HC-FMUSP  Residência em Endoscopia Digestiva pelo HC-FMUSP
Especialização em Endoscopia Oncológica pelo ICESP HC-FMUSP
Mestrado em Ciências em Gastroenterologia pela FMUSP
Membro Titular da SOBED


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