Sedação é um importante componente para os procedimentos endoscópicos. Melhora a satisfação do paciente e minimiza o risco de eventos adversos por evitar os movimentos involuntários que interferem nos procedimentos endoscópicos.
Recentemente, em virtude da pandemia, os estoques de sedativos atingiram níveis críticos. Assim, o pouco que sobrou foi priorizado para a UTI e pronto-socorro. Muitos serviços de endoscopia ficaram sem ou com muito pouco propofol disponível. Portanto, foi natural a busca por alternativas para diminuir a dose ou mesmo substituir o propofol.
Na última edição da Gastrointestinal Endoscopy, Kamal et al publicaram uma revisão sistemática e metanálise sobre a eficácia e segurança da lidocaína endovenosa. A principal conclusão do trabalho foi que a lidocaína EV diminui a dose do propofol. E, apesar de não haver diferença estatística na incidência de efeitos adversos gerais, o “diamante” ficou na linha para ser favorável ao grupo suplementação com lidocaína. E, considerando apenas a incidência de movimentos involuntários, esse foi menor no grupo com lidocaína associada. Outros trabalhos também mostraram previamente que o uso de lidocaína diminui a dor da injeção do propofol.
Entre as referências desta revisão, um artigo que vale a leitura é o de Foster e colaboradores, que demonstraram que a infusão de lidocaína reduz em 50% a dose de propofol durante a colonoscopia e também a diminuição da dor pós-procedimento. A explicação, para esse resultado, é que a lidocaína atua em receptores de nocicepção ativados durante a distensão do cólon. Outro efeito da lidocaína é que ela potencialmente melhora a resposta ventilatória ao CO2, mas esse benefício teórico não foi demonstrado na prática clínica (menor incidência de hipoxia).
Outro ponto importante é que a lidocaína não é livre de efeitos colaterais, assim como toda medicação. Felizmente, a maioria desses efeitos são leves e incluem: gosto metálico, parestesia na língua e borramento da visão (quase todos os pacientes têm pelo menos um desses sintomas). Contudo, devemos ficar atentos a eventos mais graves, sobretudo arritmias. Por esse motivo, a lidocaína é contraindicada em paciente com bradicardia (FC < 50bpm) e deve não ser usada ou pelo menos com dose reduzida em pacientes que fazem uso de betabloqueadores, bloqueadores de canal de cálcio e amiodarona. Especial atenção também para pacientes com insuficiência hepática e renal.
O que você precisa mesmo é substituir, já que você não tem mais nenhum propofol. Uma droga promissora, que inclusive está no último Guideline Americano de Sedação, é a difenidramina. Não confunda com dimenidrinato (todo mundo faz isso). Dimenidrinato é o dramin®; e o nome comercial, mais comum, da difenidramina é o difenidrin®. A difenidramina é um anti-histamínico, bloqueador de receptores H1, de primeira geração, com atividade anticolinérgica, indicado para prevenção e tratamento de reações alérgicas. É contraindicado para pacientes com asma aguda, hipertrofia prostática sintomática e insuficiência hepática. O estudo de Raymond et al demonstrou que o uso de 50 mg de difenidramina, antes da sedação com midazolam e opioide, diminuiu as doses dessas medicações e aumentou a satisfação do paciente (menor dor, maior amnesia e maior desejo de repetir o exame) quando comparado ao placebo para a realização de colonoscopias. Tanto médicos quanto enfermeiras acharam que a sedação ficou melhor no grupo com difenidramina. Não houve diferença no tempo de recuperação nem na incidência de eventos adversos entre os grupos.
Mesmo com a melhora dos dados da Covid, os estoques podem demorar a serem repostos, e uma terceira onda também não é tão improvável assim. Por outro lado, mesmo depois que a rotina volte ao “normal”, depois da pandemia, alguns fundamentos deste post podem ainda ser úteis.
Receita de Bolo (nesta ordem)
- Difenidramina 50 mg: diluir em 10 ou 20 ml (fazer lento, se fizer rápido, dá hipotensão);
- Lidocaína 2% sem vasoconstrictor dá 20 mg por ml (não precisa diluir);
- 1 ml para quem tem menos de 40 kg;
- 2 ml para pacientes entre 40-60 kg;
- 3 ml para pacientes com mais de 60 kg;
- Fentanil 50 mcg (dose individualizada);
- Midazolam 5 mg (dose individualizada);
- Esperar 3 minutos e ver se paciente responde.
Cuidados e conselhos
- Apesar da dose dos trabalhos em endoscopia relatarem doses de 2 mg ou mesmo 4 mg/kg, não entre nessa. Na prática, a lidocaína, mesmo em doses bem menores (0,5 mg/kg), pode ser benéfica;
- Outras drogas, como o droperidol e quetamina, podem até ser úteis, mas, pelo risco de efeitos adversos e minha falta de experiência, não recomendo;
- Não fazer difenidramina em asmáticos e pacientes com DPOC;
- Não fazer lidocaína em pacientes tomando propranolol e pelo menos diminuir a dose se estiver tomando carvedilol, amlodipina e nifedipina;
- Começar com pacientes ASA I e II;
- Conversar com os anestesiologistas e contar seus planos;
- Ler as bulas das medicações;
- Paciência, o esquema é bom, mas leva um tempinho.
Como citar este artigo
Lenz L. Estoques do sedativo branco estão no vermelho? Alternativas para economizar e substituir o profofol.. Endoscopia Terapêutica; 2021. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/estoques-do-sedativo-branco-estao-no-vermelho-alternativas-para-economizar-e-substituir-o-profofol
Leitura recomendada
- Kamal et al. Efficacy and safety of supplemental intravenous lidocaine for sedation in gastrointestinal endoscopic procedures: systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Gastrointestinal Endoscopy, 2021.
- Early at al. Guidelines for sedation and anesthesia in GI endoscopy. Gastrointestinal Endoscopy, 2018
- Forster et al. Intravenous infusion of lidocaine significantly reduces propofol dose for colonoscopy: a randomized placebo-controlled study. British Journal of Anaesthesia, 2018
- Raymond et al. Diphenhydramine as an adjunct to sedation for colonoscopy: a double-blind randomized, placebo-controlled study. Gastrointestinal Endoscopy, 2006.
- https://consultaremedios.com.br/cloridrato-de-difenidramina/pa
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Pós Doutorado pela USP
Doutor em Gastroenterologia pela UNIFESP.
Médico assistente do ICESP.
Médico endoscopista do Grupo Fleury
Emerging Star pela WEO