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Microlitíase biliar e dispepsia

por IGOR MENDONÇA PROENÇA
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Introdução

A microlitíase biliar é uma entidade identificada e descrita a relativamente pouco tempo, ainda sendo tema de muita controvérsia na literatura, desde sua definição e diagnóstico até sua relevância clínica e manejo. Com o aumento da disponibilidade do exame de ecoendoscopia e a consequente ampliação das indicações e solicitações deste exame, tornou-se uma condição cada vez mais identificada em uma população muito heterogênea de pacientes, que varia desde pacientes com obstrução das vias biliares, passando por pacientes com dor abdominal ou dispepsia, chegando até pacientes assintomáticos em exames “de rotina” ou indicados por outros motivos. Tal situação nos faz questionar, investigar e revisitar o conceito e o manejo desta condição que se torna cada vez mais presente no nosso dia a dia.

Já foi discutido anteriormente a questão da microlitíase biliar e do barro biliar neste portal, onde foram apontadas as diferenças ecográficas das duas entidades consideradas no nosso meio e possíveis condutas, bem como a relevância da microlitíase biliar no contexto da investigação etiológica da pancreatite aguda.

Neste artigo, avaliaremos as definições mais aceitas na literatura bem como as controvérsias ainda não resolvidas e discutiremos a relação entre a microlitíase biliar e sintomas dispépticos.

Definição

As definições para microlitíase biliar e barro biliar variam imensamente na literatura, e vão desde descrições distintas para as duas entidades, passando por autores que as tratam como sinônimos, até publicações que ignoram uma ou outra entidade.

Para tentar resolver esse problema facilmente identificável na literatura, Żorniak e col. (1) publicaram um consenso sobre o tema em 2023. O estudo contou com três principais etapas de elaboração: inicialmente foi realizada uma revisão sistemática da literatura que identificou 69 artigos originais e 26 artigos de revisão que definiam “microlitíase biliar” e “barro biliar”; em um segundo momento, 30 “experts” em ecoendoscopia foram consultados através de um questionário sobre o tema; por fim, as definições mais aceitas foram organizadas e revalidadas pelos autores, passando por uma última etapa de votação.

Para demonstrar a heterogeneidade na literatura, cito alguns dos descritores mais encontrados nesta revisão:

– Microlitíase biliar: “sinal/foco/forma hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior”, “sinal/foco/forma hiperecoica necessariamente com sombra acústica posterior”, “sinal/foco/forma hiperecoica necessariamente sem sombra acústica posterior”, “imagem ecogênica móvel sem sombra acústica posterior”.
Em relação ao tamanho, os estudos variaram desde <1mm até <10mm, porém a grande maioria definiu entre <3mm ou <5mm.

– Barro biliar: “substância fluida”, “nível fluido”, “múltiplos cálculos sem sombra acústica posterior”, “conteúdo em camadas na porção pendente da vesícula”, “conteúdo de baixa amplitude ecográfica”, “imagens hiperecoicas móveis sem combra acústica porterior”, “agregado hiperecoico sem sombra acústica posterior”, “material um pouco hiperecoico móvel”, “material ecogênico homogêneo”, “material ecogênico heterogêneo”.

Observa-se tanto uma sobreposição quanto uma troca ou mistura de definições entre as duas entidades na literatura especializada.

Com a difícil missão de determinar um consenso, os autores chegaram nas seguintes definições (original em inglês e respectiva tradução pelo autor deste artigo):

  • Microcálculo biliar: “calculi in the biliary tract and gallbladder of ≤5 mm in diameter with acoustic shadowing” / “cálculo nas vias biliares ou vesícula biliar com sombra acústica posterior com diâmetro menor ou igual 5mm”
  • Barro biliar: “Discrete, hyperechoic material inside the gallbladder or the bile duct, without acoustic shadowing, which sediments in the most dependent part of the gallbladder.” / “Material discretamente hiperecoico, sem sombra acústica posterior, com sedimentação na parte mais pendente da vesícula biliar”
  • Cálculo biliar: “calculi in the biliary tract and gallbladder of >5 mm in diameter with acoustic shadowing” / “cálculo nas vias biliares ou vesícula biliar com sombra acústica posterior com diâmetro maior que 5mm”

Em outro trabalho, Quispel e col. (2) estudaram o grau de concordância entre ecoendoscopistas em relação a microlitíase biliar e barro biliar. Eles avaliaram a concordância entre 41 ecoendoscopistas “experts” utilizando 30 vídeos. As definições aceitas neste trabalho foram (original em inglês e tradução do autor deste artigo):

  • Barro biliar (“sludge”): “Layered, cloud shaped, mobile echoic bile duct content, without acoustic shadowing” / “conteúdo ecogênico móvel em camadas sem sombra acústica posterior”
  • Microlitíase biliar (“microlithiasis”): “Hyperechoic circumscript bile duct content, < 3mm with or without acoustic shadowing” / “imagem hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior menor que 3mm”
  • Cálculo biliar (“stones”): “Hyperechoic circumscript bile duct content, ≥ 3mm with or without acoustic shadowing” / “imagem hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior maior ou igual a 3mm”

Neste estudo, houve uma concordância interobservador considerada moderada para um ou mais cálculos biliares – kappa de Fleiss (IC95%) 0,46 (0,13-0,78) -, fraca para microlitíase – kappa de Fleiss (IC95%) 0,25 (0,07-0,43) – e muito fraca para barro biliar – kappa de Fleiss (IC95%) 0,16 (0,07-0,25).

Em nosso meio, tendemos a definir de forma diferente tanto do consenso publicado quanto do estudo de Quispel e col., como demonstrado no artigo publicado previamente (“Microcálculos e barro biliar – Quais seus valores para a prática clínica?”) e no último manual de ecoendoscopia da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (SOBED) (3).

Microcálculos/microlitíase: imagem móvel, hiperecoica, sem sombra acústica posterior e ≤3mm

Barro biliar: conteúdo ecogênico móvel, sem sombra acústica posterior, com formação de nível.

Cálculo: imagem hiperecoica com sombra acústica posterior, independentemente do tamanho (podem ser chamados de cálculos pequenos se menores que 5mm).

No entendimento do autor deste artigo, as definições que utilizamos no nosso meio apresentam maior correlação com os achados ecográficos e com os diferentes perfis de pacientes. Porém, com a publicação do consenso, caso a comunidade de ecoendoscopistas passe a utilizar a classificação proposta, a tendência será unificar os achados que hoje consideremos em nosso meio “microlitíase biliar” e “barro biliar” denominando ambos como “barro biliar”, enquanto o termo “microlitíase biliar” será utilizado para cálculos pequenos ≤5mm.

De qualquer forma, o mesmo consenso fez um levantamento retrospectivo que mostrou que não há diferença em relação a gravidade da pancreatite aguda biliar, independente de qual entidade biliar (cálculo, microcálculo ou barro) esteja relacionada ao evento, e alguns autores consideram que barro biliar e microlitíase biliar compartilham a mesma significância clínica (4).

Por fim, acreditamos que ainda haverá discussões na literatura para estabelecimento das definições para que haja uma melhor comunicação tanto entre os ecoendoscopistas, quanto entre médicos assistentes/solicitantes, e também na própria literatura, afim de homogeneizar a nomenclatura para estudos futuros. Dessa forma, até uma pacificação sobre o tema na literatura, sugere-se aos ecoendoscopistas descreverem os achados com precisão no corpo do laudo e realizar adequada documentação de imagens, para que o médico assistente/solicitante tenha ferramentas para interpretar corretamente os achados e tomar as melhores condutas cabíveis em cada caso, independente da definição utilizada na conclusão do laudo.

Microlitíase biliar e sintomas dispépticos

Como comentado na introdução deste artigo, com o aumento da disponibilidade da ecoendoscopia, os pedidos de exame para pacientes com sintomas dispépticos variados se tornaram parte importante da agenda de ecoendoscopia nos grandes centros, com identificação de “microcálculos/barro biliar” em um amplo perfil de pacientes e levando muitas vezes a indicação de colecistectomia. Tal cenário nos faz questionar o papel da ecoendoscopia para este perfil de pacientes, a indicação da colecistectomia e a relação com os sintomas apresentados.

Montenegro e col. (4) estudaram retrospectivamente pacientes com sintomas dispépticos variados, encaminhados para realização de ecoendoscopia após resultados negativos para litíase biliar por ultrassonografia abdominal, que foram diagnosticados com microlitíase e/ou barro biliar na ecoendoscopia e submetidos a colecistectomia. Eles excluíram pacientes assintomáticos e pacientes que tiveram qualquer complicação relacionada a litíase biliar (pancreatite, colangite, colestase ou colecistite).

Neste artigo, os autores utilizaram a seguinte definição (original em ingês e tradução do autor deste artigo):
            – Minilithiasis and/or biliary sludge (minilitíase e/ou barro biliar): “the presence of isoechoic and/or hyperechoic focus without an acoustic shadow less than 5 mm, which could be viewed with or without a massage in the epigastrium or right hypochondrium” / “presença de focos isoecoicos e/ou hiperecoicos sem sombra acústica posterior, menores que 5mm, que podem ser visualizados com ou sem compressão do epigástrio ou hipocôndrio direito”

A partir de uma base de dados de 1121 pacientes que realizaram ecoendoscopia entre os anos de 2014 e 2018, foram incluídos 50 pacientes compatíveis com os critérios de inclusão.

Dentre os sintomas relatados, 58% (29/50) apresentavam cólica biliar típica e 42% (21/50) apresentavam sintomas atípicos, sendo estes: dor no quadrante superior direito (24%), epigastralgia + dor no quadrante superior direito (2%), epigastralgia + náuseas/vômitos (6%), epigastralgia isolada (2%), dor abdominal difusa com ou sem distensão (8%).

Setenta porcento dos pacientes (35/50) tiveram remissão dos sintomas após a colecistectomia. No grupo dos pacientes com cólica biliar típica, a remissão foi de 86,2% enquanto no grupo de pacientes com sintomas atípicos foi de 47,6%. No grupo de pacientes com sintomas atípicos, houve diferença importante na resposta ao tratamento de acordo com o sintoma apresentado, notando-se remissão na maior parte dos pacientes com dor no quadrante superior direito e em nenhum dos 4 pacientes com dor abdominal difusa. A tabela abaixo resume os sintomas pré e pós-colecistectomia (tabela 2 do artigo original).

Foi identificada apenas uma (2%) complicação com necessidade de reabordagem pós colecistectomia devido a hemoperitônio e 18% (9/50) de pacientes que evoluíram com diarreia pós colecistectomia.

Os autores concluem que pacientes com quadro de cólica biliar típica com presença de microcálculos/barro biliar à ecoendoscopia devem ser submetidos à colecistectomia, enquanto pacientes com sintomas atípicos devem ser amplamente investigados para descartar outras etiologias antes de serem submetidos a colecistectomia, sendo esta avaliação a chave para uma adequada correlação entre os sintomas e os achados ecográficos e consequente resolução dos sintomas após colecistectomia.

Jang e col. (5) estudaram o uso de medicações litolíticas (Ácidos Quenodesoxicólico e Ursodesoxicólico) para tratamento de pacientes com diagnóstico de dispepsia funcional refratária (DFR). A DFR é definida como sintomas dispépticos sem causa definida, persistentes após tratamento com sintomáticos, sendo difícil a diferenciação entre dispepsia funcional e dispepsia biliar em muitos casos.

Neste estudo prospectivo não-randomizado simples cego, foram incluídos 37 pacientes com diagnóstico de DFR e com exames de Endoscopia Digestiva Alta (EDA), ultrassom de abdome e exame de contratilidade da vesícula biliar normais. Importante notar que não foi realizada ecoendoscopia nos pacientes deste estudo. Foi utilizado uma escala de sintomas chamada de “Escala de sintomas globais de 7 pontos” (“7-point global symptom scale”), que relaciona os sintomas dispépticos com a severidade e impacto na vida do paciente, na qual 1 ponto o paciente refere não ter problemas com os sintomas dispépticos e 7 o paciente apresente um problema muito severo que interfere e limita as atividades diárias. Os sintomas relatados foram dor epigástrica, queimação epigástrica, saciedade precoce e empachamento pós-prandial.

Após 12 semanas de tratamento, a média da escala de sintomas caiu de 5,6 para 2,6, sendo que 94,6% (35/37) referiram algum grau de melhora dos sintomas e apenas 5,4% (2/37) não apresentaram nenhuma melhora.

Os autores concluem que grande parte dos pacientes diagnosticados com DFR podem ter na realidade dispepsia biliar, podendo ser beneficiados com o tratamento proposto com litolíticos. Eles ainda pontuam que a microlitíase biliar não foi adequadamente avaliada no estudo, podendo estar presente em parte ou totalidade dos pacientes que responderam ao tratamento.

Avaliando em conjunto os estudos apresentados, podemos inferir que a microlitíase/barro biliar deve ser considerada no diagnóstico diferencial em pacientes com dispepsia, porém o sucesso do tratamento – seja com colecistectomia ou com litolíticos – depende do tipo de sintoma apresentado e a exclusão de outras etiologias.

É importante considerar que são estudos de baixa qualidade metodológica para avaliar a eficácia do tratamento, mas que apontam para uma possibilidade que deve ser considerada e melhor estudada, preferencialmente com ensaios clínicos randomizados.

Conclusão

A microlitíase biliar é um tema ainda muito controverso, com divergências que vão desde a definição até o tratamento, principalmente quando relacionada a sintomas dispépticos.

Em relação a definição de microlitíase e barro biliar, há um debate que teremos que percorrer para chegarmos a conclusões mais consensuais e compatíveis com os achados do dia a dia. Considerando a literatura disponível, que se mostra ainda muito controversa apesar do esforço em estabelecer um consenso, cabe ao ecoendoscopista descrever e documentar com precisão os achados para que o médico interlocutor consiga identificar corretamente a entidade descrita, independente da definição utilizada.

Em relação a microlitíase/barro biliar e os sintomas dispépticos, alguns estudos de baixa qualidade metodológica sugerem a possibilidade de correlação entre tais entidades e sintomas dispépticos, com possível melhora dos sintomas em parte dos pacientes após colecistectomia ou tratamento com litolíticos. Entretanto é fundamento ressaltar que cada paciente deve ser avaliado com parcimônia, considerando os sintomas apresentados e realizando ampla investigação de outras etiologias mais prováveis, especialmente quando sintomas considerados atípicos para doença biliar são os mais importantes.

Referências

  1. Żorniak, M., Sirtl, S., Beyer, G., Mahajan, U. M., Bretthauer, K., Schirra, J., Schulz, C., Kohlmann, T., Lerch, M. M., Mayerle, J., & LMU Microlithiasis Expert Survey Team (2023). Consensus definition of sludge and microlithiasis as a possible cause of pancreatitis. Gut72(10), 1919–1926. https://doi.org/10.1136/gutjnl-2022-327955
  2. Quispel, R., Schutz, H. M., Hallensleben, N. D., Bhalla, A., Timmer, R., van Hooft, J. E., Venneman, N. G., Erler, N. S., Veldt, B. J., van Driel, L. M. J. W., & Bruno, M. J. (2021). Do endosonographers agree on the presence of bile duct sludge and the subsequent need for intervention?. Endoscopy international open9(6), E911–E917. https://doi.org/10.1055/a-1452-8919
  3. De Araújo W.C., Nahoum R.G., Como eu faço: pesquisa de pancreatite idiopática. In: Salomão B.C., Moura E.G.H.M. Ecoendoscopia como eu faço? / núcleo de ecoendoscopia SOBED – São Paulo : Editora dos Editores, 2023. Cap. 5 p.87-96
  4. Montenegro, A., Andújar, X., Fernández-Bañares, F., Esteve, M., & Loras, C. (2022). Usefulness of endoscopic ultrasound in patients with minilithiasis and/or biliary sludge as a cause of symptoms of probable biliary origin after cholecystectomy. Gastroenterologia y hepatologia45(2), 91–98. https://doi.org/10.1016/j.gastrohep.2021.03.010
  5. Jang, S. I., Lee, T. H., Jeong, S., Kwon, C. I., Koh, D. H., Kim, Y. J., Lee, H. S., Do, M. Y., Cho, J. H., & Lee, D. K. (2022). Efficacy of Chenodeoxycholic Acid and Ursodeoxycholic Acid Treatments for Refractory Functional Dyspepsia. Journal of clinical medicine11(11), 3190. https://doi.org/10.3390/jcm11113190

Como citar este artigo

Proença IM. Microlitíase biliar e dispepsia. Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/microlitiase-biliar-e-dispepsia/

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Médico e Cirurgião Geral pela Escola Paulista de Medicina/UNIFESP.
Endoscopia Digestiva pelo HC-FMUSP.
Especialização em Endoscopia Biliopancreática no HC-FMUSP.
Médico Assistente do Serviço de Endoscopia do HC-FMUSP.
Mestre em Ciências em Gastroenterologia pela FMUSP.


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2 Comentários

IGOR PROENÇA
IGOR PROENÇA 14/09/2024 - 11:28 am

Obrigado Bruno!! Realmente a sensibilidade para o diagnóstico de microlitíase é operador dependente, e há um ajuste pessoal em relação a essa sensibilidade, mas que de forma prática é difícil de ser padronizado! Acredito que o ponto chave nessa questão é a indicação e a correlação dos achados com os sintomas pelo médico assistente! Abraço!

Bruno Martins
Bruno Martins 31/07/2024 - 6:46 pm

Excelente revisão Igor, super completa! Acho importante seu alerta de tentar ser o mais descritivo possível nos nossos laudos. Na minha opinião pessoal, acho que existe uma certa tendência do ecoendoscopista em superdiagnosticar a microlitíase o que pode levar a indicações cirúrgicas desnecessárias. Abs.

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