INTRODUÇÃO
A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) é um procedimento tecnicamente desafiador com taxa de complicações que varia de 5 a 10%.
Segundo dados da literatura, é necessário a realização de 180 a 200 procedimentos para que o residente ser torne proficiente na realização da CPRE.
A disponibilização de tempo suficiente para que os residentes possam tentar a canulação da via biliar é necessária para o garantir o aprendizado durante o treinamento de CPRE.
No entanto, é importante equilibrar o benefício do treinamento em relação aos potenciais riscos para os pacientes. Pois as tentativas repetidas estão associadas à maiores taxas de complicações, como a pancreatite pós-CPRE.
Até o momento, o tempo apropriado para tentativa de canulação na CPRE pelos residentes permanece incerto na literatura.
OBJETIVO
Determinar o impacto nas taxas de sucesso e complicação de diferentes intervalos de tempo para canulação na CPRE realizadas por residentes em treinamento.
METODOLOGIA
Estudo prospectivo, randomizado, controlado, que foi aprovado pelo comitê local e inscrito no ClinicalTrials.
- Critérios de inclusão:
– Entre 18 e 90 anos; e sem antecedente de papilotomia.
- Critérios de exclusão:
– Gastrectomia prévia; estenose duodenal; carcinoma papilar; tentativa sem sucesso de canulação prévia; pancreatite crônica com calcificações na cabeça pancreática; necessidade de canulação da papila menor; fístula papilar; comorbidade maior; instabilidade hemodinâmica; gravidez; e/ou recusa do paciente.
Treinamento em CPRE
Participaram 4 residentes sem treinamento prévio em CPRE.
Cada um realizou anteriormente: > 2.000 endoscopias e > 300 colonoscopias.
Realizado treinamento teórico/prático, com observação e auxílio de cerca de 100 CPREs, anteriormente ao início do estudo.
Duração do treinamento e participação no estudo de 8 meses continuamente.
Durante a tentativa de canulação, os assistentes deram ilimitadas orientações para realização do procedimento.
Randomização
Pacientes foram alocados em 3 grupos: 5 min, 10 min e 15 min.
Os residentes e os assistentes desconheciam a qual grupo pertencia cada paciente.
Desfechos
O desfecho primário foi a canulação com sucesso pelo residente.
Os desfechos secundários foram o desconforto referido pelo paciente após o exame, e taxa de complicações pós-CPRE.
RESULTADOS
Foram incluídos 256 pacientes entre maio e dezembro de 2013. Estes foram randomizados entre os 3 braços do estudo: 5 min – 84 pacientes; 10 minutos – 86 pacientes; e 15 minutos – 86 pacientes.
Na análise da amostra a idade média foi de 57 anos, e os 3 grupos de pacientes foram semelhantes entre si com relação às características clínicas, anatômicas e radiológicas.
A principal indicação para realização de CPRE foi coledocolitíase (75%; 66,7% e 69,4%; nos grupos 5, 10 e 15 min respectivamente).
Com relação aos resultados:
- Taxa de canulação: grupo 5 min de 43,8%; grupo de 10 min de 75%; e grupo de 15 min de 71,8%
- A taxa de canulação foi semelhante entre os grupos 10′ e 15′, e ambos os grupos tiveram taxas significativamente maiores que o grupo 5′ (p < 0,001). Ver tabela 1:
- As taxa de desconforto referido pelos pacientes foi semelhante entre os 3 grupos.
- A taxa de complicações foi semelhante entre os 3 grupos, e variou de 4,7 a 8,8%.
- Em análise de regressão logística, a idade > 50 anos e o tempo de 10′ ou 15′ estiveram associados com maiores taxas de canulação. Diagnóstico de câncer, disfunção do esfincter de Oddi e presença de estenose em colédoco distal estiveram associados com falha na tentativa de canulação.
DISCUSSÃO
Os intervalos de tempo de 10′ e 15′ para tentativa de canulação pelos residentes apresentaram taxas de sucesso comparáveis, e ambos foram melhores que o de 5′. A taxa de complicações após a CPRE foi semelhante entre os 3 grupos.
Dessa forma, os autores concluem que o tempo de 10 minutos parece ser o mais apropriado para que os residentes tentem a canulação durante o seu período de treinamento.
No grupo de 15 min, apenas um adicional de 4/85 (4,7%) canulações foram possíveis com a extensão a mais de 5 minutos para cateterização.
Para aumentar a taxa de canulação após tentativa inicial sem sucesso, os residentes devem aprender a reposicionar o aparelho e modificar o alinhamento dos acessórios em relação ao eixo da via biliar, antes de uma nova tentativa de canulação. Segundo os autores, todas essas manobras podem ser realizadas dentro do intervalo de 10 minutos.
A principal limitação do estudo é o pequeno número de residentes participantes, já que foram apenas 4 no total. Assim esses achados podem não representar a curva de aprendizado dos residentes em geral.
ANÁLISE
Excessivas tentativas de cateterização podem gerar complicações aos pacientes, por isso devem ser evitadas. Estudo realizado com endoscopistas experientes também mostrou dados nesse sentido, pois relatou que a realização de acesso pré-corte de forma precoce, após 10 min de tentativas sem sucesso, resultou em menor taxa de pancreatite em comparação com a tentativa prolongada de cateterização por mais 10 minutos (Manes G, et al. Am J Gastroenterol. 2009).
Dessa forma, tão importante quanto minimizar os riscos de complicações durante o treinamento, limitanto o tempo de tentativas, é também treinar o residente para realização de manobras avançadas de canulação como a técnica de duplo fio, posição do aparelho em alça longa, passagem de prótese pancreática, realização de pré-corte e infundibulotomia.
Referência:
Assuntos relacionados:
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Advanced Endoscopy Fellowship na Cleveland Clinic, Ohio, EUA.
Doutorado em Gastroenterologia pela FMUSP.
Mestrado na Escola Paulista de Medicina – UNIFESP/EPM.
Membro titular da SOBED e FBG.
10 Comentários
Matheus, parabéns pelo post!
Acredito, que, como foi dito, o aprendizado da CPRE é multifatorial, e o médico em treinamento precisa ter conhecimento e habilidade para realizar os procedimentos não num determinado tempo, mas com o menor trauma possível, para minimizar o risco de pancreatite principalmente.
Assim, a meu ver, cabe comparar número de cateterizações e não tempo, como já sabemos.
Logo, mais importante que o tempo, é oferecer ao residente a possibilidade de conhecer e aprender todas as técnicas. Como disse o Felipe, porque não realizar infundibulotomia após uma única tentativa frusta de cateterização numa papila projetada e com cálculo impactado?
Felipe, realmente é uma boa oportunidade para comentar um pouco sobre cada técnica.
1. Papilotómo e fio-guia:
O papilótomo é avançado 2 a 3 mm além da superfície papilar na direção da via biliar (eixo entre 11 e 12 horas), e em seguida o fio-guia é gentilmente avançado para canulação seletiva do hepatocolédoco.
2. Duplo fio-guia
Um fio-guia é inserido no ducto pancreático principal, se possível até a região do corpo distal, para retificação do segmento intramural do ducto biliar. O que pode posteriormente facilitar a canulação do hepatocóleco com o papilótomo e um segundo fio-guia.
3. Pré-corte com estilete (papilotomia de acesso)
Técnica de corte da mucosa e submucosa papilar para exposição e acesso ao ducto biliar. Realizada através do uso do papilótomo tipo estilete, que tem em sua ponta um fio de corte retrátil.
Apresenta 02 formas de execução:
– Iniciada no orifício papilar: a incisão é iniciada no orifício papilar e estendida proximalmente no eixo da via biliar.
– Infundibulotomia: A incisão é iniciada acima do orifício papila, e estendida de forma ascendente ou descendente. Essa técnica evita lesão térmica próximo ao oríficio pancreático, portanto com redução do risco de pancreatite pós-CPRE.
Referência: Baron T, Kozarek RA, Carr-Locke DL. ERCP. 2º edition; Elsevier.
O procedimento é terapêutico e com alto risco de complicações. O objetivo é acesso a via biliar. Temos hoje várias alternativas para acessar a via biliar. No aprendizado devemos mostrar ou mesmo discutir as várias alternativas. A CPRE realizado sobre supervisão é dificil e o momento de mudar a técnica baseia-se em dados de estatística (fatores de risco do paciente amplamente discutidos na literatura), experiência do assistente e observação de como cada residente realiza o procedimento (maior o menor trauma para o acesso a via biliar). A quantidade de endoscopia e colonoscopia não os torna com mais ou menos habilitado a fazer o exame. A CPRE envolve o conhecimento de como funciona o aparelho e acessórios, como será realizado (decúbito ventral ou dorsal), anatomia do paciente, entendimento das manobras para acesso a via biliar e como orientar as manobras. O tempo de 5 a 15 minutos depende muito de como foi canulado a papila (número de vezes). Não foram relatados no estudo os tipos de complicações e sua estratificação. Os outros métodos de acesso a via biliar dependo muito do treinamento. E devemos lembrar há nestes uma curva de aprendizado. Os residentes que se propõe o aprendizado da CPRE devem saber as indicações e como realizá-los adequadamente. A medida que realizamos a CPRE melhoramos a canulação e possível planejar como será todo o procedimento, ou mesmo rapidamente mudar a abordagem terapêutica. E como deveremos encarar o ensino e o aprendizado do acesso a via biliar. Até que ponto insistir ou mudar a técnica de acesso biliar objetivamente? Vale lembrar que o importante é o acesso a via biliar sem complicação. E o acesso seguro a via biliar e sem complicações envolve o amplo conhecimento das técnicas (fistulopapilotomia, uso de próteses pancreáticas, medicamentos, cuidados na cateterização, uso de fio guia, interromper o procedimento e nova tentativa apos 7 a 10 dias, etc) e quando escolhemos uma ou outra é multifatorial.
Matheus, ja que o post é para aprendizado em CPRE. Você poderia descrever resumidamente do que se trata cada uma das três técnicas citadas acima ?
Bruno,
No trabalho isso não foi exposto, mas pela análise das tabelas é possível deduzir que a taxa de sucesso de canulação pelos assistentes, após tentativas dos residentes, foi de 95,6% (86/90).
Apenas em 4 pacientes houve falha na canulação seletiva pelos assistentes, sendo que em 3 desses a canulação foi possível numa nova CPRE realizada pelos assistentes.
No estudo a taxa global de sucesso na canulação foi de 98% (245/249), sendo cerca de:
– 87% por papilotomo e fio-guia;
– 4% por técnica de duplo-fio;
– 9% por pré-corte com estilete.
Acho que nesses casos de canulações difíceis onde o Wirsung foi cateterizado diversas vezes, antes de partirmos para a infundibulotomia, uma boa opção é a passagem de uma prótese pancreática, afim de diminuir a incidência de pancreatite e, em seguida tentar o acesso à via biliar com o papilótomo posicionado “em paralelo” a prótese. Concordo com o Manoel que afirma que técnica de infundibulotomia é eficaz e segura, porém acho realmente que alguns colegas banalizam esse técnica , alguns afirmando que acessam o hepatocolédoco por infundibulotomia em cerca de 50% dos casos !
Acho que cada caso deve ser individualizado. Papila planas ou intra/peridivertivulares onde tecnicamente a infundibulotomia será mais difícil ou até inviável talvez deva-se se insistir mais na caterização pelo óstio. Porém em papilas mais protusas ou naquelas que sabe-se previamente que existe um grande cálculo impactado no colédoco distal a infundibullotomia talvez deva ser feita o quanto antes. Concordo com o Manoel quando diz que a infudibulotomia é um procedimento seguro e eficaz em mão experientes. Mas esta é a questão, os que mais vão precisar realizá-la são aqueles com menos experiência na cateterização pelo óstio. Por isto acho que mais importante que o número total de exames feitos por um residente em sua formação, é que este saia da residência sabendo fazer a infundibulotomia.
Matheus, os autores descrevem qual a taxa de sucesso dos assistentes após assumirem o caso?
Boa noite. Excelente artigo … Porém acredito que após tentativas sem sucesso , o Endoscopista experiente deve trocar a técnica para acessar a via biliar. E a infudibulotonia e uma técnica segura em maos experientes . Não concordo com o colega anterior para insistir em canulacoes difíceis aumentando risco de pancreatite pos Cpre Respeitosamente. Manoel Carlos
Ótimo artigo Matheus. Esse tempo de 10 minutos é o que usamos na nossa prática atual no treinamento dos residentes e observamos que, como demonstra o artigo, nos parece o tempo adequado. Uma coisa importante a ser lembrada é que mesmo nos casos onde a cateterização se mostra mais difícil e portanto mais demorada, mesmo os endoscopistas experientes, acredito que devam insistir um pouco mais na cateterização. Digo isso por que o que vemos na prática é uma “banalização” da infundibulotomia e do pré-corte, fato que julgo preocupante já que esses procedimentos não são isentos de complicações e portanto devem ser condutas de exceção e não de regra.