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A papilotomia antes da passagem de prótese para drenagem biliar é eficaz em prevenir pancreatite pós-CPRE?

por Livia Arraes
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Visto que a eficácia da papilotomia para prevenir pancreatite pós-CPRE antes da passagem de prótese para drenagem biliar não está bem estabelecida, este estudo controlado e randomizado japonês publicado em Agosto de 2021 objetivou avaliar o efeito de realizar papilotomia antes da passagem de prótese biliar na ocorrência dessa complicação.

Risk of pancreatitis following biliary stenting with/without endoscopic sphincterotomy: A randomized controlled trialClinical Gastroenterology and Hepatology
DOI: 10.1016/j.cgh.2021.08.016

Introdução

A pancreatite pós-CPRE ocorre em cerca de 3-4% em paciente submetidos a colocação de prótese para drenagem biliar, com uma taxa de mortalidade de 0,7%.

Nessas situações, a papilotomia antes da colocação da prótese é realizada para prevenir pancreatite pós-CPRE, por separar os orifícios do ducto pancreático principal e biliar, o que provavelmente diminui a pressão no orifício do ducto pancreático.

Embora estudos prévios tenham mostrado que a papilotomia nessas situações previne a pancreatite pós-CPRE, tiveram limitações por serem retrospectivos e com amostras pequenas. Por outro lado, um outro estudo não mostrou eficácia da papilotomia em pacientes com obstrução biliar distal submetidos a passagem de prótese de 10 fr. Os autores realizaram então um estudo multicêntrico controlado e randomizado para avaliar o efeito da papilotomia antes da colocação da prótese com relação a pancreatite pós-CPRE. 

Além disso, eles consideraram o cenário de não-inferioridade como ideal porque a papilotomia é geralmente considerada como método padrão-ouro na prática clínica. Então, o estudo objetivou avaliar prospectivamente a não-inferioridade de não fazer a papilotomia em relação a fazer a papilotomia antes de colocação de prótese em pacientes com estenose biliar de qualquer etiologia.

Material e métodos

Estudo realizado em 26 centros com alto volume no Japão. Entre fevereiro de 2017 e julho de 2020, os autores recrutaram pacientes com obstrução biliar distal ou hilar de qualquer etiologia que necessitassem de descompressão biliar com passagem de prótese por via endoscópica. Nesse estudo, obstrução distal foi definida como aquela localizada a jusante do ducto cístico e a obstrução hilar, a montante do cístico.  Foram alocados 370 pacientes (185 em cada grupo).

Os critérios de inclusão foram: 1) diagnóstico clínico de obstrução biliar confirmado por imagem (TC, RM, US ou ecoendoscopia), 2) necessidade de drenagem biliar endoscópica com prótese plástica ou dreno nasobiliar, 3) papila duodenal maior sem manipulação prévia, 4) idade >20 anos. Pacientes com colangite grave, pancreatite aguda, história de CPRE prévia, entre outros, foram excluídos.

Todos os procedimentos foram realizados por endoscopistas com mais de 10 anos de experiência em CPRE ou que estavam em treinamento sob rigorosa supervisão. Após a canulação seletiva da via biliar e colangiografia, os participantes foram então formalmente registrados e randomizados nos grupos papilotomia ou não-papilotomia. As papilotomias foram realizadas utilizando a técnica padrão, com corrente blend. Em ambos os grupos, próteses de 7, 8,5 ou 10 Fr ou drenos nasobiliares (em pacientes que necessitavam de drenagem em dois segmentos) de 5,6 ou 7 fr foram usados para drenagem biliar.

Foram registrados eventos adversos ao procedimento (pancreatite, colangite, colecistite, perfuração, sangramento e outros eventos com risco de vida que ocorreram dentro de 30 dias.

Resultados

Entre os 185 pacientes do grupo não-papilotomia, 175 terminaram o acompanhamento e no grupo papilotomia, 181 pacientes.

A etiologia mais comum em ambos os grupos foi câncer de pâncreas. A localização da estenose não diferiu em ambos os grupos (p=0,911). Em relação a característica dos procedimentos, uma proporção significativamente maior de pacientes do grupo não-papilotomia foram submetidos a colocação de prótese pancreática (28/185 vs 14/185; p=0,022). Não houve diferença significativa entre os grupos em relação a outras características do procedimento, incluindo uso de AINE via retal (p=0,729). Em ambos os grupos, a prótese mais usada foi de 7 fr.

  • Desfecho primário

Pancreatite pós-CPRE ocorreu em 36 pacientes no grupo não-papilotomia (20,6%; 26 leves, 5 moderadas 3 e 5 graves) e em 7 pacientes no grupo papilotomia (3,9%; 5 leves e 2 graves), com p <0,001. Houve uma diferença de 16,7% na incidência de pancreatite entre os grupos (IC 95% 10,1% – 23,3%). Isto indica que a diferença entre os dois grupos no IC 95% não estava dentro da margem de não-inferioridade definida de 6%; isto é, a não-inferioridade da não realização de papilotomia em relação a papilotomia antes da colocação da prótese não foi atestada. Eles obtiveram um resultado similar no cenário intenção de tratar (15,7%; IC95% 9,3% – 22%).

  • Desfechos secundários

Não houve diferença significativa entre as incidências de colangite, colecistite, perfuração e recorrência da obstrução entre os grupos. Entretanto, a ocorrência de sangramento foi significativamente maior no grupo papilotomia que no grupo não-papilotomia (8/181 vs 1/175, p=0,048). Entre os 8 casos de sangramento no grupo papilotomia, um foi considerado evento adverso grave porque o paciente necessitou de terapia intensiva e múltiplas intervenções para hemostasia.

  • Análise de subgrupos

Entre os pacientes com câncer de pâncreas ou dilatação do ducto pancreático principal (diâmetro > 6mm), não houve diferença significativa na incidência de pancreatite entre os grupos papilotomia e não-papilotomia. Por outro lado, independente da localização da estenose, a ocorrência de pancreatite foi significativamente maior no grupo não-papilotomia. Em relação ao diâmetro da prótese, não houve diferença significativa na ocorrência de pancreatite entres os grupos com próteses de grande calibre ou múltiplas próteses enquanto foi significativamente maior no grupo não-papilotomia com próteses finas.

  • Análise multivariada

Na análise multivariada, os autores encontraram que a não realização de papilotomia e a inserção do fio-guia no ducto pancreático principal foi associado de forma significativa com a ocorrência de pancreatite pós-CPRE (não-papilotomia: OR 5,54, IC 95% 2,475 – 12,421, p< 0,001; inserção do fio-guia: OR 2,466, IC 95% 1,100 – 5,529, p=0,028)

Discussão

Neste estudo, a não-inferioridade de não realizar a papilotomia em relação a realização da papilotomia antes da passagem da prótese não foi comprovada. Por outro lado, os resultados suportam o efeito preventivo da papilotomia antes da prótese na ocorrência de pancreatite pós-CPRE.

Uma preocupação é que a maior proporção de pacientes nos quais a canulação do ducto biliar foi difícil talvez poderia ter aumentado a incidência de pancreatite pós-CPRE no grupo de não-papilotomia.  Análise univariada usada para identificar fatores associados a dificuldade de canulação (tempo de canulação > 14 minutos, endoscopista em treinamento ou troca de operador) nos casos com pancreatite em cada grupo revelou que o tempo de canulação tendeu a ser maior no grupo não-papilotomia, embora a diferença não tenha sido significativa. Assim, descartar completamente a relação entre dificuldade de canulação e alta incidência de pancreatite no grupo não-papilotomia permanece difícil. No entanto, a análise multivariada mostrou que os fatores relacionados a dificuldade de canulação, incluindo tempo de canulação maior que 14 mm e colocação de prótese pancreática, não afetou a incidência de pancreatite. Em outras palavras, a dificuldade de canulação não aumentou diretamente a incidência de pancreatite no grupo não-papilotomia.

A incidência de sangramento após o procedimento foi significativamente maior no grupo papilotomia, incluindo um caso grave. Assim, embora a papilotomia seja benéfica para prevenção de pancreatite em casos de colocação de próteses de diâmetros menores, ela não deve ser realizada rotineiramente em todos os pacientes, e sim avaliada caso a caso, atentando para o uso de anticoagulantes e alterações na coagulação do paciente. 

Entre as limitações do estudo estão: 1) maior proporção de estenoses malignas que benignas (apenas 20/370, 5,4%), portanto talvez o resultado desse estudo não deva ser extrapolado para estenoses benignas; 2) as intervenções para profilaxia pós-CPRE, incluindo prótese pancreática e uso de supositórios de AINE, foram realizadas a critério de cada endoscopista após randomização. A proporção de pacientes que receberam AINE não foi diferente entre os grupos. Porém, o número de pacientes submetidos a colocação de prótese pancreática foi maior no grupo não-papilotomia; 3) o estudo não foi realizado em cenário completamente cego. Os resultados da randomização não foram ocultados dos participantes ou dos endoscopistas que realizaram o procedimento. Essas condições de cegamento incompleto podem resultar em viés de avaliação, o que pode ter afetado o resultado primário do estudo.

Conclusão

A realização de papilotomia antes da colocação da prótese biliar em pacientes com estenose biliar pode ter efeito preventivo sobre a ocorrência de pancreatite pós-CPRE.

Esse mês, na mesma revista, foi publicada uma carta ao editor muito interessante sobre esse artigo, intitulada: Endoscopic sphincterotomy and Post Endoscopic Retrograde Cholangiopancreatography Pancreatitis: In an Era of Declining Mystery, the Unknown Persists.  DOI: 10.1016/j.cgh.2021.08.045

Os autores escrevem que, embora o estudo tenha sido bem desenhado e forneça evidencias que a papilotomia deva ser realizada antes da colocação da prótese em estenose biliar, merece algumas considerações:

  1. Em situações em que a maioria das CPREs foi realizada por endoscopistas em treinamento, uma análise de subgrupo em casos de canulação difícil de acordo com os critérios da ESGE (mais que 5 contatos com papila, mais que 5 minutos de tentativa de canulação e mais que 1 canulação não-intencional do ducto pancreático) seria útil;
  2. O uso de AINE via retal e passagem de prótese pancreática para prevenção de pancreatite foi decidida pelo endoscopista. É importante saber qual grupo de pacientes recebeu as estratégias preventivas combinadas em cada grupo e, entre aqueles, quantos desenvolveram pancreatite;
  3. No grupo não-papilotomia, mais procedimentos foram feitos por estagiários em treinamento e a troca de operadores foi necessária com mais frequência para concluir o procedimento. Assume-se que a troca de operadores teria sido necessária em caso tecnicamente desafiadores e de canulação difícil. É importante saber se teve alguma diferença na incidência de pancreatite nesse subgrupo de pacientes;
  4. Nesse estudo, onde todos os pacientes apresentavam estenose, os autores não mencionaram se foi feita dilatação da papila ou da área de estenose para passagem das próteses ou se feita colangioscopia. Isso pode ter afetado de forma independente os resultados (pancreatite, colangite ou sangramento).

Os autores concluíram que a papilotomia reduziu o risco de pancreatite pós-CPRE. Entretanto, essa conclusão pode ser prematura sem considerar outras variáveis de confusão.

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Vale a reflexão!

E você? Faz papilotomia de rotina antes de passar a prótese nesses pacientes com estenose biliar?

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Especialista em Gastroenterologia HC-FMRP-USP e em Endoscopia Gastrointestinal HC-FM-USP
Membro titular da Federação Brasileira de Gastroenterologia (FBG) e da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (SOBED)
Doutorado em andamento - USP
Presidente do capítulo Maranhão da SOBED gestão 2019-2020


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