CASO 1
Paciente masculino de 65 anos em investigação de hepatopatia, apresentando episódios intermitentes de melena. Já realizou 2 endoscopias e uma colonoscopia não evidenciando o foco do sangramento. Hoje novo episódio de melena e queda significativa da hemoglobina. Indicada nova endoscopia.
A endoscopia evidenciou um coágulo no ápice bulbar e após a sua remoção foi possível identificar um pequeno coto vascular com sangramento ativo. O coto foi tratado com injeção de solução de adrenalina seguida de aplicação de clipes. O paciente não apresentou novos sangramentos.
CASO 2
Menino de 6 anos com início há 3 dias com quadros de enterorragias volumosas intermitentes. Admitido no hospital com Hb de 6,0. Endoscopia digestiva alta normal. Indicada colonoscopia.
Após o preparo o cólon estava limpo e não apresentava mais resíduos hemáticos. No ceco foi identificado pequeno coágulo. Após a limpeza do ceco e avaliação detalhada underwater foi observado que o coágulo estava aderido a um coto vascular superficial com pequeno ponto de ruptura. Foi realizada a aplicação de clipes e a criança não apresentou mais episódios de sangramento.
Lesão de Dieulafoy
A lesão de Dieulafoy foi descrita pelo cirurgião francês Paul Georges Dieulafoy em 1898 e é uma causa pouco frequente de hemorragia gastrointestinal, mas de relevância, pois geralmente se apresenta com sangramentos volumosos. O grande desafio desta doença está no pequeno tamanho da lesão e na sua característica de sangramento intermitente com uma difícil localização endoscópica se o sangramento não estiver ativo. Isso leva à sua clássica apresentação de hematêmese e melena com significativa queda de hemoglobina e um exame de endoscopia normal ou com achados que não explicam o sangramento.
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Patologia
As arteríolas normais da submucosa tem menos de 1 mm pois os vasos vão afilando progressivamente enquanto atravessam as camadas da parede do trato gastrointestinal. A lesão de Dieulafoy é um desses vasos, mas que não afilou após atravessar a muscular e chega à camada submucosa com um calilbre de 1-3 mm. Este vaso corre tortuosamente na submucosa e protrui através da mucosa para a luz gástrica através de um pequeno defeito na mucosa de 2 a 5 mm geralmente sem sinais inflamatórios mas podendo apresentar uma pequena área de fibrina adjacente.
O estômago é o local mais comum, geralmente na pequena curvatura alta. Até 1/3 das lesões são extra-gástricas sendo o duodeno e o cólon os locais mais frequentes. Já foram descritas lesões de Dieulafoy no esôfago, intestino delgado, reto, canal anal e nos brônquios.
Etiologia
A lesão provavelmente é de origem congênita. Patologicamente o vaso é normal, reduzindo a probabilidade de causa aneuristmática. Também fortalece a teoria congênita os casos descritos de lesões de Dieulafoy em recém-nascidos.
Uma grande proporção dos pacientes com ruptura deste vaso está internado sugerindo que a lesão por estresse está envolvida no sangramento. A hemorragia pode ocorrer em qualquer faixa etária mas é mais frequente acima dos 60 anos e duas vezes mais frequente em homens do que em mulheres. Comorbidades estão presentes em 90% dos pacientes sendo cardiopatias e insuficiência renal as mais comuns. Drogas como anti inflamatórios, aspirina e warfarina também podem estar relacionadas com o aumento da incidência do sangramento.
Embora a patogenia exata do que leva ao sangramento de um vaso previamente assintomático não é completamente compreendida mas o consenso é de que alguma forma de lesão mucosa por erosão ou injúria isquêmica expõe o vaso e predispõe ao sangramento.
Apresentação Clínica e Diagnóstico
A lesão de Dieulafoy tipicamente se apresenta agudamente com hemorragia maciça que geralmente é recorrente.
A endoscopia digestiva alta é efetiva no diagnóstico em até 70% dos pacientes. Porém, algumas vezes várias endoscopias podem ser necessárias para se fazer o diagnóstico. Até 6% dos pacientes necessitam 3 ou mais exames endoscópicos para encontrar a lesão. Entre os pacientes que o diagnóstico não foi feito na primeira endoscopia, 40% foi devido à presença de sangue acumulado impedindo a avaliação e 60% foi porque a lesão não pôde ser encontrada.
Existem relatos do uso de ecoendoscopia para identificar um vaso calibroso na submucosa mesmo na ausência de sangramento e também de seu uso para controle após tratamento endoscópico avaliando o desaparecimento do fluxo no vaso submucoso.
Características Endoscópicas da lesão de Dieulafoy
Os achados se dividem em 3 categorias:
- Sangramento ativo que pode ser em jato ou babação.
- Coágulo aderido que após a lavagem evidencia um mínimo defeito mucoso
- Vaso visível isolado com mucosa normal adjacente ou com pequena quantidade de fibrina, menor que 5 mm, não associado à úlcera.
Tratamento
O tratamento endoscópico é o método de escolha nas lesões acessíveis endoscopicamente. O sucesso é reportado acima de 90%. Podem ser utilizados métodos térmicos (heaterprobe, APC, coagrasper, eletrocoagulação com alça), injeção de agentes esclerosantes e terapias mecânicas (ligadura elástica e clipes). Cada técnica tem suas vantagens e desvantagens mas existe evidência na literatura de que as terapias mecânicas são mais efetivas. Terapias combinadas também apresentam menores taxas de ressangramento quando comparadas com a monoterapia.
A angiografia pode ser utilizada em casos que falham à terapia endoscópica. Nestes pacientes, a colocação de um clipe endoscópico próximo da lesão sangrante, quando possível, facilita bastante a localização da artéria a ser tratada. Esta técnica apresenta um risco considerável de isquemia na área da artéria obliterada que deve ser levado em conta no acompanhamento do paciente após o procedimento devido à possibilidade de perfuração tardia.
A angiografia é o método de escolha para lesões de Dieulafoy nos brônquios.
A cirurgia é reservada apenas para os casos onde existe falha endoscópica e angiográfica. O tratamento laparoscópico é possível e realizado através de ressecções em cunha ou gastrectomias parciais, mas depende da correta localização da lesão no intra-operatório. Por isso, nos pacientes que serão operados, a tatuagem endoscópica deve ser realizada para facilitar a identificação da área a ser ressecada.
Pontos importantes
A lesão de Dieulafoy é um desafio diagnóstico e terapêutico. Devemos sempre lembrar desta lesão nos casos de hemorragia obscura em todas as faixas etárias.
A repetição da endoscopia o mais precoce possível na recorrência da hemorragia permite a visualização do sangramento ativo facilitando muito a identificação da lesão.
O tratamento endoscópico é altamente efetivo e as terapias mecânicas são preferidas. Quando a posição da lesão não permitir a colocação de um clipe ou ligadura, terapias térmicas e injeção de agentes esclerosantes podem ser utilizados.
Referências
- Baxter M, Aly EH. Dieulafoy’s lesion: current trends in diagnosis and management. Ann R Coll Surg Engl. 2010;92(7):548‐554.
- Lee YT, Walmsley RS, Leong RW, Sung JJ. Dieulafoy’s lesion. Gastrointest Endosc. 2003;58:236–43.
- Clements J, Clements B, Loughrey M. Gastric Dieulafoy lesion: a rare cause of massive haematemesis in an elderly woman. Case Reports 2018;2018:bcr-2017-223615.
- Linda L. Manning-Dimmitt, Steven G. Dimmitt, and George R. Wilson, Am Fam Physician. 2005 Apr 1;71(7):1339-1346.
- Barosa, Rita et al. “Dieulafoy’s Lesion: The Role of Endoscopic Ultrasonography as a Roadmap.” GE – Portuguese Journal of Gastroenterology 24 (2016): 95 – 97.
- Ghazi Alshumrani, Angiographic findings and endovascular embolization in Dieulafoy disease: a case report and literature reviewDiagn Interv Radiol 2006; 12:151-154
Para saber mais:
Quiz – lesão de Dieulafoy
Lesão de Deiulafoy de Cárdia
Doutor em Ciências em Gastroenterologia pela USP
Especialista em Endoscopia Diagnóstica e Terapêutica da Gastroclínica Cascavel e do Hospital São Lucas FAG
Coordenador da Residência Médica em Cirurgia Geral e Professor de Gastroenterologia da Escola de Medicina da Faculdade Assis Gurgacz