Artigo original
Silveira SQ, da Silva LM, de Campos Vieira Abib A, de Moura DTH, de Moura EGH, Santos LB, Ho AM, Nersessian RSF, Lima FLM, Silva MV, Mizubuti GB. Relationship between perioperative semaglutide use and residual gastric content: A retrospective analysis of patients undergoing elective upper endoscopy. J Clin Anesth. 2023
Medicamentos análogos ao GLP-1 são utilizados no tratamento de diabetes e da obesidade, sendo observado o recente aumento do uso destes medicamentos, particularmente como auxílio em terapêuticas para perda de peso. Um dos principais representantes desta classe de medicamentos é a semaglutida (ozempic), cujo tempo de meia vida é de 7 dias, permitindo administração semanal o que auxilia na popularização de seu uso. Estas drogas podem trazer implicações para procedimentos anestésicos por reduzirem o esvaziamento gástrico, identificada em algumas publicações.
Métodos
Estudo retrospectivo observacional realizado em único centro entre julho de 2021 e março de 2022 em um hospital terciário Brasileiro para realização de endoscopia digestiva alta. Foram excluídos do estudo pacientes com obstrução do trato digestivo, volvo gástrico, hemorragia digestiva alta, status de ASA maiores ou iguais a 4, cirurgia abdominal recente (até 2 meses), procedimentos endoscópicos de emergência, endoscopia associada a procedimentos cirúrgicos, insuficiência renal crônica ou doença hepática, acalasia, divertículo de Zenker, linite plástica, uso crônico de opióides/dependência química, pacientes em unidade de terapia intensiva, uso de de medicamentos que conhecidamente inferem com o esvaziamento gástrico (antidepressivos tricíclicos, opióides, procinéticos, antagonistas histamínicos) e registros médicos incompletos. Foram excluídos do estudo pacientes com uso de outros análogos de GLP-1 que não a semaglutida.
O objetivo primário foi identificar a presença de resíduo gástrico aumentado como qualquer quantidade de resíduo sólido do esôfago ao piloro ou drenagem superior a 0,8mL/Kg de líquido no dreno de aspiração. O volume de resíduo gástrico foi classificado em pequeno, médio ou volumoso de acordo com estimativa do endoscopista. O objetivo secundário foi a identificação de episódios de broncoaspiração.
Todos os exames foram realizados com acompanhamento de anestesista, sendo realizada sedação ou anestesia geral. Diversos dados demográficos foram coletados como sexo, idade, IMC, cirurgias prévias, ASA, tempo de jejum, presença e tipo de diabetes; sintomas digestivos como nausea, vômitos, dispepsia ou distensão abdominal no dia da endoscopia.
Os pacientes foram divididos em dois grupos, um deles de pacientes expostos a uso subcutâneo de semaglutida (grupo SG) e outro grupo de pacientes sem uso de semaglutida por ao menos 30 dias antes da endoscopia (grupo NSG). A semaglutida foi utilizada para o tratamento de diabetes ou como terapia para perda de peso. Independente da indicação, a orientação foi de interromper o uso de semaglutida nos 10 a 14 dias que antecederam o exame endoscópico embora alguns pacientes não tenham seguido esta orientação.
Resultados
Foram incluídos 404 pacientes no estudo, sendo 33 no grupo SG (semaglutida) e 371 no outro grupo. A idade média foi de 50 anos (39-64), 48,5% feminino, obesidade em 19,9% dos pacientes e presença de sintomas digestivos em 6,4% (n=26). A principal indicação para uso de semaglutida foi promover perda de peso (87,8%) enquanto em 12,2% dos casos o medicamento foi usado para controle de diabetes. Os pacientes foram classificados em ASA I (19,3%), ASA II (71%) e ASA III (9,7%) , enquanto os pacientes ASA IV foram excluídos do estudo. O intervalo de jejum para líquidos claros foi de 9,3h (5 – 12,8h) e para sólidos de 14,5h (12,2 a 28,7h) . A maioria dos pacientes (n=392; 97%) foi submetida a exame sob sedação profunda enquanto 12 (3%) realizaram exame sob anestesia geral.
Foi observado aumento do resíduo gástrico em 6,7% (27) dos pacientes dos quais 24,2% (8) no grupo SG e 5,1% (19) no grupo NSG (p<0,001). Resíduos sólidos foram identificados em 85,2% dos pacientes com resíduo gástrico elevado cujo volume foi estimado pelo endoscopista como baixo (25,9%), moderado (25,9%) e elevado (48,1%). Não houve relação entre o volume de resíduo encontrado e o uso de semaglutida (p=0,99). Não houve variável específica associada à elevação do resíduo gástrico no grupo de pacientes SG.
O uso de semaglutida [PR=4,73 (95% IC 2,67-13-98)] e a presença de sintomas digestivos [PR=6,1 (2,67-13,98)] estiveram associados a aumento do resíduo gástrico enquanto a realização simultânea de endoscopia e colonoscopia demonstrou fator protetor com menor risco de resíduo gástrico elevado [PR=0,13 (0,15-0,78)].
O intervalo de tempo de interrupção da semaglutida em pacientes que apresentaram resíduo gástrico foi de 10 dias (6-15) enquanto os pacientes sem resíduo gástrico aumentado foi de 11 (7,75 a 12,5 dias) (p=0,67).
Foi encontrado apenas 01 caso (0,24%) de broncoaspiração , o qual ocorreu em um paciente de 63 anos, IMC 37,7 Kg/m2 , hipertenso, com cirurgia prévia (bypass gástrico), sem sintomas digestivos, submetido a exame sob sedação profunda. O paciente interrompeu o uso de semaglutida 11 dias antes do exame e apresentava tempo de jejum adequado (12,4h sem líquidos/sólidos).
Comentários
Inibidores da GLP-1 como a semaglutida têm sido utilizados com frequência para auxiliar na perda de peso (nesta publicação mais de 85% dos pacientes), no entanto não é infrequente encontrar pacientes utilizando estes medicamentos sem o adequado acompanhamento médico aumentando o risco de complicações e efeitos adversos da droga. Na realização de exames sob sedação/anestesia deve-se considerar que pode ocorrer retardo do esvaziamento gástrico elevando o risco de broncoaspiração, fato este que pode ser subestimado pelos pacientes ou até mesmo por colegas médicos.
O grupo da semaglutida (grupo SG) esteve associado com risco de resíduo gástrico aumentado [PR 5,15 (1,92 – 12,92)] o que potencialmente pode incrementar o risco de efeitos adversos durante anestesia/sedação. Foi identificada ainda uma incidência de resíduo gástrico sólido de 5,7% no estudo, chegando a 4,6% com a exclusão do grupo da semaglutida. A incidência é maior do que a relatada em uma série retrospectiva publicada por Bi et al envolvendo mais de 85000 pacientes, a qual teve como achado incidência de 3% de resíduo gástrico em pacientes submetidos a endoscopia. Nesta última, foi evidenciado risco elevado para achado de resíduo gástrico sólido em pacientes com diabetes tipo 1 (OR=1,7 p<0,001), diabetes tipo 2 (OR=1,4 p<0,001), amiloidose (OR=1,7 p<0,001), anormalidades estruturais do trato digestivo (estenose ou cirurgia esofágica, gástrica, duodenal; fundoplicatura) (OR =2,6 p<0,001) e gastroparesia (identificada em cintilografia) (OR=4,8 p<0,001). Ressalta-se que a incidência de resíduo gástrico em exames endoscópicos pode ser relevante e algumas condições podem aumentar esse risco. Dentre as condições citadas nestas publicações, as de maior risco foram anormalidades do trato digestivo alto (estenoses/cirurgias prévias), gastroparesia e uso de semaglutida.
Em contrapartida foi observado um fator protetor [PR=0,25; IC95% (0,16-0,39)] em relação à presença de resíduo gástrico sólido quando a endoscopia foi realizada em conjunto com colonoscopia quando comparada a endoscopia realizada isoladamente. Não é possível atribuir este resultado a um fator isolado visto que para a realização do preparo intestinal realiza-se alteração no tipo de dieta (isenta de resíduos) e são utilizadas soluções que podem acelerar o trânsito intestinal.
O uso de semaglutida causa sintomas gastrointestinais com frequência como náuseas, vômitos e diarreia, sendo uma das principais causas da interrupção do medicamento.
A presença concomitante de semaglutida e sintomas gastrointestinais esteve associada a maior risco de resíduo gástrico elevado (PR=16,5; 9,08 – 34,91) sendo importante ressaltar que pacientes no grupo semaglutida sem sintomas digestivos ainda tiveram risco elevado de apresentar resíduo gástrico (PR=9,8 – 5,6 a 17,66).
Ocorreu apenas um caso de broncoaspiração na publicação em um paciente idoso que apresentava outros fatores de risco para aumento do resíduo gástrico como cirurgia gástrica prévia, obesidade além do uso de semaglutida (interrompida 11 dias antes do exame) apesar de estar com tempo de jejum adequado (12,4h).
A Sociedade Americana de Anestesiologia (ASA) publicou recente guideline sobre o uso de análogos de GLP-1 ressaltando o risco elevado de resíduo gástrico e consequente broncoaspiração nestes pacientes. Há recomendação geral para suspender a injeção dos medicamentos por uma semana antes do procedimento ou cirurgia, independente de dose, tempo de administração ou indicação do uso da droga.
Pacientes com sintomas gastrointestinais severos como náuseas/vômitos importantes, distensão ou dor abdominal no dia do exame ou cirurgia possuem risco elevado para broncoaspiração sendo recomendado adiar procedimentos eletivos. Pacientes sem sintomas gastrointestinais que não tenham suspendido os medicamentos como orientado podem realizar ultrassonografia para avaliar presença de resíduo gástrico ou serem submetidos a anestesia com as devidas precauções considerando paciente como “estômago cheio”.
Referências
- Silveira SQ, da Silva LM, de Campos Vieira Abib A, de Moura DTH, de Moura EGH, Santos LB, Ho AM, Nersessian RSF, Lima FLM, Silva MV, Mizubuti GB. Relationship between perioperative semaglutide use and residual gastric content: A retrospective analysis of patients undergoing elective upper endoscopy. J Clin Anesth. 2023
- Bi D, Choi C, League J, Camilleri M, Prichard DO. Food Residue During Esophagogastroduodenoscopy Is Commonly Encountered and Is Not Pathognomonic of Delayed Gastric Emptying. Dig Dis Sci. 2021 Nov;66(11):3951-3959.
- Joshi GP, Abdelmalak BB, Weigel WA et al. American Society of Anesthesiologists Consensus-Based Guidance on Preoperative Management of Patients (Adults and Children) on Glucagon-Like Peptide-1 (GLP-1) Receptor Agonists – American Society of Anesthesiologists (ASA) Task Force on Preoperative Fasting (jun 2023)
Como citar este artigo
Ferreira F. Relação entre uso preoperatório de semaglutida e estase gástrica: estudo retrospectivo envolvendo pacientes submetidos a endoscopia eletiva. Endoscopia Terapeutica, 2023 vol. II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/relacao-entre-uso-pre-operatorio-de-semaglutida-e-estase-gastrica-estudo-retrospectivo-envolvendo-pacientes-submetidos-a-endoscopia-eletiva/
Membro Titular da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (SOBED);
Especialização em Endoscopia Digestiva na Universidade de São Paulo (USP);
Mestrado em Cirurgia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE);
Médico endoscopista da NeoGastro (PE);
Coordenador do Serviço de Endoscopia Digestiva do Hospital Otávio de Freitas (PE)