Microlitíase biliar e dispepsia

Introdução

A microlitíase biliar é uma entidade identificada e descrita a relativamente pouco tempo, ainda sendo tema de muita controvérsia na literatura, desde sua definição e diagnóstico até sua relevância clínica e manejo. Com o aumento da disponibilidade do exame de ecoendoscopia e a consequente ampliação das indicações e solicitações deste exame, tornou-se uma condição cada vez mais identificada em uma população muito heterogênea de pacientes, que varia desde pacientes com obstrução das vias biliares, passando por pacientes com dor abdominal ou dispepsia, chegando até pacientes assintomáticos em exames “de rotina” ou indicados por outros motivos. Tal situação nos faz questionar, investigar e revisitar o conceito e o manejo desta condição que se torna cada vez mais presente no nosso dia a dia.

Já foi discutido anteriormente a questão da microlitíase biliar e do barro biliar neste portal, onde foram apontadas as diferenças ecográficas das duas entidades consideradas no nosso meio e possíveis condutas, bem como a relevância da microlitíase biliar no contexto da investigação etiológica da pancreatite aguda.

Neste artigo, avaliaremos as definições mais aceitas na literatura bem como as controvérsias ainda não resolvidas e discutiremos a relação entre a microlitíase biliar e sintomas dispépticos.

Definição

As definições para microlitíase biliar e barro biliar variam imensamente na literatura, e vão desde descrições distintas para as duas entidades, passando por autores que as tratam como sinônimos, até publicações que ignoram uma ou outra entidade.

Para tentar resolver esse problema facilmente identificável na literatura, Żorniak e col. (1) publicaram um consenso sobre o tema em 2023. O estudo contou com três principais etapas de elaboração: inicialmente foi realizada uma revisão sistemática da literatura que identificou 69 artigos originais e 26 artigos de revisão que definiam “microlitíase biliar” e “barro biliar”; em um segundo momento, 30 “experts” em ecoendoscopia foram consultados através de um questionário sobre o tema; por fim, as definições mais aceitas foram organizadas e revalidadas pelos autores, passando por uma última etapa de votação.

Para demonstrar a heterogeneidade na literatura, cito alguns dos descritores mais encontrados nesta revisão:

– Microlitíase biliar: “sinal/foco/forma hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior”, “sinal/foco/forma hiperecoica necessariamente com sombra acústica posterior”, “sinal/foco/forma hiperecoica necessariamente sem sombra acústica posterior”, “imagem ecogênica móvel sem sombra acústica posterior”.
Em relação ao tamanho, os estudos variaram desde <1mm até <10mm, porém a grande maioria definiu entre <3mm ou <5mm.

– Barro biliar: “substância fluida”, “nível fluido”, “múltiplos cálculos sem sombra acústica posterior”, “conteúdo em camadas na porção pendente da vesícula”, “conteúdo de baixa amplitude ecográfica”, “imagens hiperecoicas móveis sem combra acústica porterior”, “agregado hiperecoico sem sombra acústica posterior”, “material um pouco hiperecoico móvel”, “material ecogênico homogêneo”, “material ecogênico heterogêneo”.

Observa-se tanto uma sobreposição quanto uma troca ou mistura de definições entre as duas entidades na literatura especializada.

Com a difícil missão de determinar um consenso, os autores chegaram nas seguintes definições (original em inglês e respectiva tradução pelo autor deste artigo):

  • Microcálculo biliar: “calculi in the biliary tract and gallbladder of ≤5 mm in diameter with acoustic shadowing” / “cálculo nas vias biliares ou vesícula biliar com sombra acústica posterior com diâmetro menor ou igual 5mm”
  • Barro biliar: “Discrete, hyperechoic material inside the gallbladder or the bile duct, without acoustic shadowing, which sediments in the most dependent part of the gallbladder.” / “Material discretamente hiperecoico, sem sombra acústica posterior, com sedimentação na parte mais pendente da vesícula biliar”
  • Cálculo biliar: “calculi in the biliary tract and gallbladder of >5 mm in diameter with acoustic shadowing” / “cálculo nas vias biliares ou vesícula biliar com sombra acústica posterior com diâmetro maior que 5mm”

Em outro trabalho, Quispel e col. (2) estudaram o grau de concordância entre ecoendoscopistas em relação a microlitíase biliar e barro biliar. Eles avaliaram a concordância entre 41 ecoendoscopistas “experts” utilizando 30 vídeos. As definições aceitas neste trabalho foram (original em inglês e tradução do autor deste artigo):

  • Barro biliar (“sludge”): “Layered, cloud shaped, mobile echoic bile duct content, without acoustic shadowing” / “conteúdo ecogênico móvel em camadas sem sombra acústica posterior”
  • Microlitíase biliar (“microlithiasis”): “Hyperechoic circumscript bile duct content, < 3mm with or without acoustic shadowing” / “imagem hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior menor que 3mm”
  • Cálculo biliar (“stones”): “Hyperechoic circumscript bile duct content, ≥ 3mm with or without acoustic shadowing” / “imagem hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior maior ou igual a 3mm”

Neste estudo, houve uma concordância interobservador considerada moderada para um ou mais cálculos biliares – kappa de Fleiss (IC95%) 0,46 (0,13-0,78) -, fraca para microlitíase – kappa de Fleiss (IC95%) 0,25 (0,07-0,43) – e muito fraca para barro biliar – kappa de Fleiss (IC95%) 0,16 (0,07-0,25).

Em nosso meio, tendemos a definir de forma diferente tanto do consenso publicado quanto do estudo de Quispel e col., como demonstrado no artigo publicado previamente (“Microcálculos e barro biliar – Quais seus valores para a prática clínica?”) e no último manual de ecoendoscopia da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (SOBED) (3).

Microcálculos/microlitíase: imagem móvel, hiperecoica, sem sombra acústica posterior e ≤3mm

Microlitíase biliar

Barro biliar: conteúdo ecogênico móvel, sem sombra acústica posterior, com formação de nível.

Barro biliar

Cálculo: imagem hiperecoica com sombra acústica posterior, independentemente do tamanho (podem ser chamados de cálculos pequenos se menores que 5mm).

Cálculo biliar

No entendimento do autor deste artigo, as definições que utilizamos no nosso meio apresentam maior correlação com os achados ecográficos e com os diferentes perfis de pacientes. Porém, com a publicação do consenso, caso a comunidade de ecoendoscopistas passe a utilizar a classificação proposta, a tendência será unificar os achados que hoje consideremos em nosso meio “microlitíase biliar” e “barro biliar” denominando ambos como “barro biliar”, enquanto o termo “microlitíase biliar” será utilizado para cálculos pequenos ≤5mm.

De qualquer forma, o mesmo consenso fez um levantamento retrospectivo que mostrou que não há diferença em relação a gravidade da pancreatite aguda biliar, independente de qual entidade biliar (cálculo, microcálculo ou barro) esteja relacionada ao evento, e alguns autores consideram que barro biliar e microlitíase biliar compartilham a mesma significância clínica (4).

Por fim, acreditamos que ainda haverá discussões na literatura para estabelecimento das definições para que haja uma melhor comunicação tanto entre os ecoendoscopistas, quanto entre médicos assistentes/solicitantes, e também na própria literatura, afim de homogeneizar a nomenclatura para estudos futuros. Dessa forma, até uma pacificação sobre o tema na literatura, sugere-se aos ecoendoscopistas descreverem os achados com precisão no corpo do laudo e realizar adequada documentação de imagens, para que o médico assistente/solicitante tenha ferramentas para interpretar corretamente os achados e tomar as melhores condutas cabíveis em cada caso, independente da definição utilizada na conclusão do laudo.

Microlitíase biliar e sintomas dispépticos

Como comentado na introdução deste artigo, com o aumento da disponibilidade da ecoendoscopia, os pedidos de exame para pacientes com sintomas dispépticos variados se tornaram parte importante da agenda de ecoendoscopia nos grandes centros, com identificação de “microcálculos/barro biliar” em um amplo perfil de pacientes e levando muitas vezes a indicação de colecistectomia. Tal cenário nos faz questionar o papel da ecoendoscopia para este perfil de pacientes, a indicação da colecistectomia e a relação com os sintomas apresentados.

Montenegro e col. (4) estudaram retrospectivamente pacientes com sintomas dispépticos variados, encaminhados para realização de ecoendoscopia após resultados negativos para litíase biliar por ultrassonografia abdominal, que foram diagnosticados com microlitíase e/ou barro biliar na ecoendoscopia e submetidos a colecistectomia. Eles excluíram pacientes assintomáticos e pacientes que tiveram qualquer complicação relacionada a litíase biliar (pancreatite, colangite, colestase ou colecistite).

Neste artigo, os autores utilizaram a seguinte definição (original em ingês e tradução do autor deste artigo):
            – Minilithiasis and/or biliary sludge (minilitíase e/ou barro biliar): “the presence of isoechoic and/or hyperechoic focus without an acoustic shadow less than 5 mm, which could be viewed with or without a massage in the epigastrium or right hypochondrium” / “presença de focos isoecoicos e/ou hiperecoicos sem sombra acústica posterior, menores que 5mm, que podem ser visualizados com ou sem compressão do epigástrio ou hipocôndrio direito”

A partir de uma base de dados de 1121 pacientes que realizaram ecoendoscopia entre os anos de 2014 e 2018, foram incluídos 50 pacientes compatíveis com os critérios de inclusão.

Dentre os sintomas relatados, 58% (29/50) apresentavam cólica biliar típica e 42% (21/50) apresentavam sintomas atípicos, sendo estes: dor no quadrante superior direito (24%), epigastralgia + dor no quadrante superior direito (2%), epigastralgia + náuseas/vômitos (6%), epigastralgia isolada (2%), dor abdominal difusa com ou sem distensão (8%).

Setenta porcento dos pacientes (35/50) tiveram remissão dos sintomas após a colecistectomia. No grupo dos pacientes com cólica biliar típica, a remissão foi de 86,2% enquanto no grupo de pacientes com sintomas atípicos foi de 47,6%. No grupo de pacientes com sintomas atípicos, houve diferença importante na resposta ao tratamento de acordo com o sintoma apresentado, notando-se remissão na maior parte dos pacientes com dor no quadrante superior direito e em nenhum dos 4 pacientes com dor abdominal difusa. A tabela abaixo resume os sintomas pré e pós-colecistectomia (tabela 2 do artigo original).

Tabela com sumário dos sintomas pré e pós-colecistectomia de Montenegro e col. (4)

Foi identificada apenas uma (2%) complicação com necessidade de reabordagem pós colecistectomia devido a hemoperitônio e 18% (9/50) de pacientes que evoluíram com diarreia pós colecistectomia.

Os autores concluem que pacientes com quadro de cólica biliar típica com presença de microcálculos/barro biliar à ecoendoscopia devem ser submetidos à colecistectomia, enquanto pacientes com sintomas atípicos devem ser amplamente investigados para descartar outras etiologias antes de serem submetidos a colecistectomia, sendo esta avaliação a chave para uma adequada correlação entre os sintomas e os achados ecográficos e consequente resolução dos sintomas após colecistectomia.

Jang e col. (5) estudaram o uso de medicações litolíticas (Ácidos Quenodesoxicólico e Ursodesoxicólico) para tratamento de pacientes com diagnóstico de dispepsia funcional refratária (DFR). A DFR é definida como sintomas dispépticos sem causa definida, persistentes após tratamento com sintomáticos, sendo difícil a diferenciação entre dispepsia funcional e dispepsia biliar em muitos casos.

Neste estudo prospectivo não-randomizado simples cego, foram incluídos 37 pacientes com diagnóstico de DFR e com exames de Endoscopia Digestiva Alta (EDA), ultrassom de abdome e exame de contratilidade da vesícula biliar normais. Importante notar que não foi realizada ecoendoscopia nos pacientes deste estudo. Foi utilizado uma escala de sintomas chamada de “Escala de sintomas globais de 7 pontos” (“7-point global symptom scale”), que relaciona os sintomas dispépticos com a severidade e impacto na vida do paciente, na qual 1 ponto o paciente refere não ter problemas com os sintomas dispépticos e 7 o paciente apresente um problema muito severo que interfere e limita as atividades diárias. Os sintomas relatados foram dor epigástrica, queimação epigástrica, saciedade precoce e empachamento pós-prandial.

Após 12 semanas de tratamento, a média da escala de sintomas caiu de 5,6 para 2,6, sendo que 94,6% (35/37) referiram algum grau de melhora dos sintomas e apenas 5,4% (2/37) não apresentaram nenhuma melhora.

Os autores concluem que grande parte dos pacientes diagnosticados com DFR podem ter na realidade dispepsia biliar, podendo ser beneficiados com o tratamento proposto com litolíticos. Eles ainda pontuam que a microlitíase biliar não foi adequadamente avaliada no estudo, podendo estar presente em parte ou totalidade dos pacientes que responderam ao tratamento.

Avaliando em conjunto os estudos apresentados, podemos inferir que a microlitíase/barro biliar deve ser considerada no diagnóstico diferencial em pacientes com dispepsia, porém o sucesso do tratamento – seja com colecistectomia ou com litolíticos – depende do tipo de sintoma apresentado e a exclusão de outras etiologias.

É importante considerar que são estudos de baixa qualidade metodológica para avaliar a eficácia do tratamento, mas que apontam para uma possibilidade que deve ser considerada e melhor estudada, preferencialmente com ensaios clínicos randomizados.

Conclusão

A microlitíase biliar é um tema ainda muito controverso, com divergências que vão desde a definição até o tratamento, principalmente quando relacionada a sintomas dispépticos.

Em relação a definição de microlitíase e barro biliar, há um debate que teremos que percorrer para chegarmos a conclusões mais consensuais e compatíveis com os achados do dia a dia. Considerando a literatura disponível, que se mostra ainda muito controversa apesar do esforço em estabelecer um consenso, cabe ao ecoendoscopista descrever e documentar com precisão os achados para que o médico interlocutor consiga identificar corretamente a entidade descrita, independente da definição utilizada.

Em relação a microlitíase/barro biliar e os sintomas dispépticos, alguns estudos de baixa qualidade metodológica sugerem a possibilidade de correlação entre tais entidades e sintomas dispépticos, com possível melhora dos sintomas em parte dos pacientes após colecistectomia ou tratamento com litolíticos. Entretanto é fundamento ressaltar que cada paciente deve ser avaliado com parcimônia, considerando os sintomas apresentados e realizando ampla investigação de outras etiologias mais prováveis, especialmente quando sintomas considerados atípicos para doença biliar são os mais importantes.

Referências

  1. Żorniak, M., Sirtl, S., Beyer, G., Mahajan, U. M., Bretthauer, K., Schirra, J., Schulz, C., Kohlmann, T., Lerch, M. M., Mayerle, J., & LMU Microlithiasis Expert Survey Team (2023). Consensus definition of sludge and microlithiasis as a possible cause of pancreatitis. Gut72(10), 1919–1926. https://doi.org/10.1136/gutjnl-2022-327955
  2. Quispel, R., Schutz, H. M., Hallensleben, N. D., Bhalla, A., Timmer, R., van Hooft, J. E., Venneman, N. G., Erler, N. S., Veldt, B. J., van Driel, L. M. J. W., & Bruno, M. J. (2021). Do endosonographers agree on the presence of bile duct sludge and the subsequent need for intervention?. Endoscopy international open9(6), E911–E917. https://doi.org/10.1055/a-1452-8919
  3. De Araújo W.C., Nahoum R.G., Como eu faço: pesquisa de pancreatite idiopática. In: Salomão B.C., Moura E.G.H.M. Ecoendoscopia como eu faço? / núcleo de ecoendoscopia SOBED – São Paulo : Editora dos Editores, 2023. Cap. 5 p.87-96
  4. Montenegro, A., Andújar, X., Fernández-Bañares, F., Esteve, M., & Loras, C. (2022). Usefulness of endoscopic ultrasound in patients with minilithiasis and/or biliary sludge as a cause of symptoms of probable biliary origin after cholecystectomy. Gastroenterologia y hepatologia45(2), 91–98. https://doi.org/10.1016/j.gastrohep.2021.03.010
  5. Jang, S. I., Lee, T. H., Jeong, S., Kwon, C. I., Koh, D. H., Kim, Y. J., Lee, H. S., Do, M. Y., Cho, J. H., & Lee, D. K. (2022). Efficacy of Chenodeoxycholic Acid and Ursodeoxycholic Acid Treatments for Refractory Functional Dyspepsia. Journal of clinical medicine11(11), 3190. https://doi.org/10.3390/jcm11113190

Como citar este artigo

Proença IM. Microlitíase biliar e dispepsia. Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/microlitiase-biliar-e-dispepsia/




Antrombóticos (Antiagregantes e Anticoagulantes): Manejo na Endoscopia

O termo antitrombótico compila as drogas que possuem efeito antiagregante plaquetário ou anticoagulante. Muitos pacientes têm feito uso dessas medicações contínuas em situações clínicas como fibrilação atrial, implante de valvas mecânicas, trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar.

Visando redução dos riscos e um uso adequado das drogas antitrombóticas periprocedimentos, incluindo aqueles com abordagens endoscópicas, faz-se necessário um adequado entendimento dos processos de hemostasia, dos mecanismos de ação dessas medicações, suas indicações de uso, farmacocinética e abordagem em caso de sangramento. Para tal, as condutas citadas serão baseadas nos Guidelines da American Society for Gastrointestinal Endoscopy (ASGE) e European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) [1,2].

Mecanismos de Coagulação

A hemostasia primária é o processo inicial da coagulação desencadeado pela lesão vascular. Imediatamente, mecanismos locais produzem vasoconstrição, alteração da permeabilidade vascular com produção de edema, vasodilatação dos vasos tributários da região em que ocorreu a lesão e adesão das plaquetas. O endotélio do vaso lesionado libera difosfato de adenosina, serotonina e tromboxano A2. As plaquetas respondem a essas citocinas com a expressão de glicoproteína IIb/IIIa e junto à molécula de adesão celular plaqueta endotélio tipo 1 levam a formação de um tampão plaquetário inicial (Figura 1).

Figura 1: Início de agregação plaquetária em área de lesão de vaso (adaptado de National Bleeding Disorders Foundation – hemophilia.org)

Na hemostasia secundária, a coagulação sanguínea consiste na conversão de uma proteína solúvel do plasma, o fibrinogênio, em um polímero insolúvel, a fibrina, por ação de uma enzima denominada trombina (Figura 2).

Figura 2: Formação de fibrina em lesão tecidual (adaptado de National Bleeding Disorders Foundation – hemophilia.org)

Isso ocorre com a exposição do fator tecidual no local da lesão endotelial junto com as cascatas de coagulação em suas vias intrínseca e extrínseca (Figura 3).

Figura 3: Formação de fibrina em lesão tecidual (adaptado de Parekh et al. Am J Gastroenterol 2014) [3]

Drogas Antitrombóticas

Além das drogas antigas como a Varfarina, um antagonista da vitamina K com ação anticoagulante, e o ácido acetil salicílico (AAS), um inibidor da ciclooxigenase com efeito antiagregante plaquetário, temos novas classes de drogas que serão discutidas a seguir.

Antiagregante plaquetários: Tienopiridinas

As tienopiridinas atuam como antagonistas do receptor P2Y12, inibindo a agregação plaquetária dependente da adenosina difosfato que é liberada após a lesão endotelial, durante a hemostasia primária. As principais drogas desse grupos são Clopidogrel (Plavix), Prasugrel (Effient) e Ticagrelor (Brillinta).

Antiagregante plaquetários: Inibidores da GPIIbIIIa

Os inibidores do complexo glicoprotéico IIb/IIIa constituem classe heterogênea de fármacos capazes de bloquear a via final comum da agregação plaquetária. Para uso clínico, por via endovenosa, constituído por: Tirofiban (Aggrastat), Abciximab (ReoPro) e Eptifibatide (Integrilin).

– Anticoagulante: Varfarina e Heparinas

Apesar de possuir largo tempo de utilização e efetividade bem definida, a Varfarina (Warfarin, conhecido como Coumadin e Marevan) possui algumas desvantagens frente às novas drogas anticoagulantes que são: sua estreita janela terapêutica e margem de segurança necessitando de monitorização laboratorial frequente, inicio lento de ação, com alcance de faixa terapêutica somente após alguns dias em muitos casos, e a potencial influência da dieta e outras medicações na sua atividade.   Por outro lado, é uma droga difusamente conhecida, com potencial de reversão dos seus efeitos de modo rápido e fácil com uso de vitamina K ou mesmo plasma.

Já as heparinas interagem com a antitrombina, um anticoagulante natural que inativa os fatores IXa, Xa e XIa, aumentando o efeito deste anticoagulante em mais de 1000 vezes. Representando pela Heparina não fracionada (HNF) e as de baixo peso molecular (HBPM), devido ao seu tempo de meia-vida curto, elas são utilizadas como método de ponte: troca de anticoagulante de longa duração por curta em procedimentos de alto risco.

 – Anticoagulante: Inibidores Xa

Representando pela Rivaroxabana (Xarelto), os inibidores do fator Xa inibem competitivamente o fator X ativado e atuam da cascata como um todo, já que o fator X unifica as vias intrínseca e extrínseca da coagulação. Ao se associar com o fator Va o fator X forma um complexo chamado protrombinase que atua na transformação da protrombina em trombina. A rivaroxabana atua prevenindo a formação da protrombinase e consequentemente da trombina.

 – Anticoagulante: Inibidores diretos da Trombina

Os inibidores diretos da trombina são representados pelas drogas Bivalirudina (Angiomax) e Dabigatran (Pradaxa). A Bivalirudina é um droga utilizada principalmente em procedimentos de intervenção coronariana percutânea. Já o Dabigatran é uma droga aprovada na prevenção de isquemia cerebral em casos de fibrilação atrial não valvular e no tromboembolismo venoso.

Vide resumo da tabela abaixo com o tempo de duração dos antitrombóticos equivalente ao tempo de suspensão caso seja indicado (Tabela 1).

Tabela 1: Tempo de duração e suspensão das drogas antitrombóticas (Comissão Científica SOBED 2017-2018).

Manejo Endoscópico

Com base nos conceitos acima, a forma como iremos abordar quaisquer procedimentos endoscópicos baseiam-se na janela terapêutica: em que há menor risco de sangramento (baixo risco do procedimento ou suspensão da medicação antitrombótica) versus o risco tromboembólico (doença trombótica de base), ilustrado na Figura 4.

Figura 4: Ilustração da janela terapêutica (modificado de Huo et al., Science Bulletin, 2019) [4].

Para isso, devemos inicialmente avaliar o risco versus benefício e adiar, quando possível, os procedimentos eletivos até que a terapia antitrombótica de curto prazo seja concluída. Antes da suspensão de qualquer medicação antitrombótica, o paciente deverá realizar avaliação com seu médico prescritor quanto à suspensão das medicações e indicação do exame.

Sendo um exame indicado, o primeiro passo é seguir com estratificação de risco de sangramento do procedimento, seguido de estratificação de risco tromboembólico e conduta.

Risco de sangramento do procedimento

BAIXO Risco de Sangramento ALTO Risco de Sangramento
Procedimentos diagnósticos com ou sem biópsia Polipectomia endoscópica
CPRE com passagem de prótese biliar
ou pancreática (Sem esfincterotomia)
CPRE com esfincterotomia
Colocação de próteses esofágicas, enterais ou colônicas Ampulectomia
Ecoendoscopia diagnóstica Mucosectomia e ESD
Dilatação de estenose
Tratamento de varizes
Gastrostomia endoscópica
Ecoendoscopia com punção ou terapêutica
Ablação esofágica ou gástrica
Tabela 2: Estratificação de risco de sangramento do procedimento

Risco tromboembólico

Baixo Risco Tromboembólico Alto Risco Tromboembólico
Válvula cardíaca biológica Válvula cardíaca metálica mitral ou aórtica
Válvula cardiáca com Fibrilação Atrial
Fibrilação Atrial com Estenose Mitral
Fibrilação Atrial Sem Alto Risco (CHADS 2  ≤ 4 pontos):
* Insuficiência cardíaca (1 ponto)
* Hipertensão (1 ponto)
* Idade > 75 anos (1 ponto)
* Diabetes mellitus (1 ponto)
* AVE ou AIT (2 pontos)
Fibrilação Atrial Com Alto Risco
(CHADS 2  >4 pontos)
Fibrilação Atrial com AVE ou AIT com menos de 3 meses
TVP com mais de 3 meses de tratamento TVP com menos de 3 meses de tratamento
Tabela 3: Estratificação de risco tromboembólico

Conduta

  • Procedimentos de BAIXO Risco de Sangramento:

    • Mantém antiagregação;
    • Mantém Varfarina se dentro da faixa terapêutica, caso contrário, aguardar correção de dose com especialista;
    • Suspender outros anticoagulantes somente no dia;

  • Procedimentos de ALTO Risco de Sangramento e BAIXO Risco Tromboembólico:

    • Suspender Clopidogrel, Ticagrelol ou Prasugrel 7 dias antes e reiniciar 1 a 2 dias após procedimento, mantendo sempre o AAS;
    • Suspender anticoagulantes orais diretos (DOAC – Direct Oral AntiCoagulants: Dabigatrana, Rivaroxabana, Apixabana e Edoxabana) 3 dias antes, sendo 5 dias se doença renal com clearance de 30-50mL/min, e retomar em 2 a 3 dias após procedimento;
    • Suspender Varfarina 5 dias antes (checar se INR<1,5 antes do exame) e retomar dose usual ao fim do dia do procedimento.

  • Procedimentos de ALTO Risco de Sangramento e ALTO Risco Tromboembólico:

    • Suspender Clopidogrel, Ticagrelol ou Prasugrel 7 dias antes e reiniciar 1 a 2 dias após procedimento, mantendo sempre o AAS;
    • Suspender anticoagulantes orais diretos (DOAC – Direct Oral AntiCoagulants: Dabigatrana, Rivaroxabana, Apixabana e Edoxabana) 3 dias antes, sendo 5 dias se doença renal com clearance de 30-50mL/min, e retomar em 2 a 3 dias após procedimento;
    • Realizar ponte de anticoagulação: Suspender Varfarina 5 dias antes, com início de HBPM (Enoxaparina) 3 dias antes do procedimento, seguida de suspensão no dia do procedimento. Retomar o uso da Varfarina ao fim do dia do procedimento, mantendo a HBPM até faixa de INR terapêutica.

  • Manter AAS em todos os casos, principalmente para prevenção secundária. As exceções são: suspender imediatamente em quadro agudo de sangramento, prevenção primária que poderá ser suspensa 5 dias antes em procedimentos de alto risco de sangramento e, segundo a ESGE, suspender para ampulectomia. [1,5]
  • Em casos de alto risco trombóticos de pacientes com stent coronariano ou dúvidas do risco tromboembólico, recomenda-se avaliação do cardiologista para manejo de antiagregação e anticoagulação.

Referências:

  1. Veitch AM, Radaelli F, Alikhan R, et al. Endoscopy in patients on antiplatelet or anticoagulant therapy: British Society of Gastroenterology (BSG) and European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) guideline update. Endoscopy. 2021 Sep;53(9):947-969. doi: 10.1055/a-1547-2282. Epub 2021 Aug 6. PMID: 34359080; PMCID: PMC8390296.
  2. ASGE Standards of Practice Committee; Acosta RD, Abraham NS, et al. The management of antithrombotic agents for patients undergoing GI endoscopy. Gastrointest Endosc. 2016 Jan;83(1):3-16. doi: 10.1016/j.gie.2015.09.035. Epub 2015 Nov 24. Erratum in: Gastrointest Endosc. 2016 Mar;83(3):678. PMID: 26621548.
  3. Parekh PJ, Merrell J, Clary M, Brush JE, Johnson DA. New anticoagulants and antiplatelet agents: a primer for the clinical gastroenterologist. Am J Gastroenterol. 2014 Jan;109(1):9-19. doi: 10.1038/ajg.2013.228. PMID: 24402526.
  4. Huo Y, Jeong YH, Gong Y, et al. 2018 update of expert consensus statement on antiplatelet therapy in East Asian patients with ACS or undergoing PCI. Sci Bull (Beijing). 2019 Feb 15;64(3):166-179. doi: 10.1016/j.scib.2018.12.020. Epub 2018 Dec 28. PMID: 36659616.
  5. Biondi-Zoccai GG, Lotrionte M, Agostoni P, et al. A systematic review and meta-analysis on the hazards of discontinuing or not adhering to aspirin among 50,279 patients at risk for coronary artery disease. Eur Heart J. 2006 Nov;27(22):2667-74. doi: 10.1093/eurheartj/ehl334. Epub 2006 Oct 19. PMID: 17053008.

Como citar este arquivo

Kum AST e Medrado B. Antrombóticos (Antiagregantes e Anticoagulantes): Manejo na Endoscopia. Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/antromboticos-antiagregantes-e-anticoagulantes-manejo-na-endoscopia/




Stents de aposição de lúmen nas drenagens de coleções fluidas pancreáticas e risco de sangramento – onde estamos?

Desde a introdução dos stents metálicos de aposição de lúmen (LAMS) em 2012, as aplicações e usos desses dispositivos têm crescido constantemente. Eles têm sido empregados em uma ampla variedade de procedimentos, incluindo o tratamento de estenoses gastrointestinais luminais, para cistogastrostomia e necrosectomia endoscópica direta, para drenagem da vesícula biliar e para gastrojejunostomia.

Os LAMS estão sendo cada vez mais preferidos em relação aos stents plásticos (duplo pigtail) para pacientes submetidos à drenagem ecoguiada de coleções fluidas pancreáticas (PFC) por possuírem implantação tecnicamente fácil e amplo lúmen que facilita o rápido escoamento do conteúdo do cisto, no entanto, foram relatados eventos adversos tardios, como sangramento, migração e sepultamento do stent. A maioria dos estudos que descreve tais complicações não foi prospectiva e as definições utilizadas não foram uniformes, o que limita a padronização dos eventos adversos relacionados aos LAMS. Clique aqui para rever a Classificação de Atlanta para coleções fluidas peripancreáticas.

Uma auditoria de um ensaio clínico randomizado comparando a eficácia dos LAMS com stents plásticos de duplo pigtail relatou uma taxa inesperadamente alta de sangramento grave. O estudo observou que 10 de 31 pacientes (32,2%) no braço de tratamento LAMS tiveram complicações, incluindo três episódios de sangramento tardio começando três semanas após a colocação do stent. 1 O protocolo do estudo foi alterado e foi postulado que os stents plásticos tendem a gravitar em direção ao lúmen paulatinamente enquanto os LAMS poderiam ocasionar um rápido colapso da cavidade, resultando no risco de contato entre os vasos retroperitoneais e a flange distal do stent. O atrito prolongado poderia gerar erosão e ruptura dos vasos, causando sangramento agudo grave. Considerando essa hipótese, o tempo de permanência do stent além de 4 semanas foi relatado como um preditor de sangramento tardio e formou-se consenso para remoção do mesmo antes deste prazo na prática clínica. Todavia, essa recomendação é baseada principalmente em dados de uma coorte de centro único, limitando a generalização dos resultados. 1, 2

Um estudo de coorte prospectivo com revisão sistemática sobre eventos hemorrágicos após a colocação de LAMS compilou 21 estudos envolvendo 1.378 pacientes com uma taxa de sangramento de 3,8% (52/1378), dos quais 46,2% (24/52) ocorreram na primeira semana após a colocação de LAMS. A conclusão após análise dos casos publicados foi de que o risco de sangramento estaria relacionado a fatores inerentes ao próprio procedimento ao invés do tempo de permanência do stent, inferindo que um protocolo de remoção precoce dos LAMS para PFC é eficaz em prevenir tal desfecho. 3

Em 2022 foi publicada a análise retrospectiva do maior banco de dados multicêntrico (1.018 pacientes) existente sobre o uso de LAMS para drenagem de PFC (18 unidades do Reino Unido e Irlanda), aumentando o conhecimento neste cenário. Nenhum dos fatores analisados, como tipo (WON versus pseudocisto), tamanho da coleção (≤10 cm versus >10 cm) ou tempo de remoção do stent (≤4 semanas versus 4–8 semanas versus >8 semanas), mostrou correlação com eventos adversos tardios. Esses resultados fornecem mais evidências indiretas para manutenção da LAMS in situ além de 4 semanas, caso necessário clinicamente. 4

Para mais informações de manejo pós-drenagem ecoguiada de coleções peripancreáticas: clique aqui.

O uso de LAMS para o manejo das PFC tem excelentes taxas de sucesso técnico e clínico, no entanto, o índice de eventos adversos não é desprezível e deve ser cuidadosamente considerado antes das drenagens, em particular para WON. A prorrogação da sua permanência às vezes é necessária em pacientes com necrose pancreática extensa que obtém melhora clínica discreta ao cabo de 4 semanas. Até que haja mais estudos prospectivos para elucidarem este dilema, as descobertas de um grande conjunto de dados da vida real (banco de dados multicêntrico) acrescentam-se à literatura existente sobre o manejo dos LAMS para a drenagem de PFC e apoiam seu uso estendido em pacientes onde clinicamente indicado, desde que haja supervisão estreita.

Imagens de Necrosectomia Endoscópica Direta em paciente com WON após drenagem através de LAMS

Referências

  1. Bang JY, Navaneethan U, Hasan MK, et al. Non-superiority of lumen-apposing metal stents over plastic stents for drainage of walled-off necrosis in a randomised trial. Gut. 2018;68:1200–1209.
  2. Bang JY, Hasan M, Navaneethan U, et al. Lumen-apposing metal stents (LAMS) for pancreatic fluid collection (PFC) drainage: may not be business as usual. Gut. 2017;66(12):2054–2056.
  3. Waseem Ahmad, Syed A. Fehmi, Thomas J. Savides, Gobind Anand, Michael A. Chang, Wilson T. Kwong. Protocol of early lumen apposing metal stent removal for pseudocysts and walled off necrosis avoids bleeding complications. Scand J Gastroenterol. 2020 Feb;55(2):242-247.
  4. Manu Nayar , John S Leeds , UK & Ireland LAMS Colloborative, Kofi Oppong. Lumen-apposing metal stents for drainage of pancreatic fluid collections: does timing of removal matter? Gut 2022;71:850–853.

Como citar este artigo

Ribeiro MSL. Stents de aposição de lúmen nas drenagens de coleções fluidas pancreáticas e risco de sangramento – onde estamos? Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/stents-de-aposicao-de-lumen-nas-drenagens-de-colecoes-fluidas-pancreaticas-e-risco-de-sangramento-onde-estamos/




Paciente sem pedido médico solicitando exame: o que faço?

Paciente comparece para realizar exame endoscópico com você mas está sem pedido médico, seja por ter esquecido ou por simplesmente desejar fazer o exame por conta própria. Com certeza, isso já aconteceu com todos que fazem exame diagnóstico. E agora, você pode fazer o exame sem pedido médico? E se você mesmo fizer o pedido do exame que você irá realizar no paciente?

Neste artigo veremos algumas decisões, dentre várias de mesmo sentido, sobre casos como este.

O artigo 37 do Código de Ética Médica proíbe prescrever tratamentos ou procedimentos sem atendimento ao paciente: “É vedado ao médico: prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente depois de cessado o impedimento, assim como consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa”.

O parecer CFM no 18/15, faz os seguintes apontamentos: da Lei nº 12.842, de 10/07/13: “art. 2º, parágrafo único, item II: “O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção à saúde para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças” e “no art. 4º, parágrafo 4º: São atividades privativas do médico: III – indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias”.

O mesmo parecer argumenta:” O diagnóstico de uma doença humana é um ato complexo de raciocínio, que envolve informações colhidas da anamnese, observações clínicas através do exame físico e, quando necessário, informações adicionais através de exames complementares que auxiliam o médico em seu diagnóstico” e define “Quando um paciente, seja particular, usuário do SUS ou de operadora de plano de saúde, no exercício de sua autonomia, solicita a um médico que seja realizado um determinado exame complementar, este profissional somente poderá realizá-lo sem a requisição do médico assistente do paciente, se assumir inteira responsabilidade profissional sobre o ato praticado”, concluindo que “No caso referido, em que se trata de demanda espontânea, a consulente só poderá realizar o exame questionado, e outros que configurem ato médico, se assumir a  responsabilidade pela solicitação, pelo procedimento e pela orientação ao paciente dos cuidados necessários.”

O parecer do CREMESP emitido em 05/03/2020, para a consulta n0 238.116/18, sobre a criação de plataforma on-line para gerar pedido de exame, esclarece que “Primeiramente, cumpre esclarecer que o médico tem o dever de elaborar o prontuário para cada paciente a que assiste, conforme previsto no art. 87 do Código de Ética Médica (…)” e analisa o disposto no art. 50 da Resolução do CFM no 1.638/02, sobre os itens que deverão constar obrigatoriamente no prontuário confeccionado em qualquer suporte, eletrônico ou papel: “(…); b. Anamnese, exame físico, exames complementares solicitados e seus respectivos resultados, hipóteses diagnósticas, diagnóstico definitivo e tratamento efetuado (…)”, concluindo que “nos prontuários médicos devem constar o exame físico realizado no paciente no ato da consulta , e que a consulta deve sempre preceder a solicitação de qualquer exame complementar”.

Resumindo o que foi exposto: devemos ter em mente que a solicitação de um exame é parte de todo um procedimento para diagnóstico de um quadro apresentado pelo paciente na consulta: anamnese, exame físico, hipóteses diagnósticas, exames solicitados e posteriormente, condutas, sendo obrigatória a confecção do prontuário do paciente. Assim, é necessário o pedido médico para a realização do exame, que pode ser feito pelo mesmo profissional que irá fazer o exame. Neste caso, ele assumirá a responsabilidade pelo paciente, devendo também confeccionar o prontuário.

Referências:

  1. https://portal.cfm.org.br/leis/lei-12-842-dispoe-sobre-o-exercicio-da-medicina/
  2. https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=17647&tipo=PARECER&orgao=%20Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o%20Paulo&numero=238116&situacao=&data=05-03-2020
  3. https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf
  4. https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2015/18

Como citar este artigo

Brito HP. Paciente sem pedido médico solicitando exame: o que faço? Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/paciente-sem-pedido-medico-solicitando-exame-o-que-faco/




Perda de lesões em endoscopia digestiva alta: encarando a realidade

A endoscopia digestiva alta é o único método diagnóstico capaz de detectar lesões do trato gastrointestinal alto pré neoplásicas (adenomas e displasias) e neoplásicas precoces. Entretanto, mesmo pacientes previamente examinados não estão isentos do risco de detectar neoplasia nesses órgãos durante o seu seguimento de curto e médio prazo.

Conforme dados da World Health Organization, tumores do trato digestivo são detectados em estadio clínico inicial (ECI) na menor parte dos casos no ocidente, com taxas variando entre 7% e 16,9% para tumores esofágicos e entre 10,2 e 18% tumores gástricos.1 O diagnóstico em estágios avançados está diretamente associado à pobre sobrevida em 5 anos – 13% para tumores esofágicos e de 17% para tumores gástricos. Por outro lado, a identificação e o tratamento da doença localizada muda história natural da doença, atingindo taxas de sobrevida em 5 anos acima de 80%.2

Nesse contexto, vários estudos foram realizados para avaliar a taxa de perda de lesões neoplásicas em endoscopias digestivas altas. De forma geral, mas não consensual, define-se como lesão perdida aquela identificada no intervalo de 6 meses até 36 meses após a endoscopia índex. Esse período foi estabelecido considerando-se o tempo de duplicação tumoral gástrico de 2 a 3 anos sugerido por Fujita. Esse intervalo de tempo baseia-se no conceito de que os tumores gástricos podem ser visibilizados em endoscopias até 3 anos antes da sua apresentação clínica inicial. 3

Uma meta-análise de 2022 mostrou que 11,3% das neoplasias esofagogástricas e duodenais foram perdidas em endoscopias digestivas altas.2 Desses casos, 29% dos casos haviam realizado exame em um intervalo de 1 ano e 71% entre 1 e 3 anos do momento do diagnóstico.2

Uma revisão sistemática e metanálise de Pimenta-Melo A.R, et al mostraram resultados semelhantes: 9,4% dos tumores gástricos são potencialmente perdidos. A principal lesão perdida é o adenocarcinoma localizado no corpo gástrico. Os fatores preditivos para falha diagnóstica são: idade mais jovem (<55 anos), sexo feminino sexo, atrofia gástrica acentuada, adenoma ou úlcera gástrica e número inadequado de fragmentos de biópsia. 4

No Japão, foram realizadas endoscopias de seguimento em 44% dos 8.364 pacientes do estudo. Desses, 32 pacientes (0,9%) tiveram diagnóstico de câncer gástrico nos meses subsequentes. A incidência aumentou para 3,9% em pacientes com idade entre 60-69 anos com atrofia acentuada, definida como O2-3 de Kimura-Takemoto. 5

Os principais fatores atribuídos à falha de reconhecimento pelo endoscopista devem-se às alterações discretas na aparência dos tumores superficiais e à exploração incompleta da mucosa devido aos pontos cegos, especialmente em cárdia, pequena curvatura e parede posterior do corpo gástrico. 2,4 Outro fator é a presença de biópsia negativa, apesar da suspeição endoscópica pelo aspecto macroscópico da lesão. 6

O subgrupo de pacientes com lesões gástricas sincrônicas também foi avaliado, mostrando que 23,3% das lesões sincrônicas foram perdidas. Com isso, os autores demonstram a necessidade de uma inspeção cuidadosa da mucosa adjacente, mesmo em pacientes com lesões visíveis. Os principais preditores de risco foram lesões pequenas, adenoma como tipo histológico e àquelas localizadas no terço superior gástrico. 4

Em uma revisão sistemática e meta-análise de 2022, ao avaliar apenas casos de esôfago de Barrett, a taxa de perda de lesões com displasia de alto grau ou adenocarcinoma foi de 26%. Nesse trabalho, foi considerado o intervalo de 1 ano entre a endoscopia índex com esôfago de Barrett (sem displasia, displasia de baixo grau ou indefinida) e a endoscopia que detectou displasia de alto grau ou adenocarcinoma.7 Realizar exame com aparelho de alta definição, dispender 1 minuto de inspeção a cada 1 cm do esôfago de Barrett, utilizar recursos de cromoscopia (virtual e com ácido acético) e identificar adequadamente e registrar fotograficamente os principais marcos anatômicos demonstrou aumento na taxa de detecção dessas lesões. 8

Em um estudo recente (Endoscopy 2022) com base nos registros de câncer da Polônia, a perda média de lesões no trato digestivo alto após uma endoscopia foi de 6% (N=33.241 total), percentual que se manteve estável entre os anos de 2012 e 2018. Foram definidos como tumores perdidos àqueles diagnosticados entre 6 e 36 meses da endoscopia índex. 9 Nesse mesmo trabalho, a maioria das lesões perdidas foram gástricas (81%), seguidas das esofágicas (17%) e duodenais (2%). No esôfago, as taxas de perda de adenocarcinomas e de carcinoma escamoso foram 6,1% e 4,2%, respectivamente. Além disso, estágios mais avançados no momento do diagnóstico foram observados nos pacientes com adenocarcinoma em relação aos tumores escamosos esofágicos. No estômago a taxa global de perda de adenocarcinomas foi de 5,7%. Quanto à localização, a proporção de lesões gástricas perdidas proximais e distais foi semelhante, porém as lesões proximais foram diagnosticadas em estágios mais avançados. Lesões definidas como perdidas (entre 6 e 36 meses) apresentaram-se proporcionalmente em estágios mais avançados em relação às lesões definidas como prevalentes (< 6 meses). Os principais fatores de risco associados à perda de lesões foram exames realizados de forma ambulatorial (RR: 1,3); sexo feminino (RR 1,3); e pacientes com múltiplas comorbidades (Charlson comorbidity index ≥ 5; RR 6). 9

Um estudo escocês mostrou que 73% dos casos de perda de lesões estiveram relacionados ao endoscopista ou ao seguimento: não identificação da lesão (27%); não realização de biópsias (14%); biópsias insuficientes (9%); ou seguimento inadequado (9%).10 Esse mesmo trabalho mostrou que 67% dos pacientes tinham endoscopia prévia em intervalo menor de 1 ano, 13% entre 1 e 2 anos e 20% entre 2 e 3 anos. 10 Cerca de 70% dos tumores esofágicos e gástricos e foram diagnosticados em estadio avançado (EC III e IV). Sintomas de alarme (disfagia, anemia, hematêmese, perda ponderal, vômito) estavam presentes na endoscopia inicial em 75% dos pacientes com tumores esofágicos e 57% daqueles com neoplasias gástricas.10

Entre as principais limitações no diagnóstico de lesões esofagogástricas e duodenais estão os fatores relacionadas ao operador, como a não identificação da lesão, à sedação inadequada, ao preparo inadequado do órgão, à distensibilidade insuficiente das pregas gástricas, a não realização de biópsias ou biópsias insuficientes. Fatores como a experiência do endoscopista e a qualidade dos aparelhos utilizados nos exames também são fatores relevantes, porém pouco estudados. A maioria dos trabalhos possuem dados anteriores à era da cromoscopia e da magnificação. Os principais fatores atribuídos à falha de reconhecimento pelo endoscopista devem-se às alterações discretas na aparência dos tumores superficiais, a baixa suspeição diagnóstica, e à exploração incompleta da mucosa devido aos pontos cegos, especialmente no estômago.

Apesar da endoscopia ter um alto valor preditivo negativo (99,7%)4, pacientes que persistem com sintomas de alarme após uma endoscopia sem achados críticos devem prosseguir a investigação, e aqueles com atrofia acentuada devem repetir a endoscopia anualmente.

Aparelhos com alta definição de imagem e com cromoscopia digital devem ser preconizados. É preciso realizar um preparo adequado, com lavagem e remoção de saliva e bolhas, adequada insuflação e tempo suficiente de inspeção. Ainda, o exame deve ser sistematizado, a fim de identificar discretas alterações da mucosa, caracterizando-as conforme as classificações endoscópicas, realizando a foto documentação (> 25 fotos) e coletando biópsias adequadas. Especial atenção deve ser dada para as seguintes regiões da câmera gástrica: grande curvatura do corpo, antro, incisura angularis e cárdia. Enfim, as boas práticas endoscópicas devem ser preconizadas para não perder a chance de diagnosticar lesões iniciais, passíveis de tratamentos curativos.

Referências

  1. Global Cancer Observatory. Cancer Survival. https://gco.iarc.fr/survival/survmark/.
  2. Menon S, Trudgill N, Open EI, et al. How commonly is upper gastrointestinal cancer missed at endoscopy ? A meta-analysis. 2014:46-50.
  3. Background IH. Biology of Early Gastric Carcinoma I . Historical Background. 1978;9:297-309. doi:10.1016/S0344-0338(78)80028-4
  4. Pimenta-Melo AR, Monteiro-Soares M, Libânio D, Dinis-Ribeiro M. Missing rate for gastric cancer during upper gastrointestinal endoscopy: A systematic review and meta-Analysis. Eur J Gastroenterol Hepatol. 2016;28(9):1041-1049. doi:10.1097/MEG.0000000000000657
  5. Hosokawa O, Watanabe K, Hatorri M, Douden K, Hayashi H, Kaizaki Y. Detection of gastric cancer by repeat endoscopy within a short time after negative examination. Endoscopy. 2001;33(4):301-305. doi:10.1055/s-2001-13685
  6. Hosokawa O. STEKKW. Diagnosis of gastric cancer up to three years after negative upper gastrointestinal endoscopy. Endoscopy. 1998;30(8):669-674.
  7. Sawas T, Majzoub AM, Haddad J, et al. Magnitude and Time-Trend Analysis of Postendoscopy Esophageal Adenocarcinoma: A Systematic Review and Meta-analysis. Clin Gastroenterol Hepatol. 2022;20(2):e31-e50. doi:10.1016/j.cgh.2021.04.032
  8. BasL.A. M.Weusten1, 2, Raf Bisschops3 , Mario Dinis-Ribeiro4, Massimiliano di Pietro5, Oliver Pech6 MCWS, , Francisco Baldaque-Silva8 9, , Maximilien Barret10, Emmanuel Coron11, 12 G-E, Rebecca C. Fitzgerald5, MarnixJansen14 MJ, , Ines Marques-de-Sa4 , ArtiRattan16 WKT, EvaP. D.Verheij17, Pauline A.Zellenrath7, Konstantinos Triantafyllou18 REP. Diagnosis and management of Barrett esophagus: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) Guideline. Endoscopy. 2023;55.
  9. Januszewicz W, Witczak K, Wieszczy P, et al. Prevalence and risk factors of upper gastrointestinal cancers missed during endoscopy: A nationwide registry-based study. Endoscopy. 2022;54(7):653-660. doi:10.1055/a-1675-4136
  10. Witherspoon P, Mccole D. Missed Diagnoses in Patients with Upper Gastrointestinal Cancers. doi:10.1055/s-2004-825853

Como citar este artigo

Casamali C. Perda de lesões em endoscopia digestiva alta: encarando a realidade. Endoscopia Terapeutica 2024, vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/?p=18967




Técnica para neurólise do plexo celíaco por Ecoendoscopia

Introdução

Cerca de metade dos pacientes com neoplasia malignas abdominais apresentam dor crônica, com uma incidência ainda maior em pacientes com câncer gástrico e pancreático em estado avançado (clique aqui para critérios de rastreio de neoplasia pancreática). O mecanismo da dor é multifatorial, com componentes nociceptivo (somático e visceral) e neuropático, sendo este último o mais resistente à terapêutica analgésica. O câncer pancreático apresenta-se com maior propensão para invasão perineural e, portanto, dor neuropática, o que explica uma maior prevalência do sintoma em pacientes com esta doença.

O controle inadequado da dor não prejudica apenas o aspecto da qualidade de vida dos pacientes, mas também está relacionado a desfechos clínicos piores, incluindo uma maior mortalidade.1,2,3

O manejo da dor deve ser feito de maneira multimodal, incluindo o uso de analgésicos não opioides, opioides e moduladores da dor, mas o efeito colateral destas medicações, sobretudo dos opioides (náusea, vômitos, constipação, sonolência, pruridos) é um fator limitante. Outro aspecto que dificulta o controle álgico é a tendência a resistência à ação das medicações e necessidade de aumento progressivo das doses, com consequente aumento dos efeitos colaterais. Neste contexto a neurólise do plexo celíaco (Figura 14) surge como um importante método complementar no tratamento da dor oncológica abdominal, podendo ser indicada também em contexto não oncológico como no caso da pancreatite crônica dolorosa. A intervenção direta no plexo celíaco atua na redução da transmissão dolorosa independente do tipo do sinal (nociceptivo ou neuropático).

Figura 1. Anatomia do plexo celíaco (adaptado de imagem do Dr. Gombosiu C publicada por Seicean A, 2017 4).

A neurólise consiste na destruição permanente do plexo pela injeção de uma substância neurolítica, como o etanol. É importante diferenciar do bloqueio celíaco que se refere a interrupção temporária da transmissão dolorosa pela injeção de corticoides ou anestésicos de longa duração.

Leia também: Estudo multicêntrico, randomizado comparando a neurólise ecoguiada do gânglio celíaco versus a neurólise ecoguiada do plexo celíaco

Técnica

O procedimento de neurólise do plexo celíaco foi classicamente descrito por abordagem posterior guiada por tomografia. Entretanto o advento da Ecoendoscopia, permitiu uma abordagem com menos eventos adversos, mais cômoda aos pacientes, mais custo-efetiva e com a possibilidade de visão em tempo real. A técnica ecoguiada foi descrita por Wiersema et al 5 em 1996.

A preparação do paciente deve levar em consideração avaliação da coagulação e função plaquetária, com descontinuação de agendes anticoagulantes e antiplaquetários, conforme recomendações habituais. As contraindicações relativas e absolutas estão expostas na tabela 1.

Tabela 1. Contraindicações da neurólise celíaca guiada por Ecoendoscopia
Absoluta Relativa
Câncer pancreático ressecável Varizes esofágicas ou gástricas
Coagulopatia (INR > 1,5) Cirurgia gástrica prévia
Plaquetas baixas (< 50.000) Anomalias do tronco celíaco

Devido a perda do tônus simpático, os pacientes podem apresentar hipotensão nos pós procedimento. Assim, há a necessidade de administração de cristaloides venosos no pré, intra e pós procedimento, com monitorização multiparamétrica até momento da alta.

O procedimento ecoguiado por ser feito por injeção única central, com uma agulha com ponta cônica e porção dista multiperfurada projetada especificamente para esta técnica (Agulha EchoTip® Ultra para neurólise do plexo celíaco, Cook Medical – Figura 2), que sendo posicionada acima do tronco celíaco permite que a injeção seja pulverizada em um forma radial e uniforme, ou por agulha standard com duas injeções laterais ao tronco. Devido a maior disponibilidade das agulhas standard, transcrevemos a seguir técnica bilateral, conforme descrição do professor Sergio Eijii Matuguma, professor do serviço de endoscopia digestiva do hospital das clínicas da faculdade de medicina da universidade de São Paulo (HC-FMUSP).

Figura 2. Agulha EchoTip® Ultra para neurólise do plexo celíaco, Cook Medical.

Materiais necessários:

  • 01 agulha fina de aspiração (FNA) 22G;
  • 01 frasco 20 ml de Bupivacaína 0,5%, sem vasoconstrictor;
  • 02 frascos 10 ml álcool absoluto estéril (98% GL);
  • 02 ampolas Soro Fisiológico (SF) 10 ml;
  • 02 seringas 10 ml (para solução de Bupivacaína);
  • 02 seringas 10 ml (para solução de Álcool absoluto);
  • 02 seringas 10 ml (para SF).

Preparo prévio:

  • Bupivacaína 0,25%

    • Aspirar na seringa de 10 ml = Bupivacaína 0,5% 5 ml + 5 ml SF;
    • Total final:  10 ml de Bupivacaína 0,25% ;
    • Preparar 2 seringas da solução.

  • Álcool absoluto estéril

    • Aspirar na seringa de 10 ml = álcool absoluto estéril 10 ml;
    • Total final: 10 ml de álcool;
    • Preparar 2 seringas de álcool.

  • Soro fisiológico

    • Aspirar na seringa de 10 ml = 10 ml SF;
    • Total final: 10 ml de SF;
    • Preparar 2 seringas SF.

  • Agulhas 22G (FNA)

    • Preencher agulha com 3 ml SF (para retirar o ar de dentro da luz da agulha) e deixar conectada a seringa 10 ml com SF.

  • Preparo do paciente

    • Administrar 500 a 1000 ml de ringer lactato IV antes do procedimento.

Sequência da técnica:

  1. Localizar a artéria celíaca;
  2. Memorizar o ponto no espaço retroperitoneal, junto ao ângulo obtuso da emergência da artéria celíaca e parede gástrica. Fixar o ponto (local – Figura 3);
  3. Torque anti-horário (milimétrico) até desaparecer a aorta (para direita da aorta abdominal);
  4. Puncionar o local “espelho” do lado direito que havia fixado, junto ao ângulo obtuso da emergência da artéria celíaca, com agulha 22G (Figura 4);
  5. Injetar 3 ml SF no espaço retroperitoneal (formar um coxim de SF que afasta os vasos arteriais maiores, por exemplo vertebrais);
  6. Seguir com injeção de 10 ml da solução de bupivacaina 0,25%;
  7. Após, injetar de 10 ml de álcool absoluto estéril;
  8. Recolocar a seringa de SF, injetar 3 a 5 ml de SF, a fim de empurrar todo o álcool da luz da agulha;
  9. Remover a agulha;
  10. Para outro lado (à esquerda da aorta), localizar a artéria celíaca;
  11. Memorizar o ponto no espaço retroperitoneal, junto ao ângulo obtuso da emergência da artéria celíaca e parede gástrica. Fixar o ponto (local – Figura 3);
  12. Torque horário (milimétrico) até desaparecer a aorta (para esquerda da aorta abdominal);
  13. Puncionar o local “espelho” do lado esquerdo que havia fixado, junto ao ângulo obtuso da emergência da artéria celíaca, com agulha 22G (Figura 5);
  14. Injetar 3 ml SF no espaço retroperitoneal (formar um coxim de SF que afasta os vasos arteriais maiores, por exemplo vertebrais);
  15. Seguir com injeção de 10 ml da solução de bupivacaína 0,25%;
  16. Após, injeção de 10 ml de álcool absoluto estéril;
  17. Recolocar a seringa de SF e injetar 3 a 5 ml de SF para empurrar todo o álcool da luz da agulha;
  18. Remover a agulha.
Figura 3. Emergência da artéria celíaca (AC) junto à aorta abdominal (Ao). Notar ponto no espaço retroperitoneal, junto ao ângulo obtuso da emergência da artéria celíaca e parede gástrica (elipse).
Figura 4. Ponto de punção à direita da aorta (torque anti-horário à partir da emergência da artéria celíaca).
Figura 5. Ponto de punção à esquerda da aorta (torque horário à partir da emergência da artéria celíaca).

Cuidados pós procedimento:

  • Observar:

    • Hipotensão postural (imediata). Se necessário administrar mais fluidos intravenosos;
    • Dor abdominal (primeiras 48 horas). É esperado pelo efeito de neurólise do álcool;
    • Diarreia transitória (primeiras 48h);
    • Alteração neurológica membros inferiores (primeiras 48h).

  • Após 48h é esperada reduz da dose de opioide, entretanto a maioria dos pacientes ainda necessitará de uso complementar de analgésicos.

Resultados e complicações

O alívio da dor bom ou excelente é esperado em 89% dos pacientes submetidos ao procedimento, nas primeiras 2 semanas, sendo mantida por 3 meses em cerca de 90% destes pacientes e alcançando eficácia significativa de 70 a 90% no momento da morte.6

Apesar de não haver aumento de sobrevida associada ao procedimento, há significativo aumento da qualidade de vida destes pacientes, com melhora do status funcional, capacidade de trabalhar, sono e aproveitamento de atividades de laser.7,8 Esses achados estão associados com a melhora da dor e com a diminuição dos efeitos colaterais associados aos analgésicos opioides.

A maior parte das complicações associadas ao procedimento são leves e transitórias (descritas acima na sessão referente à técnica: hipotensão postural, dor abdominal, diarreia, alteração neurológica em membros inferiores. Entretanto foram descritas na literatura casos isolados de complicações graves como trombose do tronco celíaco, paraplegia permanente por infarto da medula espinhal e abscesso retroperitoneal, provavelmente associados a erros técnicos na realização do procedimento.

Conclusão

A neurólise do plexo celíaco é um procedimento seguro e efetivo, que pode ser utilizado no manejo da dor abdominal crônica em doenças malignas e benignas (sobretudo neoplasia pancreática e pancreatite crônica dolorosa).9 Ele deve ser considerado um procedimento complementar no manejo destes pacientes e geralmente sua realização não leva a uma completa descontinuação do uso de analgésicos, porém ao promover sua redução, tem importante papel na melhora da qualidade de vida, especialmente quando indicado de forma mais precoce no manejo da doença.

Referências

  1. Koulouris AI, Banim P, Hart AR. Pain in patients with pancreatic cancer: prevalence, mechanisms, management and future developments. Dig Dis Sci 2017;62(04):861–870.
  2. Kelsen DP, Portenoy RK, Thaler HT, et al. Pain and depression in patients with newly diagnosed pancreas cancer. J Clin Oncol 1995;13(03):748–755
  3. Cornman-Homonoff J, Holzwanger DJ, Lee KS, Madoff DC, Li D. Celiac Plexus Block and Neurolysis in the Management of Chronic Upper Abdominal Pain. Semin Intervent Radiol. 2017 Dec;34(4):376-386.
  4. Seicean A. Celiac plexus neurolysis in pancreatic cancer: the endoscopic ultrasound approach. World J Gastroenterol. 2014 Jan 7;20(1):110-7.
  5. Wiersema MJ, Wiersema LM. Endosonography-guided celiac plexus neurolysis. Gastrointest Endosc. 1996 Dec;44(6):656-62. doi: 10.1016/s0016-5107(96)70047-0. PMID: 8979053.
  6. Eisenberg E, Carr DB, Chalmers TC. Neurolytic celiac plexus block for treatment of cancer pain: a meta-analysis. Anesth Analg 1995; 80(02):290–295
  7. Leblanc JK, Rawl S, Juan M, Johnson C, Kroenke K, McHenry L, Sherman S, McGreevy K, Al-Haddad M, Dewitt J. Endoscopic Ultrasound-Guided Celiac Plexus Neurolysis in Pancreatic Cancer: A Prospective Pilot Study of Safety Using 10 mL versus 20 mL Alcohol. Diagn Ther Endosc 2013; 2013: 327036
  8. Seicean A, Cainap C, Gulei I, Tantau M, Seicean R. Pain palliation by endoscopic ultrasound-guided celiac plexus neurolysis in patients with unresectable pancreatic cancer. J Gastrointestin Liver Dis 2013; 22: 59-64
  9. Pérez-Aguado G, de la Mata DM, Valenciano CM, Sainz IF. Endoscopic ultrasonography-guided celiac plexus neurolysis in patients with unresectable pancreatic cancer: An update. World J Gastrointest Endosc. 2021 Oct 16;13(10):460-472. doi: 10.4253/wjge.v13.i10.460. PMID: 34733407; PMCID: PMC8546561.

Como citar este artigo

Mendoça EQ e Matuguma SE. Técnica para neurólise do plexo celíaco por Ecoendoscopia. Endoscopia Terapeutica 2024 Vol. 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/tecnica-para-neurolise-do-plexo-celiaco-por-ecoendoscopia/




Sangramento pós-drenagem endoscópica de necrose pancreática

Introdução

A pancreatite aguda necrotizante é responsável por até 10% dos casos de pancreatite aguda. A necrose do tecido pancreático, peripancreático ou ambos, permanece estéril na maioria dos pacientes, entretanto cerca de 30% dos pacientes apresentam infecção da coleção necrótica (WON), condição clínica que impõe alta mortalidade. Evolução com falência de órgãos, colangite ou necessidade de debridamento cirúrgico de WON infectado são fortes preditores de mortalidade, o que torna prudente a adoção de estratégias terapêuticas minimamente invasivas para o tratamento dessa complicação (1).

Na última década o conceito de estratégia minimamente invasiva do tipo “step-up approach” tornou-se amplamente utilizado e corroborado pela Associação Americana de Gastroenterologia (2). A drenagem endoscópica transluminal associada ou não à necrosectomia consolidou-se como a terapêutica de primeira escolha na abordagem de pancreatite aguda necrotizante complicada.  Essa via de intervenção apresenta menor incidência de descompensação clínica por falência de órgãos, fístulas e perfuração quando comparada às técnicas cirúrgicas e por radiologia intervencionista minimamente invasivas (3).

Técnica Endoscópica

A primeira experiência de drenagem endoscópica de necrose pancreática remete ao final da década de 1980 e descrevia a utilização de endoscópico convencional, adotando como referência para punção a impressão criada pela coleção sobre a parede gástrica. Com o passar dos anos a técnica de drenagem guiada por ecoendoscopia tornou-se a modalidade de escolha para o procedimento, o que permitiu alta taxa de sucesso na criação do trajeto até a coleção, identificação de vasos sanguíneos, distribuição da coleção e janela adequada para a punção (4,5)

Recomenda-se aguardar período de pelo menos 4 semanas até a primeira intervenção, o que permite encapsulação e delineamento das margens da coleção necrótica. Entretanto na vigência de infecção, falência orgânica persistente ou ausência de melhora clínica a despeito das intervenções clínicas instituídas, é assertivo realizar a primeira intervenção em intervalo menor (2).

A via de drenagem endoscópica, transgástrica ou transduodenal, é definida de acordo com a localização do maior componente da coleção necrótica (cabeça, corpo ou cauda) e a relação com o estômago e duodeno. Não existe diferença em termos de sucesso terapêutico ou segurança entre as vias, embora a drenagem transgástrica permita acesso direto à coleção na necessidade de necrosectomia. O trajeto de drenagem pode ser assegurado por meio de Lumen-apposing metal stents (LAMS) ou double pigtail stents (DPS), de acordo com disponibilidade do stent, experiência do endoscopista e fatores econômicos, sem diferença no sucesso terapêutico (6).

Eventos adversos e sangramento

Apesar da efetividade clínica da drenagem endoscópica, a incidência de eventos adversos não é desprezível. Infecção, perfuração, migração de stent e hemorragia ocorrem em até 20% dos casos.

A ocorrência de sangramento é frequentemente descrita nas séries históricas e nos clássicos trabalhos que ratificam o tratamento endoscópico em termos de eficácia e segurança, tipo de prótese e tempo para abordagem da coleção necrótica. Entretanto são escassos os dados sobre etiologia do sangramento, abordagem adotada para hemostasia definitiva e os desfechos fatais (7).

Fatores de risco associados a sangramento

O desafio do manejo de sangramento nessa população motivou a publicação de dois recentes estudos retrospectivos, que avaliaram fatores preditores de sangramento nos pacientes submetidos à necrosectomia endoscópica. Zheng et al. estudaram 145 pacientes, dos quais 39 (26.9%) apresentaram sangramento pós-procedimento. A maioria dos episódios de sangramento (94.1%) foi efetivamente controlado com terapia hemostática endoscópica. Na análise multivariada, insuficiência renal, necrose infectada confirmada por cultura e três ou mais sessões de debridamento foram associados a maior risco de sangramento (9). Holmes et al. estudaram 151 pacientes, dos quais 18 (11.9%) apresentaram sangramento. Tratamento por radiologia intervencionista foi necessário para 8 pacientes. Na análise multivariada somente a presença de vaso identificado durante a necrosectomia endoscópica se mostrou fator de risco para sangramento (10).

Apesar de inúmeras publicações que não revelaram diferença significativa na ocorrência de sangramento entre os tipos de stents utilizado (LAMS x DPS x Fully covered metal stent), questionamentos sobre os dispositivos são frequentemente levantados. Especula-se que a rápida descompressão da coleção através do LAMS predispõe à erosão de vasos adjacentes e hemorragia. Além disso o maior diâmetro do LAMS permitiria maior influxo de secreção gástrica ácida para o interior da coleção, o que aumentaria a exposição de vasos e o risco de sangramento (para saber mais sobre LAMS clique aqui). Não obstante, os stents plásticos possuem menor diâmetro, exigem maior número de sessões de debridamento e são mantidos em posição por mais tempo, também aumentando o risco de hemorragia (7).

O sangramento pode se originar do sítio de punção, da própria parede gástrica ou duodenal, ramos colaterais gástricos ou duodenais, ou ainda vasos no interior da cavidade da coleção necrótica (WON). Menos comumente, os pseudoaneurismas de artérias viscerais impõem devido risco eminente de sangramento fatal. A utilização de TC de abdome com contraste na fase arterial permite a identificação de pseudoaneurisma e o tratamento preemptivo dessa condição, de modo a diminuir os riscos de sangramento periprocedimento (11).

Além das particularidades anatômicas, a irrigação do tecido necrótico com peróxido de hidrogênio tem maior risco de sangramento pós-procedimento quando comparado a solução de estreptoquinase nas sessões de debridamento (12).

Abordagem terapêutica de sangramento

Do ponto de vista terapêutico, o sangramento associado à drenagem endoscópica de WON pode ser dividido em sangramento intra-procedimento ou sangramento pós-procedimento. É fundamental que antes de iniciar o tratamento endoscópico de WON, a equipe envolvida certifique-se da disponibilidade de leito de terapia intensiva, reserva de hemocomponentes e retaguardas de radiologia intervencionista e cirurgia, e encontre-se preparada para a abordagem imediata da complicação (4).

Quando identificado sangramento durante o procedimento, a severidade da perda sanguínea orientará a abordagem. Em caso de sangramento autolimitado e de pequeno volume, é aceitável a admissão em terapia intensiva no pós-operatório imediato, com avaliação clínica e monitorização seriada dos níveis de hematimetria. Diferentemente, em caso de perda de volume sanguíneo significativo, terapias endoscópicas de hemostasia (clipe metálico, cauterização, agente tópico, tamponamento com balão dilatador ou prótese metálica) devem ser avaliadas e aplicadas no intraoperatório. Na falha terapêutica, o paciente deve ser encaminhado à radiologia intervencionista ou cirurgia imediatamente.

Na ocorrência de sangramento pós-procedimento, deve-se além de pesquisar alterações endoscópicas e anatômicas que o justifiquem, distúrbios da coagulação que possam precipitar o evento adverso. Na presença de lesão tratável por endoscopia, devem ser aplicados os princípios de hemostasia endoscópica. Na presença de aneurismas, pseudoaneurismas ou falha endoscópica, a abordagem por radiologia intervencionista deve ser programada.

Diante da experiência acumulada por diferentes grupos, Jiang et al. propuseram um algoritmo para manejo multidisciplinar de hemorragia na drenagem por ecoendoscopia de coleções fluidas peripancreáticas (Figura 1). O tratamento de coleção necrótica infectada é moroso e exige habilidades técnicas nos campos da clínica, cirurgia, endoscopia e radiologia. A difusão da prática de drenagem endoscópica gerou atenção para complicações inerentes ao procedimento, incluindo o sangramento. O emprego da terapia endoscópica ciente dos fatores de risco para sangramento e estratégias para tratá-lo permitem efetividade com menor incidência de eventos adversos.

Referências

  1. Podda M, Pellino G, Di Saverio S, Coccolini F et al. Infected pancreatic necrosis: outcomes and clinical predictors of mortality. A post hoc analysis of the MANCTRA‑1 international study. Updates in Surgery 2023; 75:493–522
  2. Baron TH, DiMaio CJ, Wang AY et al. American Gastroenterological Association Clinical Practice Update: Management of pancreatic necrosis. Gastroenterology 2020; 158: 67–75
  3. Bang JY, Wilcox CM, Arnoletti JP et al. Superiority of endoscopic interventions over minimally invasive surgery for infected necrotizing pancreatitis: meta-analysis of randomized trials. Dig Endosc 2020; 32: 298–308
  4. Baron TH, Thaggard WG, Morgan DE, Stanley RJ. Endoscopic Therapy for Organized Pancreatic Necrosis. Gastroenterology 1996;111:755 –764.
  5. Varadarajulu, S.; Christein, J.D.; Tamhane, A.; Drelichman, E.R.; Wilcox, C.M.Prospective Randomized Trial Comparing EUS and EGD for Transmural Drainage of Pancreatic Pseudocysts (with Videos). Gastrointest. Endosc. 2008; 68, 1102–1111.
  6. Bang JY, Wilcox CM, Navaneethan U, Hawes RH, Varadarajulu S. Treatment of walled-off necrosis using lumen-apposing metal stents versus plastic stents: a systematic review and meta- analysis of data from randomized trials. Endoscopy 2023; 56: 184-195
  7. Jiang TA & Xie LT. Algorithm for the multidisciplinary management of hemorrhage in EUS-guided drainage for pancreatic fluid collections. World J Clin Cases 2018; 6(10): 308-321
  8. Rana SS, Shah J, Kang M, et al. Complications of endoscopic ultrasound-guided transmural drainage of pancreatic fluid collections and their management. Ann Gastroenterol 2019;32:441-50.
  9. Zheng X, Li L, Li J, et al. Risk factors for bleeding in patients with acute necrotizing pancreatitis undergoing endoscopic necrosectomy. HPB (Oxford) 2021;23(12):1856–186
  10. Holmes I, Shinn B, Mitsuhashi S, et al. Prediction and management of bleeding during endoscopic necrosectomy for pancreatic walled-off necrosis: results of a large retrospective cohort at a tertiary referral center. Gastrointest Endosc 2022;95(03): 482–488
  11. Sekikawa Z, Yamamoto T, Aoki R, et al. Prophylactic Coil Embolization of the Vessels for Endoscopic Necrosectomy in Patients with Necrotizing Pancreatitis. J Vasc Interv Radiol. 2019 Jan;30(1):124-126. doi: 10.1016/j.jvir.2018.05.025. PMID: 30580813.
  12. Bhargava MV, Rana SS, Gorsi U, Kang M, Gupta R.  Assessing the Efficacy and Outcomes Following Irrigation with Streptokinase Versus Hydrogen Peroxide in Necrotizing Pancreatitis: A Randomized Pilot Study. Dig Dis and Sciences 2022; 67(8): 4146-53

Como citar este artigo

Ide E. e Nascimento Filho Hm. Sangramento pós-drenagem endoscópica de necrose pancreática. Terapêutica Endoscópica 2024 vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/sangramento-pos-drenagem-endoscopica-de-necrose-pancreatica/




Volvo de transverso em paciente com Síndrome de West

Autores: Flávio Ferreira, Elba Alves, Diego Malta, Ewandson Pedroza, Rebecca Rushansky

Paciente de 16 anos, feminina, portadora de síndrome de West, desnutrida com importante sequela motora e retardo mental em decorrência de doença de base caracterizada por crises convulsivas frequentes desde a infância. Genitora relata que a paciente foi admitida em unidade de emergência com quadro de vômitos, dor abdominal, diarreia há cerca de 4 dias, tendo recebido tratamento com hidratação, analgesia e lavagem retal, sendo liberada em sequência. A paciente permaneceu com os mesmos sintomas, tendo evoluído com piora importante da distensão abdominal levando a novo atendimento em unidade de emergência após 3 dias. 

Na admissão a paciente encontrava-se caquética, com posição viciosa de membros,  taquipneica, murmúrio vesicular abolido em bases, padrão respiratório de esforço, taquicárdica, hipotensa com distensão abdominal severa sendo possível identificar mosqueamento cutâneo em região do abdômen, dor abdominal difusa sem sinais de irritação peritoneal, ausência de ruídos hidroaéreos, toque retal sem fezes ou lesões.

Os principais exames laboratoriais evidenciam hemoglobina 7,7 g/dl, leucograma  26.850 com 8% de bastões, plaquetas 173.000  Uréia 20 Creatinina 0,5. Na gasometria arterial pH 7,48 com PCO2 19,8 bicarbonato de 19,1 e lactato de 3,5mmol/l.

Radiografia simples de abdome demonstra congestão pulmonar, redução dos espaços  intervertebrais em tórax, distensão abdominal severa, ausência de pneumoperitônio (Figura 1). A tomografia de abdome corrobora os achados do raio X simples de abdome, evidenciando ainda diâmetro do cólon de aproximadamente 13cm (Figura 2). 

Figura 1: Radiografia de tórax e abdome PA
Figura 2: tomografia de abdome sem contraste (A: distensão colônica exercendo efeito de massa sobre pulmões e coração ;  B: distensão colônica em pelve; C e D distensão com detalhe para aspecto em formato de U invertido com nível hidroaéreo à direita e esquerda)

Após discussão multidisciplinar, optou-se pela tentativa de colonoscopia descompressiva, com equipe cirúrgica em sala para abordagem em caso de não resolução ou complicações.

Durante a colonoscopia percebe-se presença de resíduos fecais em moderada quantidade, distensão não importante de reto e sigmoide. Progressão do aparelho por um segmento relevante sendo evidenciados resíduos fecais, mucosa com áreas de enantema e certa friabilidade. Em determinado ponto, não sendo possível identificar qual segmento colônico, o aparelho atingiu uma área de torção com mucosa difusamente violácea, congesta. Após a transposição desta área o aparelho atinge cólon extremamente distendido com mucosa enegrecida, friável, indicando isquemia e necrose (Figura 3). Aspirado mais de 2000ml de líquido de estase e gás com evidente redução do volume abdominal da paciente (Figura 4).  

Figura 3: Imagens da colonoscopia (A e B – sigmóide e descendente; C a F – isquemia e necrose em transverso) 
Figura 4: paciente antes e depois da colonoscopia descompressiva

Equipe cirúrgica procedeu então laparotomia de emergência com achado de líquido citrino em cavidade abdominal, cólon sigmóide e descendente preservados; volvo em cólon transverso o qual apresentava isquemia irreversível e necrose; ceco e cólon ascendente distendidos porém sem evidências de isquemia (Figura 5). O procedimento cirúrgico realizado foi a ressecção do cólon transverso com colostomia e sepultamento do coto distal.

Figura 5 – imagens da cirurgia

Paciente encaminhada para UTI no pós operatório, já em uso de drogas vasoativas, mantendo taquicardia, hipotensão e necessidade de ventilação mecânica. Durante sua evolução manteve-se com abdome flácido, colostomia de bom aspecto e funcionante. Seu quadro clínico no entanto sempre persistiu grave, com tentativas falhas de desmame de ventilação mecânica, agravamento das crises convulsivas já frequentes antes do internamento hospitalar. Neste cenário, considerando gravidade de doença de base em si com paciente apresentando convulsões frequentes, totalmente dependente para cuidados, com disfagia, dupla incontinência e a gravidade da paciente no momento, equipe médica e familiares optaram por manter medidas proporcionais de cuidado. Paciente faleceu no 11º dia de internamento hospitalar.

Discussão

A síndrome de West corresponde a uma encefalopatia caracterizada em sua forma clássica por crises convulsivas na infância, hipsarrtimia (alterações de atividade elétrica na eletroencefalografia) e retardo do desenvolvimento psicomotor. No caso da paciente, a falta de acesso aos sistemas de saúde levaram a diagnóstico tardio e tratamento irregular determinando desenvolvimento de uma forma severa da doença com qualidade de vida limitada.

Volvos colônicos correspondem à rotação de um segmento de cólon determinando torção de seu mesentério com consequente isquemia e distensão à montante. Volvo de sigmóide é a forma mais frequente correspondendo a cerca 80% dos casos, seguido de ceco/cólon ascendente (menos de 20%) e raros casos de volvo de transverso.  Os principais sintomas são dor e distensão abdominal, constipação, vômitos, interrupção de eliminação de fezes e flatos. Nos casos mais graves há perfuração de alça com sinais de peritonite e choque séptico. A evolução pode ser lenta com episódios recorrentes de dor alternados com remissão sintomática por distorção espontânea do volvo.

A radiografia simples de abdome pode evidenciar o sinal clássico em “grão de feijão” além de permitir a avaliação da extensão da obstrução, distensão concomitante de delgado e presença ou não de pneumoperitônio. A tomografia de abdome pode evidenciar os mesmos sinais e trazer maior detalhamento dos segmentos colônicos com medidas precisas do calibre do órgão, fato este relevante pois há risco aumentado de perfuração quando o diâmetro cecal é superior a 12 cm.

Pacientes sem sintomas ou sinais radiológicos sugestivos de perfuração devem ser submetidos a colonoscopia para desobstrução do volvo. O preparo anterógrado é contraindicado, no entanto a lavagem retal pode ser utilizada. O exame deve ser realizado com mínima insuflação sendo necessário ultrapassar a região da torção, descomprimir o cólon (aspirando o conteúdo líquido e removendo o gás). A avaliação da viabilidade da mucosa é essencial, buscando sinais de isquemia ou perfuração para determinar se será necessário realizar tratamento cirúrgico imediato ou não. A taxa de sucesso da colonoscopia descompressiva é alta (60-95%), no entanto a taxa de recorrência a longo prazo é elevada (43 a 75%) caso o paciente não seja submetido a tratamento cirúrgico posteriormente.

Pacientes com sinais de perfuração, com insucesso técnico na descompressão endoscópica ou que apresentem sinais de inviabilidade do cólon durante colonoscopia devem ser submetidos a cirurgia de urgência com ressecção do segmento com isquemia irreversível.

O tratamento cirúrgico de escolha, posterior a colonoscopia descompressiva bem sucedida,  é a ressecção do segmento colônico envolvido. Tratamento cirúrgico sem ressecção (pexia) possui taxa de recorrência variável na literatura podendo chegar a 29-36%, devendo ser considerado apenas em casos selecionados. 

Clique aqui para saber mais sobre o assunto com outras imagens como o sinal do “grão de café” e publicações sobre volvo colônico. 

Referências

  1. Bayileyegn NS, Merga OT. Simultaneous cecal and transverse colon volvulus: An exceedingly rare case of intestinal obstruction from Ethiopia: A case report and review of literatures. Int J Surg Case Rep. 2023 Oct;111:108725. doi: 10.1016/j.ijscr.2023.108725. Epub 2023 Sep 4. PMID: 37769412; PMCID: PMC10539922.
  2. Tian BWCA, Vigutto G, Tan E, van Goor H, Bendinelli C, Abu-Zidan F, Ivatury R, Sakakushev B, Di Carlo I, Sganga G, Maier RV, Coimbra R, Leppäniemi A, Litvin A, Damaskos D, Broek RT, Biffl W, Di Saverio S, De Simone B, Ceresoli M, Picetti E, Galante J, Tebala GD, Beka SG, Bonavina L, Cui Y, Khan J, Cicuttin E, Amico F, Kenji I, Hecker A, Ansaloni L, Sartelli M, Moore EE, Kluger Y, Testini M, Weber D, Agnoletti V, Angelis ND, Coccolini F, Sall I, Catena F. WSES consensus guidelines on sigmoid volvulus management. World J Emerg Surg. 2023 May 15;18(1):34. doi: 10.1186/s13017-023-00502-x. PMID: 37189134; PMCID: PMC10186802.
  3. Bouali M, Yaqine K, Elbakouri A, Bensardi F, Elhattabi K, Fadil A. Ischemic volvulus of the transverse colon caused by intestinal malrotation: A case report. Int J Surg Case Rep. 2021 Jun;83:105971. doi: 10.1016/j.ijscr.2021.105971. Epub 2021 May 18. PMID: 34023547; PMCID: PMC8163956.
  4. Alavi K, Poylin V, Davids JS, Patel SV, Felder S, Valente MA, Paquette IM, Feingold DL; Prepared on behalf of the Clinical Practice Guidelines Committee of the American Society of Colon and Rectal Surgeons. The American Society of Colon and Rectal Surgeons Clinical Practice Guidelines for the Management of Colonic Volvulus and Acute Colonic Pseudo-Obstruction. Dis Colon Rectum. 2021 Sep 1;64(9):1046-1057. doi: 10.1097/DCR.0000000000002159. PMID: 34016826.

Como citar este artigo

Ferreira F. Volvo de transverso em paciente com Síndrome de West. Endoscopia Terapeutica 2024 vl. 01. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/?p=18604




É necessário fazer Antibioticoprofilaxia para Aspiração por Agulha Fina Ecoguiada das Lesões Císticas Pancreáticas? 

Introdução

Lesões císticas pancreáticas (LCPs) são cada vez mais diagnosticadas devido ao uso generalizado de exames de imagem para avaliação de sintomas gastrointestinais ou para outros fins, chegando a serem incidentalmente detectadas em até 20% dos pacientes.

Os três principais subtipos de LCPs são pseudocistos, lesões císticas não mucinosas e lesões císticas mucinosas. Os cistos mucinosos incluem principalmente neoplasias císticas mucinosas intrapapilares e neoplasias císticas mucinosas, que apresentam maior potencial de transformação maligna. Neoplasias pseudopapilares sólidas e tumores neuroendócrinos císticos também são LCP, no entanto, geralmente apresentam alguns componentes sólidos e normalmente não se apresentam como lesões císticas clássicas.

Com base na teoria de que a punção requer a introdução de uma agulha no trato gastrointestinal não estéril e respaldada em estudos iniciais que mostravam taxas significativas de infecção do cisto (até 14%) após aspiração por agulha fina guiada por ultrassom endoscópico (PAAF-EUS) das LCPs, as principais sociedades internacionais de endoscopia (ASGE, 2016 e ESGE, 2017) recomendaram o uso profilático de antibióticos pré e pós-procedimento por 3 a 5 dias. Tais diretrizes forneceram grau de recomendação fraco, baseadas em evidências de baixa qualidade. 

Discussão

No entanto, o uso da antibioticoprofilaxia para reduzir a incidência de infecção após a PAAF-EUS das LCPs tem sido questionado nos últimos anos depois que vários estudos demonstraram a segurança do procedimento e sugeriram a falta de benefício adicional, incluindo uma metanálise com revisão sistemática publicada em 2017 na Digestive Endoscopy por Zhu e cols., inferindo que as taxas de infecção relatadas anteriormente foram bastante superestimadas.

Como o uso de agentes antimicrobianos aumenta o custo do procedimento, bem como o risco de resistência aos medicamentos e pode estar associado a reações alérgicas potencialmente graves, determinar o real benefício desta prática é de suma importância. 

Para se chegar a uma conclusão definitiva sobre o tema, Facciorusso et al publicaram em 2020 na Expert Review Of Gastroenterology & Hepatology a primeira metanálise cujo objetivo foi avaliar a eficácia da profilaxia antibiótica neste cenário. Ficou evidente não haver benefício significativo em termos de taxa de infecção (OR 0,65, IC 95% 0,24–1,78; p = 0,40). Assim, estes resultados, reforçados pela baixa heterogeneidade e confirmados em diversas análises de sensibilidade, devem levantar dúvidas sobre a estratégia atual recomendada pelos Guidelines. Algumas situações podem ter indicação especial para profilaxia antimicrobiana, por exemplo, um risco maior de infecção quando o líquido do cisto não foi completamente drenado. Todavia, nesta metanálise, uma subanálise de acordo com as características dos cistos foi inviável devido à falta de dados disponíveis.

Cerca de 9 meses após a publicação da primeira (Abril, 2021), uma segunda metanálise com revisão sistemática endereçando mesmo objetivo foi publicada por Palomena-Teleda et al, desta vez na Pancreas. Foram incluídos seis estudos, sendo 5 retrospectivos e 1 ensaio randomizado, com um total de 1.683 pacientes. À semelhança da constatação do trabalho de Facciorusso, para o desfecho primário (desenvolvimento de infecção do cisto) também não houve diferença significativa entre os dois grupos (OR 0,54; IC 95% 0,16–1,82; P = 0,32).

Conclusão

Ambas metanálises confirmam as observações de estudos individuais que sugerem a não superioridade da profilaxia antibiótica antes da PAAF-EUS de LCPs. Portanto, as diretrizes atuais que sugerem o uso rotineiro de antibióticos profiláticos devem ser reavaliadas, uma vez que esta prática não parece reduzir substancialmente o risco de infecções.

Referências

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  6. Emmanuel Palomera-Tejeda, Hassam Shah, Bashar M. Attar, Abhishek Bhurwal, Ishaan Vohra and Hemant Raj Mutneja. Prophylactic Antibiotics Do Not Prevent Infectious Complications of Endoscopic Ultrasound Fine-Needle Aspiration of Pancreatic Cysts: A Systematic Review and Meta-Analysis. Pancreas. 2021 May-Jun;50(5):667-672. doi: 10.1097/MPA.0000000000001816.

Como citar este artigo

Ribeiro MSL. É necessário fazer Antibioticoprofilaxia para Aspiração por Agulha Fina Ecoguiada das Lesões Císticas Pancreáticas? Endoscopia Terapeutica, 2024 vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/e-necessario-fazer-antibioticoprofilaxia-para-aspiracao-por-agulha-fina-ecoguiada-das-lesoes-cisticas-pancreaticas/




Rastreio de neoplasia pancreática em indivíduos com predisposição genética

A neoplasia pancreática apresenta habitualmente manejo desafiador, em virtude de seu comportamento biologicamente agressivo, resposta limitada às terapias oncológicas e estágio avançado da doença ao diagnóstico. A taxa reportada de sobrevida média em 5 anos é de cerca de 10% e aproximadamente 80% dos pacientes não são elegíveis à tratamento cirúrgico ao diagnóstico.  No entanto, a detecção em estágios iniciais da doença está associada a melhor sobrevida, podendo atingir 93% em 10 anos em diagnósticos no estadio 0 e até 39% em 5 anos em neoplasias estadio I.

Devido à natureza muitas vezes assintomática do câncer pancreático em estágios iniciais, a detecção precoce pode ser desafiadora e geralmente requer métodos de triagem em populações de alto risco.

Em 2022 a ASGE publicou guideline acerca das recomendações de triagem para adenocarcinoma ductal pancreático em indivíduos com susceptibilidade genética.

O guideline sugere a realização de rastreio de neoplasia pancreática em indivíduos com risco aumentado de câncer pancreático devido à suscetibilidade genética. Um total de 25 estudos foram analisados, envolvendo pacientes com síndrome de pancreatite hereditária familiar, síndrome de Peutz-Jeghers, síndrome familiar de melanoma múltiplo atípico e síndrome de Lynch, bem como aqueles com variantes patogênicas nos genes BRCA1, BRCA2, ATM e PALB2. As principais medidas avaliadas incluíram mortalidade por todas as causas, rendimento da triagem para lesões de alto risco, rendimento da triagem para lesões ressecáveis e limítrofes e danos causados pela triagem.

Um dado de destaque na análise dos estudos é que cerca de 60% das neoplasias detectadas pela triagem eram ressecáveis ou limítrofes, enquanto que na prática cotidiana, 20% dos casos sintomáticos são diagnosticados quando ressecáveis ou limítrofes, 30% em estágio localmente avançado e 50% são metastáticos.

Cabe-se ressaltar também possíveis malefícios decorrentes da realização de rastreio, notando-se que, embora no total de pacientes submetidos a rastreio a taxa de cirurgias que não evidenciaram tumores foi de 2,8%, dentre os 181 pacientes operados, 46,6% não apresentaram evidência de neoplasia na peça cirúrgica e a taxa de eventos adversos foi de 19,9%.

Quanto ao método de rastreio, o guideline sugere que tanto a realização de ecoendoscopia quanto de ressonância magnética ou a alternância entre estes métodos são estratégias viáveis.

A ecoendoscopia pode ser preferida em casos de pacientes com risco bastante aumentado para tumor de pâncreas, como na síndrome de Peutz-Jeghers e síndrome familiar de melanoma múltiplo atípico, em situações que pode ser combinada com exames de endoscopia e colonoscopia de rastreio, como nas síndromes de Lynch e Peutz-Jeghers, e em situações de contraindicação à realização de ressonância magnética. Sugere-se que sejam utilizados ecoendoscópios com probes setoriais pelo melhor rendimento diagnóstico.

Já a ressonância magnética pode ser o método de escolha em situações de risco aumentado para a sedação relacionada a procedimentos endoscópicos, em pacientes que priorizem métodos menos invasivos e na possibilidade de realização concomitante de outros exames de imagem.

A periodicidade sugerida do rastreio é anual para todos os grupos de pacientes com risco aumentado de câncer pancreático devido à suscetibilidade genética e as recomendações de idade para início do rastreio estão sumarizadas na tabela:

Variante patogênica / Síndrome Início do rastreio
BRCA2 / BRCA1 / PALB2
Heterozigotos ATM + fam. 1º/2º grau c/ neo de pâncreas
FPC (rastreio recomendado em fam. 1º grau dos afetados)
Lynch + fam. 1º/2º grau c/ neo de pâncreas
50 anos / 10 anos antes do fam. + jovem com neo de pâncreas
FAMMM 40 anos / 10 anos antes do fam. + jovem com neo de pâncreas
Peutz-Jeghers 35 anos / 10 anos antes do fam. + jovem com neo de pâncreas
Pancreatite hereditária autossômica dominante 40 anos

Referência

  1. Sawhney MS, Calderwood AH, Thosani NC, Rebbeck TR, Wani S, Canto MI, Fishman DS, Golan T, Hidalgo M, Kwon RS, Riegert-Johnson DL, Sahani DV, Stoffel EM, Vollmer CM Jr, Qumseya BJ; ASGE guideline on screening for pancreatic cancer in individuals with genetic susceptibility: summary and recommendations. Gastrointest Endosc. 2022 May;95(5):817-826. PMID: 35183358

Como citar este artigo

Logiudice FP. Rastreio de neoplasia pancreática em indivíduos com predisposição genética. Endoscopia Teraupetica 2024, vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/rastreio-de-neoplasia-pancreatica-em-individuos-com-predisposicao-genetica/