Paciente sexo feminino, 54 anos, com antecedentes de transtorno depressivo e dislipidemia, iniciou em novembro de 2019 quadro de icterícia, colúria e hipocolia fecal, sem dor abdominal, febre ou perda de peso. Etilista de 5 doses/semana e tabagista com baixa carga tabágica (2 anos/maço). Fazia uso de sertralina há 2 anos e havia iniciado o uso de sinvastatina em outubro de 2019, tendo interrompido o uso quando ficou ictérica.
- Exames laboratoriais (janeiro/2020): AST: 70/ ALT: 24/ Fosfatase alcalina: 552 (referência: <110)/ Gama-GT: 706/ Bilirrubinas: 4,9 (Direta: 3,3)/ Alb: 3,1/ INR: 1,0.
- Sorologias virais e autoanticorpos negativos, incluindo anti-mitocôndria.
- Colangiorressonância (dezembro/2019): fígado com redistribuição volumétrica e sinal heterogêneo, com vesícula e vias biliares sem alterações.
Feita hipótese de lesão hepática induzida por sinvastatina e optado por seguimento clínico-laboratorial.
Houve persistência do quadro, sendo realizada ecoendoscopia em julho de 2020 para afastar causas obstrutivas, com achado de região hipoecogênica, heterogênea, limites irregulares, medindo 2,5 x 1,5 cm na cabeça pancreática (Figura 1), sem dilatação de colédoco à montante (5,8 mm).
Realizada punção com agulha de biópsia (FNB) de 20G da lesão pancreática e, no mesmo procedimento, biópsia de lobo esquerdo hepático (Figura 2). Para a biópsia hepática, foi utilizada também uma agulha de FNB de 20G, 2 passagens, com 3 oscilações lentas em cada, sem uso de vácuo. Obtida quantidade satisfatória de material (Figura 3). Não houve intercorrências durante ou após o procedimento.
Anatomopatológico da lesão pancreática revelou tecido acinar pancreático sem atipias e do fígado hepatopatia crônica colestática padrão biliar, com fibrose grau 2 e colestase moderada/acentuada, compatível com ação medicamentosa.
Iniciado uso de ácido ursodesoxicólico, com melhora inicial do quadro clínico-laboratorial.
Discussão
A biópsia hepática é ferramenta útil no diagnóstico e estadiamento de doenças do fígado como hepatites virais, doença hepática gordurosa associada a disfunção metabólica e hepatopatias autoimunes. Apesar do avanço de técnicas não invasivas como a elastografia hepática, estas permitem o estadiamento apenas do grau de fibrose, não fornecendo dados importantes para confirmação etiológica a avaliação do grau de atividade inflamatória, por exemplo.
As vias mais utilizadas para biópsia hepática são a percutânea, cirúrgica e transjugular. Cada uma delas possui limitações e riscos importantes como dor abdominal, sangramento, complicações da anestesia geral (biópsia cirúrgica) e alto custo (biópsia transjugular).
A biópsia hepática por ecoendoscopia vem ganhando espaço nos últimos anos, com publicações recentes de séries de casos com mais de 200 pacientes e metanálises incluindo mais de 400 pacientes. Tem como potenciais vantagens:
- Maior conforto para o paciente.
- Maior facilidade técnica em pacientes obesos (comparada com a via percutânea).
- Possibilidade de avaliação endoscópica simultânea para rastreamento de varizes.
- Realização simultânea de medida do gradiente de pressão venosa hepática por ecoendoscopia.
A eficácia em se obter material adequado para análise histológica na biópsia hepática por ecoendoscopia é de 93,9 a 100%. O comprimento médio total dos fragmentos obtidos nos diferentes estudos é de 2,4 a 5,5 cm (com fragmentos únicos de 0,4 a 1,1 cm) e o número médio de espaços porta obtidos de 21 a 42. A biópsia dos dois lobos hepáticos está associada a maior comprimento da amostra e maior número de espaços porta.
Em relação às complicações
- O índice médio dos estudos é de 2,3%, que é comparável àquele descrito para os outros métodos de biópsia hepática.
- O evento adverso mais comum é a dor abdominal (2 a 15%), na quase totalidade dos casos leve e de resolução espontânea.
- Há descrição de sangramento em cerca de 1,2% dos pacientes e raros casos de febre e sangramento fatal (este último ocorrido em um paciente crítico).
A biópsia hepática por ecoendoscopia pode ser feita com agulhas de punção aspirativa (FNA) de 19G, bem como agulhas de FNB de 19G e 22G, com índice de sucesso semelhante. A punção pode ser feita no lobo hepático esquerdo (via transgástrica) e/ou direito (via transduodenal) geralmente sem vácuo, 1 a 3 passagens, 3 a 4 oscilações, utilizando-se o Doppler para evitar vasos no trajeto. A retirada do fragmento da agulha pode ser feita com estilete ou flush com heparina, com cuidado para não curvar a agulha e fragmentar a amostra, que deve ser colocada em formalina 10%.
A principal limitação para a maior utilização da biópsia hepática por ecoendoscopia no Brasil é seu maior custo comparado à via mais utilizada (percutânea). Porém, em casos em que a ecoendoscopia está indicada por outros motivos (como o caso em questão) ou quando outras vias não são possíveis (obesidade grau 3, por exemplo), esta via parece ser factível e segura.
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Referências
- Dellatore P, Sarkar A, Rustgi VK et al. REVIEW OF ENDOSCOPIC ULTRASOUND GUIDED LIVER BIOPSY: A MULTICENTER EXPERIENCE. Pôster, DDW 2020.
- Hasan MK, Kadkhodayan K, Idrisov E et al. Endoscopic ultrasound-guided liver biopsy using a 22-G fine needle biopsy needle: a prospective study. Endoscopy 2019;51:818-824.
- Mohan BP, Shakhatreh M, Garg R et al. Efficacy and safety of EUS-guided liver biopsy: a systematic review and meta-analysis. Gastrointest Endosc 2019;89:238-46
- Bazerbachi F, Vargas EJ, Matar R et al. EUS-guided core liver biopsy sampling using a 22-gauge fork-tip needle: a prospective blinded trial for histologic and lipidomic evaluation in nonalcoholic fatty liver disease. Gastrointest Endosc 2019;90:926-32.
Especialista em Gastroenterologia Clínica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Doutorado em Ciências em Gastroenterologia na USP.
Membro com Comitê Diretor do Grupo de Interesse Especial em Hipertensão Portal da American Association for the Study of Liver Diseases (AASLD)