Desde março de 2020, quando a OMS definiu que estávamos diante de uma pandemia de consequências desconhecidas, uma grande mobilização da comunidade científica mundial buscou acúmulo de conhecimento sobre o novo vírus, porém, por meses à frente, ainda agiríamos no escuro em muitas situações, contando com muito menos informação de qualidade do que gostaríamos.
No quesito transmissibilidade, por exemplo, muito se assumiu como verdade a partir do comportamento de outros coronavírus, dada a semelhança estrutural do SARS-CoV-2 com seus predecessores.
Ainda em março, aqui no site, alguns artigos trouxeram uma parte importante do que já era conhecido e relevante (links abaixo).
Infelizmente, quase nada tratava especificamente do comportamento viral no ambiente da endoscopia. Na verdade, até recentemente a endoscopia digestiva estava fora da lista de procedimentos geradores de aerossóis, havendo apenas a evidência de disseminação bacteriana demonstrada por culturas de amostras de face shields usadas por endoscopistas. Apesar disso, medidas para a redução da transmissão por aerossóis foram e seguem recomendadas. E muitas perguntas seguiram sem respostas. Endoscopia de fato produz aerossol? O vírus em suspensão é capaz de infectar alguém durante ou após o exame?
Recentemente, uma revisão buscou tratar do assunto com olhar voltado à prática endoscópica. Nessa revisão, intitulada “Extent of infectious SARS-CoV-2 aerosolisation as a result of oesophagogastroduodenoscopy or colonoscopy”, os autores selecionaram 26 artigos dentre 3745 inicialmente localizados.
Foram incluídos estudos que relatassem riscos por aerossol em pacientes com COVID-19, tendo sido excluídos os não relacionados à COVID-19, com metodologia considerada fraca, não escritos em inglês, e aqueles não indexados à PubMed.
Figura 1 – Flow chart com elegibilidade, inclusão e exclusão de artigos.
Os autores relatam que os estudos selecionados na revisão sugerem alta infectividade por contato e por gotículas, no entanto, afirmam não haver em sua amostra nenhum estudo clínico que demonstre carga viral presente no aerossol, não sendo possível a definição de uma “dose” infectante, mas afirma que isso pode corresponder a algumas centenas de partículas virais. Entenda-se por “dose” a menor quantidade de partículas virais necessárias para iniciar uma infecção.
Abaixo, estão listadas algumas afirmações colocadas pelos autores em sua discussão:
- Não se isolou vírus em amostras fecais, independente da concentração de RNA viral nas fezes.
- Não há relato de casos de transmissão fecal-oral até o momento, apesar da presença de RNA viral em amostras fecais.
- O pico de concentração viral, nas diversas amostras ocorre antes do 5º dia de sintomas, sugerindo a patogenicidade e infectividade em período de sintomas discretos, semelhantes aos de outras infecções respiratórias altas.
- Quanto ao risco de infecção, a endoscopia digestiva alta diagnóstica ou terapêutica é um procedimento de alto risco, sendo a endoscopia baixa considerada de risco baixo a moderado.
- O estudo reconhece como conflitantes as evidências de que há aerossolização durante procedimentos endoscópicos, mas reforça a necessidade de medidas para redução do risco de contaminação por essa via.
- Afirma não haver relatos confirmados de transmissão por aerossol.
- Cita as recomendações da OMS quanto à necessidade de troca de ar nos ambientes. Menciona, sem maior detalhamento, que para circulação segura, sem máscara FFP3, deve haver troca de, ao menos, 6 vezes o volume de ar, sendo de 12 vezes em ambientes com pressão negativa.
- Cita ainda que, em amostras de escarro, a carga viral média é de 7 x 106 cópias/ml e que amostras com carga menor que 106 nunca resultaram em isolamento de vírus viável, sugerindo uma possível “dose” capaz de gerar replicação e infecção clínica.
Figura 2 – Agregado das amostras e dias de início dos sintomas.
Figura 3 – Resultados agregados de sucesso de isolamento viral em diferentes dias desde o início dos sintomas.
Figura 4 – Sucesso de isolamento viral e carga viral da amostra.
A revisão apresenta dificuldades para trazer, de fato, luz ao assunto, seja por limitações em seu desenho, seja pela escassez de informações na literatura.
Em resumo, as evidências que sustentam o papel da aerossolização como via de transmissão de COVID-19 na prática endoscópica são limitadas até o momento e o assunto ainda carece de melhor entendimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Harding H, Broom A, Broom J. Aerosol-generating procedures and infective risk to healthcare workers from SARS-CoV-2: the limits of the evidence. J Hosp Infec 105, 4, P717-725, Aug 01, 2020.https://doi.org/10.1016/j.jhin.2020.05.037
- Johnston ER, Habib-Bein N, Dueker JM, Quiroz B, Corsaro E, Ambrogio M, et al. Risk of bacterial exposure to the endoscopist’s face during endoscopy. Gastrointest Endosc 2019;89:818e24. https://doi.org/10.1016/j.gie.2018.10.034.
- Hussain A, Singhal T, EL-Hasani S. Extent of infectious SARSCoV-2 aerosolisation as a result of oesophagogastroduodenoscopy or colonoscopy. Br J Hosp Med. 2020. https://doi.org/10.12968/hmed.2020.0348
Como citar esse artigo:
Rodrigues R. Aerossóis e transmissibilidade na prática endoscópica: a dúvida que paira no ar. Endoscopia Terapêutica; 2020. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/artigoscomentados/aerossois-e-transmissibilidade-na-pratica-endoscopica-a-duvida-que-paira-no-ar/
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Doutorado em Ciências da Saúde pela UNIFESP (2011).
Mestrado em Ciências da Saúde pela UNIFESP (2005)
Visiting fellow University of Pittsburgh Medical Center – UPMC e Universidade de Kobe, Japão
Coordenador médico do setor de endoscopia e motilidade digestiva - Fleury Medicina e Saúde.
HEAD de Especialidades Médicas - Fleury Medicina e Saúde.
Residência Gastroenterologia HC-UFPE 2001