A Crioprevenção com Água Gelada: Uma Nova Ferramenta para Prevenir a Pancreatite Pós-CPRE
A pancreatite pós-CPRE (PPE) é, sem dúvidas, uma das complicações mais frequentes e preocupantes após a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE). Além do seu impacto na recuperação dos pacientes, a gravidade de casos mais avançados exige atenção redobrada às estratégias preventivas. Nesse contexto, um recente estudo multicêntrico realizado no Japão trouxe uma alternativa inovadora: o resfriamento com água gelada, chamado de crioprevenção.
O Problema: Pancreatite Pós-CPRE
Apesar das taxas gerais de PPE rondarem 10% em pacientes sem qualquer profilaxia, o problema pode alcançar consequências fatais em quadros graves. Métodos tradicionalmente adotados para a profilaxia, como anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) retais, têm limitações específicas no Japão, principalmente devido a restrições do sistema de saúde sobre dosagens aprovadas e contraindicações em populações vulneráveis, como pacientes idosos.
A Crioprevenção: Uma Abordagem Simples e Eficaz
Adaptado de Azuma et al. 2025
O estudo, divulgado na Am J Gastroenterol, propôs um método simples e acessível: a irrigação da papila com 250 mL de água gelada ao final da CPRE. Esta técnica reduziu em 52,4% o risco relativo de PPC, com a taxa caindo de 6,8% (grupo controle) para 3,2% (grupo de crioprevenção). A segurança do método foi evidente, sem eventos adversos relacionados diretamente à intervenção.
Os pesquisadores apontaram que o resfriamento atua reduzindo o edema papilar, possivelmente por meio de vasoconstrição e controle da permeabilidade vascular, fatores-chave no desenvolvimento de PPE. O efeito foi ainda mais pronunciado em pacientes de alto risco, como aqueles submetidos a esfincterotomia endoscópica e canulação difícil.
Por Que Essa Técnica É Relevante?
Além dos resultados eficazes, algumas características tornam a crioprevenção uma alternativa promissora:
Simplicidade: A técnica utiliza apenas água gelada administrada com uma seringa, sem a necessidade de equipamentos ou medicamentos especializados.
Custo-baixo: Não há custos adicionais associados à compra de fármacos.
Adequação a Populações de Risco: Particularmente útil para idosos ou pacientes contraindicados ao uso de AINEs.
Segurança: Nenhum evento adverso significativo foi atribuído à crioprevenção.
Limitações do Estudo
Apesar dos resultados entusiasmantes, algumas limitações foram apontadas:
Não foi incluído um grupo controle que utilizasse irrigação com água em temperatura ambiente, impedindo a avaliação do efeito absoluto do resfriamento em relação à irrigação simples.
A ausência de AINEs como comparador limita a aplicabilidade global dos achados.
O volume de água gelada (250 mL) foi uma escolha arbitrária, sugerindo que estudos futuros possam investigar volumes ou durações diferentes para otimização dos resultados.
Por ser um estudo single-blind, a falta de cegamento total pode introduzir algum viés no protocolo.
Conclusão
A técnica de crioprevenção representa um marco no manejo profilático da PPE, oferecendo uma estratégia segura, eficiente e econômica para reduzir essa grave complicação. Especialmente em contextos como o Japão, onde o uso de AINEs é limitado, ou em populações de alto risco, o resfriamento local pode representar uma virada de chave no cuidado pós-CPRE.
Embora ainda existam pontos a serem avaliados em estudos futuros, como a sinergia com AINEs ou outros métodos profiláticos, a crioprevenção já se apresenta como uma ferramenta acessível para a prática clínica global. Afinal, a simplicidade, quando bem fundamentada, pode ser a mais poderosa das inovações.
Referência
Azuma S, Kobayashi Y, Harada R, Yane K, Sawada K, Tsujimoto A, et al. Local post-procedure cryoprevention significantly reduces the incidence of post-ERCP pancreatitis: a multicenter randomized clinical trial. Am J Gastroenterol. 2025;00:1–9. Published online 2025 Jul 10. doi:10.14309/ajg.000000000000000
Paciente do sexo feminino, 51 anos, com antecedente de transplante hepático em outubro de 2023 devido a cirrose hepática de etiologia alcóolica. A partir de dezembro de 2023, passa a apresentar colestase bioquímica persistente e assintomática, a despeito de níveis adequados de imunossupressão: BT 2,52; BD 1,83; GGT 544,31 (VR<38); FAL 373 (VR<116).
Foi submetida a ressonância magnética de abdome (RNM) com colangiorressonância (colangioRNM), que não evidenciou alteração vascular da artéria hepática, apenas desproporção entre as vias biliares do doador e receptor, sem estenose definida, porém com discreta dilatação de vias intra-hepáticas.
Imagem 1: ColangioRNM mostrando desproporção entre as vias biliares do doador e receptor.
Tendo em vista quadro clínico associado a dilatação de vias biliares, foi indicada colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPRE) para tratamento de possível estenose da anastomose biliar. Ao se posicionar o duodenoscópio na segunda porção duodenal, identificada lesão polipóide suspeita para adenoma de papila duodenal maior, sendo realizadas biópsias.
Diante da confirmação histológica de adenoma tubular com displasia de baixo grau, optado pelo estadiamento local através de ultrassom endoscópico (EUS), evidenciando lesão restrita a mucosa (sem sinais de acometimento de camada muscular) medindo 12×9 mm, com dilatação de colédoco até 9 mm e ausência de extensão intraductal.
Dessa forma, indicada papilectomia endoscópica e realizada ressecção em monobloco, em modo endocut Q, sem injeção de submucosa. Não foi realizada esfincterotomia ou passagem de prótese biliar ou pancreática. Observou-se pequeno sangramento imediato no leito de ressecção, controlado com injeção de adrenalina. Não há lesão residual no leito. Paciente evoluiu bem, assintomática e sem intercorrências após o procedimento.
Imagem 8: visão da ressecção endoscópicaImagem 9: visão pós-ressecção endoscópica
O anatomopatológico confirma biópsia prévia, com margens laterais e profundas livres de lesão (R0). Houve resolução da colestase após o procedimento: BT 0,98; BD 0,42; GGT 105; FAL 153. Paciente permaneceu sem lesões suspeitas no leito nos exames de seguimento, com biópsia após 1 ano exibindo apenas processo infamatório reacional.
Imagem 10: visão endoscópica de controle
Revisão
A neoplasia da ampola de Vater é uma entidade rara, mais comum em homens e idosos, embora o diagnóstico abaixo dos 45 anos venha em ascensão nos últimos anos. Diante do diagnóstico em pacientes jovens, deve-se suspeitar de síndrome genética sobrejacente, sendo a PAF (Polipose Adenomatosa Familiar) a principal envolvida1,2. Seguindo a cadeia de carcinogênese adenoma-carcinoma, as lesões podem se originar da mucosa duodenal ou pancreatobiliar e os tipos mais diagnosticados são o adenoma, displasia intraepitelial e adenocarcinoma, sendo que o adenoma do tipo intestinal corresponde a mas de 95% das lesões benignas3.
A maioria das lesões é assintomática e costuma ser identificada incidentalmente durante exames endoscópicos por outras indicações. É possível, no entanto, se apresentarem com icterícia (16.6%), dor abdominal (14.4%), pancreatite (4.1%) e colangite (1%)4.
Tendo em vista a visão parcial da papila duodenal maior obtida através do endoscópio de visão frontal, sugere-se que a adequada avaliação seja realizada com o duodenoscópio ou endoscópio convencional associado ao uso de cap. Embora não exista uma classificação validada para avaliação das lesões de papila, deve-se avaliar o tamanho, se há extensão da lesão para além da papila, como as lesões de crescimento lateral (LSTp). Além disso, alguns aspectos identificados correlacionam-se com maior risco de invasão da muscular como endurecimento, ulceração, friabilidade, sangramento, depressão e “nonlifting sign”4,5. O diagnóstico histológico deve ser realizado idealmente pela biopsia endoscópica; em caso de falha diagnóstica, são alternativas a biópsia por EUS ou biópsia endoscópica após esfincterotomia, de preferência com intervalo de 10 dias entre os procedimentos4. Vale ressaltar que a presença de adenoma nas biópsias endoscópicas não exclui a presença de adenocarcinoma, devido as altas taxas de falsos negativos e variável concordância entre as biópsias endoscópicas e as peças de ressecção5.
O estadiamento deve seguir a classificação TNM e pode ser realizado por tomografia computadorizada (TC), colangioRNM, EUS e ultrassom intraductal. Nota-se a superioridade do EUS na avaliação do T (principalmente em lesões maiores do que 2 cm e T1) e da colangioRNM na avaliação do N. Ademais, a avaliação da extensão intraductal da lesão se faz necessária para definição do tratamento4.
Segundo a recomendação da ESGE, está indicada a papilectomia endoscópica nas lesões até 4 cm, com extensão intraductal de até 2cm e nas lesões malignas Tis/T1aN0M0 (idealmente restritos a mucosa). Nos casos tecnicamente difíceis, como tamanho superior a 4 cm, divertículo duodenal ou extensão intraductal>2cm pode ser considerado e discutido de forma individualizada a ampulectomia cirúrgica no caso de lesões superficiais ou duodenopancreatectomia nos casos de T≥1 ou N+/M+4. Existem trabalhos que mostram bons resultados na ressecção endoscópica de neoplasias precoces (adenocarcinoma bem diferenciado até T1aN0M0), embora as taxas de acometimento linfonodal no T1 podem chegar a 45%4,6,7.
Embora muitas técnicas tenham sido descritas até o momento e não haja consenso em alguns aspectos, a ESGE sugere a ressecção com alça sem injeção de submucosa, utilizando-se modo Endocut de forma reduzir o risco de sangramento durante e após o procedimento. Nos casos de LSTp, deve ser feita injeção de submucosa e ressecção por mucosectomia, apresentando um maior risco de sangramento associado. Nos casos de extensão intraductal há maior risco de não obtenção de R0 e necessidade de complementação com tratamento cirúrgico, principalmente nas lesões com maior grau de displasia. Nestes casos, há possibilidade de abordagem da extensão intraductal no momento da papilectomia através da ablação com cistótomo guiada por fio guia ou ablação por radiofrequência (RFA)4.
A esfincterotomia com passagem de prótese biliar é considerada quando há esvaziamento lentificado, sangramento ou quando realizado tratamento de lesão intraductal. É recomendada profilaxia de pancreatite com administração de indometacina via retal e colocação de prótese pancreática4. Embora exista tal recomendação, alguns trabalhos recentes não demonstram redução significativa na incidência de pancreatite pós-papilectomia endoscópica com o uso da prótese pancreática8,9. Outras técnicas descritas incluem a colangiopancreatografia com esfincterotomia biliar e alocação de fio guia no ducto pancreático precedendo a papilectomia com posterior colocação de próteses10.
A ressecção é considerada bem sucedida diante da ausência de lesão residual no leito após o procedimento, sendo a ressecção em monobloco é o principal fator associado a obtenção do R04,11. Os principais efeitos adversos da papilectomia endoscópica são: pancreatite (11.9 %), sangramento (10.6 %), perfuração (3,1%) e colangite (2,7%)4,12. A taxa de mortalidade é baixa (0,3%) e a estenose tardia pode ocorrer em 2,4% dos casos4.
O seguimento deve ser realizado por duodenoscopia com biópsias do leito e de áreas suspeitas em 3, 6 e 12 meses e anualmente por 3 a 5 anos. A presença de lesão residual benigna, que ocorre em cerca de 11%, ou recorrente pode ser tratada com eletrocoagulação por plasma de argônio ou mucosectomia, com bons resultados4. Em se tratando de adenomas esporádicos, a taxa de recorrência da lesão a longo prazo é semelhante entre a papilectomia endoscópica e a ampulectomia cirúrgica (15,7%x17,6%, com menores taxas de eventos adversos e maior segurança na primeira modalidade13.
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Profilaxia de pancreatite aguda pós-CPRE: quando utilizar prótese pancreática?
A pancreatite aguda pós-CPRE (PEP, do inglês “post-ERCP pancreatitis“) é uma das complicações mais temidas associadas à colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE). Sua incidência varia entre 3,5% e 9,7%, sendo que de 0,3% a 0,8% evoluem com pancreatite aguda grave, associada a disfunção orgânica persistente. Como não há tratamento endoscópico para PEP, é fundamental que os endoscopistas adotem medidas profiláticas eficazes para diminuir o risco, principalmente de casos graves. Em seu guideline de 2023, a American Society for Gastrointestinal Endoscopy (ASGE) destaca três medidas principais para a profilaxia da PEP: uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) via retal, hidratação intravenosa agressiva e a colocação de prótese pancreática (1). Neste artigo, analisaremos o estudo publicado em 2024 na Lancet por Elmunzer et al., que comparou o uso de AINE via retal com e sem a colocação de prótese pancreática em pacientes de alto risco para PEP, intitulado “Indomethacin with or without prophylactic pancreatic stent placement to prevent pancreatitis after ERCP: a randomised non-inferiority trial” (2).
Métodos
Trata-se de ensaio clínico randomizado (ECR) de não-inferioridade conduzido em 20 centros de referência nos Estados Unidos e Canadá entre 2015 e 2023. O estudo avaliou a eficácia da indometacina via retal em comparação com indometacina via retal associada à colocação de prótese pancreática profilática (PPP) em pacientes com alto risco de PEP.
A) Critérios de Inclusão
Os critérios de inclusão foram baseados nos principais fatores de risco para PEP, divididos em critérios maiores e menores.
Critérios Maiores (≥1):
História pessoal de PEP
Canulação difícil (≥6 min ou ≥6 tentativas)
Pré-corte
Esfincterotomia pancreática
Dilatação balonada da papila sem esfincterotomia
Suspeita de disfunção do esfíncter de Oddi
Critérios Menores (≥2):
Mulher com menos de 50 anos
Pancreatite aguda recorrente (2 ou mais episódios)
Injeção de contraste no ducto pancreático principal
Critérios de Exclusão:
Indicação de ampulectomia
Indicação de prótese pancreática terapêutica
Alergia a AINEs
Pancreatite aguda há menos de 1 semana
Baixo risco de PEP (ex.: esfincterotomia prévia)
B) Procedimentos
Os pacientes randomizados para o grupo de indometacina isolada (grupo IN) receberam 100 mg de indometacina via retal imediatamente antes do procedimento. No grupo da indometacina mais prótese pancreática (grupo PP) a mesma dose de indometacina foi administrada e o endoscopista tentou ativamente a canulação do ducto pancreático principal (DPP) para a passagem da PPP, sem padronização de tempo ou técnica.
C) Desfechos
Primário: Incidência de PEP, definida como dor nova ou crescente no abdômen superior e elevação das enzimas >3x até 24h pós-CPRE.
Secundário: Casos de PEP moderada ou grave.
D) Cálculo Amostral
O cálculo amostral foi realizado com uma margem de não-inferioridade de 5% entre os grupos, considerando uma taxa esperada de PEP de 9,7% e um poder de 85%, resultando em um total de 1950 pacientes.
Resultados
O estudo incluiu 1950 pacientes, com 975 em cada braço e apenas uma perda em cada grupo. O “crossover” no grupo PP – ou seja, pacientes nos quais foi tentado, porém não houve sucesso, na passagem da prótese pancreática – foi de quase 20%, enquanto no grupo IN foi de apenas 1,6% – pacientes que não deveriam ter recebido PPP pelo grupo de randomização, porém o endoscopista optou pela passagem da PPP.
Na análise por intenção de tratamento, foram observados 110 casos (11,3%) de PEP no grupo PP, sendo 58 (6%) PEP moderada ou grave, em comparação com 145 casos (14,9%) no grupo IN, dos quais 78 (8%) foram moderados ou graves. Três óbitos (0,3%) foram reportados, todos no grupo IN. A diferença de risco para PEP entre os grupos foi estatisticamente significativa (3,6% – IC95% 0,6-6,6) a favor do grupo PP (tabela 1).
Intenção de tratamento
Por protocolo
Resultado
Indometacina + PPP (n=975)
Indometacina isolada (n=975)
Diferença de risco (IC 95%)
Indometacina + PPP (n=777)
Indometacina isolada (n=951)
Diferença de risco (IC 95%)
Desfecho primário
Pancreatite aguda pós-CPRE
110 (11,3%)
145 (14,9%)
3,6% (0,6 a 6,6)
90 (11,6%)
137 (14,4%)
2,8% (−0,3 a 6,0)
Desfechos secundários e de segurança
Pancreatite moderada ou grave pós-CPRE
58 (6,0%)
78 (8,0%)
2,1% (−0,2 a 4,3)
45 (5,8%)
74 (7,8%)
2,0% (−0,4 a 4,4)
Pancreatite grave
14 (1,4%)
20 (2,1%)
0,6% (−0,5 a 1,8)
12 (1,5%)
19 (2,0%)
0,5% (−0,8 a 1,7)
Óbito relacionado à pancreatite
0
3 (0,3%)
0,3% (0,0 a 0,7)
0
3 (0,3%)
0,3% (0,0 a 0,7)
Evento adverso grave
352 (36,1%)
355 (36,4%)
−0,3% (−4,6 a 4,0)
282 (36,3%)
345 (36,3%)
0,0% (−4,5 a 4,6)
Admissão na UTI
39 (4,0%)
29 (3,0%)
−1,0% (−2,9 a 0,9)
27 (3,5%)
32 (3,4%)
−0,1% (−2,2 a 2,0)
Tabela 1: desfechos primários e secundários (adaptado do estudo original – Elmunzer et al. (2)).
Dos 188 pacientes que foi tentada passagem de PPP sem sucesso, 19 (10,1%) tiveram PEP.
Realizando testes estatísticos “post-hoc” – ou seja, após a obtenção e análise dos dados e, portanto, sujeitos a mais vieses – os autores identificaram que o grupo IN foi inferior na profilaxia de PEP e teve um risco 32% maior de PEP do que o grupo PP.
Na análise de subgrupos avaliando múltiplas variáveis, os fatores que mais impactaram a diferença entre os grupos favorecendo o grupo PP foram: técnica do duplo-fio guia, esfincterotomia pancreática e não realização de esfincterotomia biliar (tabela 2).
Tabela 2: análise de subgrupos (adaptado do artigo original – Elmunzer et al. (2)).
Ainda foi observado que quantos mais fatores de risco o paciente apresentava, maior proteção a PPP ofereceu, partindo de um número necessário para tratar (NNT) de 44 para os pacientes que tinham apenas 1 fator de risco e chegando a um NNT=7 para pacientes com 3 ou mais fatores.
Conclusão do estudo
Os autores concluem que a combinação de indometacina e prótese pancreática foi superior à indometacina isolada na prevenção de PEP em pacientes de alto risco, especialmente em pacientes com múltiplos fatores de risco. Ainda sugerem maior treinamento na passagem de próteses pancreáticas durante a especialização em CPRE, porém alertam para o cuidado em relação à técnica e ao tempo de tentativa, que não foram padronizados no estudo.
Análise Crítica
Embora o estudo seja um ECR robusto, seus resultados e conclusões devem ser interpretadas com cautela. É fundamental considerar que o estudo foi desenhado como um ECR denão-inferioridade, o que pode gerar inconsistências nas inferências de superioridade. Testes estatísticos “post-hoc” são importantes para aproveitar ao máximo os dados do estudo e levantar novas hipóteses, porém não devem ser a base para conclusões.
A concepção das intervenções nos grupos talvez seja a principal causa dos possíveis equívocos observados nos resultados, os quais levaram a conclusões imprecisas. A profilaxia com prótese pancreática é recomendada pelas principais sociedades de endoscopia dos Estados Unidos e da Europa – ASGE e ESGE – para pacientes de alto risco nos quais o DPP foi canulado de forma inadvertida (1,3). Portanto, esses pacientes deveriam ter recebido a PPP, mesmo quando randomizados para o grupo sem PPP (grupo IN) – o que não ocorreu na maioria dos casos.
Embora o estudo não apresente explicitamente o número de pacientes do grupo IN que sofreram canulação inadvertida do DPP, a Tabela 2 revela parte dessa informação: nesse grupo, houve 68 casos com uso da técnica de duplo fio-guia, 23 esfincterotomias pancreáticas e 1 injeção com acinarização pancreática – totalizando, no mínimo, 92 pacientes com indicação formal para PPP. Considerando que apenas 16 pacientes do grupo IN foram submetidos ao “crossover” para o grupo que recebeu a prótese, pelo menos 76 pacientes elegíveis deixaram de receber a PPP – provavelmente um número ainda maior.
Esse viés é reforçado pelo fato de que os subgrupos que mais contribuíram para a diferença entre as abordagens foram justamente aqueles nos quais ocorreu canulação inadvertida do DPP – como os que realizaram técnica do duplo fio-guia e esfincterotomia pancreática (provavelmente associada à técnica de acesso transpancreático).
Uma concepção metodológica mais adequada teria sido randomizar os pacientes entre dois grupos: um com tentativa ativa de canulação do DPP para passagem de PPP e outro sem essa tentativa. Dessa forma, todos os pacientes com canulação inadvertida do DPP receberiam PPP, independentemente do grupo para o qual foram inicialmente alocados.
É importante contextualizar que o estudo foi iniciado em 2015, quando as recomendações sobre o uso da PPP em casos de canulação inadvertida ainda não eram tão enfáticas quanto são atualmente. Assim, a concepção adotada pode ter sido considerada aceitável à época. Entretanto, como foi publicado em 2024, os autores deveriam ter considerado essas limitações, trazendo a conclusão de que na estratégia desenhada não foi demonstrada a não-inferioridade das abordagens, sugerindo estudos para avaliar se vale a pena ou não tentar ativamente cateterizar o DPP para passagem de PPP, ao invés de estimular essa abordagem – que pode ser perigosa e até aumentar o risco de PEP.
Mensagem Final
A pancreatite aguda pós-CPRE é uma complicação crítica que requer cuidados técnicos e medidas profiláticas. As principais estratégias incluem:
Uso de AINEs via retal antes do procedimento em pacientes sem contraindicação
Hidratação intravenosa agressiva em pacientes sem contraindicação
Colocação de prótese pancreática profilática em pacientes de alto risco com canulação inadvertida do DPP
Embora o estudo de Elmunzer et al. sugira a possibilidade de tentativa ativa de canulação do DPP para passagem de PPP em pacientes de alto risco para PEP, essa abordagem deve ser considerada com cautela, dadas suas implicações potencialmente prejudiciais, e não deve ser praticada de rotina. Trabalhos futuros devem estudar adequadamente essa abordagem antes de novas recomendações serem adotadas.
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Homem, 80 anos, tabagista, com sequelas de AVE prévio e sem antecedentes cirúrgicos, vem apresentando quadro progressivo de icterícia + colúria + acolia fecal associado a anorexia e perda de peso há 45 dias.
Durante investigação constatou-se à RNM de abdome uma volumosa massa sólida em topografia de cabeça pancreática com invasão de veia mesentérica.
Posteriormente submeteu-se à Ecoendoscopia com punção da lesão que confirmou se tratar de Adecocarcinoma mal diferenciado. Em virtude do estadiamento e condições clínicas do paciente, foi definido em avaliação multidisciplinar por tratamento oncológico clínico (não cirúrgico) com drenagem da obstrução biliar maligna (OBM) através de prótese metálica autoexpansível (PMAE).
Tratamento minimamente invasivo de lesão iatrogênica da via biliar pós-colecistectomia
Relato de caso:
MRS, 78 anos, feminino, realiza consulta médica com endoscopista intervencionista após início de quadro de inapetência, icterícia, náuseas/vômitos, colúria, acolia fecal e prurido intenso 15 dias após cirurgia de colecistectomia videolaparoscópica. Nega febre, alteração do nível de consciência ou outros comemorativos, bem como alergias e antecedentes pessoais. Ex-tabagista e relata apenas a colecistectomia como antecedente cirúrgico.
Ao exame físico, apresentava-se ictérica 4+/4+ (Fig 1), abdome pouco doloroso à palpação do HCD com ferida operatória limpa e seca, sem mais achados dignos de nota. Trouxe exames laboratoriais com anemia leve (Hb 11,5) e alteração de enzimas hepáticas (TGO 645, TGP 1031), enzimas canaliculares (FA 319, GGT 529) e hiperbilirrubinemia à custa de bilirrubina direta (BT 5,7, BD 4,9). Além disso, apresentava exame de ressonância de abdome superior com colangiorressonância (Fig 2) evidenciando: status pós-colecistectomia, coleção na loja vesicular apresentando aparente comunicação com terço médio do colédoco compatível com bilioma (8,5 x 4,9 x 4,0cm) e moderada dilatação das vias biliares extra e intra-hepáticas a montante do ponto de contato entre a coleção e o terço médio do colédoco denotando compressão extrínseca deste segmento pela coleção.
Fig 1. Imagem do paciente revelando icterícia à ectoscopiaFig 2. Imagem da ressonância de abdome superior com colangiorressonância mostrando coleção a nível de loja da vesícula biliar
Diante desse cenário, foi indicada terapêutica minimamente invasiva combinada de Colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) para drenagem da via biliar e drenagem percutânea através de radiologia intervencionista para o bilioma. Ambos bem sucedidos, entretanto CPRE revelou lesão iatrogênica da via biliar (clipagem parcial do ducto colédoco) e coledocolitíase proximal à subestenose, tendo sido procedida drenagem da via biliar com prótese plástica (Fig 3). A drenagem percutânea foi guiada por USG (Fig 4) e aspirado 100ml de liquido bilioso, mantido dreno por 3 dias sem intercorrências.
Fig 3. Imagens dos achados colangiográficas da primeira CPRE: clipes metálicos em via biliar (esq.) e subestenose da via biliar nessa mesma topografia após injeção de contraste (dir.).Fig 4. Imagens dos achados ultrassonográficos: coleção levemente heterogênea em topografia de loja vesicular (esq.) e drenagem percutânea da coleção (dir.).
Paciente manteve assintomática e acompanhamento ambulatorial para programação de tratamento definitivo, que foi optado pela dilatação da via biliar (balão CRE 6-8mm) e inserção de prótese metálica auto-expansível totalmente recoberta (10 x 80mm) (Fig 5). O procedimento foi realizado 90 dias após a primeira CPRE sem intercorrências e optado pela retirada após 1 ano. A última CPRE foi realizada 12 meses após a inserção da prótese metálica no qual foi possível retirá-la, extrair o cálculo da via biliar proximal e obter uma colangiografia sem sinais obstrutivos ou extravazamentos ao final do procedimento (Fig 6).
Fig 5. Imagens colangiográficas da segunda CPRE: A. Imagem colangiográfica mostrando coledocolitíase proximal e subestenose em topografia de clipes; B. Imagem colangiográfica dilatação com balão em via biliar; C. Imagem radiológica da prótese metálica auto-expansível.Fig 6. Imagens colangiográficas da última CPRE: A. Imagem radiológica da prótese metálica inserida no procedimento anterior; B. Imagem colangiográfica de coledocolitiase em via biliar proximal; C. Colangiografia de oclusão final.
Discussão
Estenose benigna da via biliar é uma condição que pode necessitar de intervenção terapêutica através de endoscopia e a etiologia pós-cirúrgica (lesão inadvertida) corresponde a 0,2 – 0,5% dos casos, ficando atrás das estenoses de anastomose pós-transplante hepático (3 – 46%) e patologias inflamatórias pancreatobiliares (15-20%)¹.
A principal causa de estenose pós-colecistectomia é a lesão de via biliar, que em sua maioria são identificadas ainda no intra-operatório (75%) e tem o ducto hepático comum como a localização mais frequente². O paciente pode apresentar-se assintomáticos ou ter manifestações clinico-laboratoriais de obstrução da via biliar em um período que geralmente se estende em até 3 meses da colecistectomia³.
Existem algumas classificações para estratificação das lesões iatrogênicas da via biliar, sendo as mais conhecidas as de Bismuth4 e Strasberg5, conforme tabelas abaixo (Adaptadas de Mercado MA4 e Strasberg SM5):
O tratamento endoscópico nas lesões iatrogênicas da via biliar tem o intuito de evitar o tratamento cirúrgico que possui maior chance de morbidade, entretanto pode requerer maior número de intervenções6. Os resultados da terapêutica endoscópica com implantação com stents mostram sucesso no tratamento relativamente alta (70-80% na média dos estudos selecionados7,8,9), taxa de recidiva em torno de 16%8.
Os principais estudos comparando o uso de múltiplas próteses plásticas versus prótese metálica auto-expansível totalmente recoberta mostram resultados com resultados de resolução, recorrência e efeitos adversos semelhantes, entretanto com número de intervenções significativamente menores em pacientes que utilizaram a prótese metálica no seu tratamento10.
Referências
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Khan MA, Baron TH, Kamal F, Ali B, Nollan R, Ismail MK, Tombazzi C, Artifon ELA, Repici A, Khashab MA. Efficacy of self-expandable metal stents in management of benign biliary strictures and comparison with multiple plastic stents: a meta-analysis. Endoscopy. 2017 Jul;49(7):682-694. doi: 10.1055/s-0043-109865. Epub 2017 May 24. PMID: 28561199.
Costamagna G, Tringali A, Mutignani M, Perri V, Spada C, Pandolfi M, Galasso D. Endotherapy of postoperative biliary strictures with multiple stents: results after more than 10 years of follow-up. Gastrointest Endosc. 2010 Sep;72(3):551-7. doi: 10.1016/j.gie.2010.04.052. Epub 2010 Jul 13. PMID: 20630514.
Giri S, Jearth V, Sundaram S. Covered Self-Expanding Metal Stents Versus Multiple Plastic Stents for Benign Biliary Strictures: An Updated Meta-Analysis of Randomized Controlled Trials. Cureus. 2022 Apr 29;14(4):e24588. doi: 10.7759/cureus.24588. PMID: 35651420; PMCID: PMC9138190.
CPRE e Ecoendoscopia no tratamento da pancreatite aguda recorrente pediátrica e pancreatite crônica
Ampliando a discussão sobre CPRE em pacientes pediátricos, esse post discutirá o artigo publicado por Joshi D, Shafi T, Al-Farsi U, et al., publicado no Journal of Clinical Medicine em 2024.
Introdução
A pancreatite crônica (PC) e a Pancreatite Aguda Recorrente (PAR) na população pediátrica são tipicamente causadas por variantes anatômicas (por exemplo, pâncreas divisum), malformações coledococianas, mutações genéticas no regulador da condutância transmembrana da fibrose cística (CFTR), no gene da Protease Serina tipo 1 (PRSS1), no inibidor de protease de serina tipo Kazal 1 (SPINK1), na quimotripsina C (CTRC) e nos genes da carboxipeptidase A1 (CPA1), bem como infecções, causas autoimunes e traumas. A incidência estimada de PC na população ocidental varia entre 0,5 e 2 a cada 100.000 crianças por ano. Embora rara em crianças, é frequentemente associada com sintomas debilitantes, atraso no crescimento, desenvolvimento prejudicado, aumento dos custos com saúde e uma baixa qualidade de vida.
Métodos
Este trabalho é uma Coorte Retrospectiva, unicêntrica, com dados coletados no King’s College Hospital, no Reino Unido, entre janeiro de 2008 e dezembro de 2022. Foram incluídos pacientes pediátricos (<18 anos) que realizaram CPRE e/ou Ecoendoscopia para PC ou PAR.
Nos casos de CPRE, um duodenoscópio pediátrico era utilizado em crianças menores que 1 ano. Quando maiores que um ano, um duodenoscópio adulto era escolhido. Quanto à ecoendoscopia, foi utilizado um ecoendoscópio com transdutor linear ou radial em pacientes maiores que 1 ano. Nos menores que 1 ano, um ultrassom endobrônquico foi utilizado.
Eventos adversos periprocedimento foram registrados e classificados de acordo com as orientações da Sociedade Americana de Endoscopia Gastrointestinal (ASGE). Durante o período de acompanhamento, os pacientes eram geralmente avaliados a cada 3 a 6 meses em uma clínica de pancreatite pediátrica. Quaisquer procedimentos endoscópicos adicionais, cirurgias ou outras intervenções—incluindo alterações nos medicamentos analgésicos—também foram registrados.
Resultados
Ao longo dos 16 anos do estudo, 562 crianças realizaram um procedimento de CPRE (n = 486) ou Ecoendoscopia (n = 76). Um total de 111 pacientes (20%) foi diagnosticado com PC e 25 pacientes foram diagnosticados com PAR. Todos os indivíduos realizaram exames de imagem pré-procedimento (ultrassom, tomografia computadorizada e/ou ressonância magnética) para confirmar a presença de PC ou PAR e para definir o melhor método endoscópico a ser utilizado.
O sintoma mais frequente foi dor abdominal (93%). Insuficiência exócrina pancreática esteve presente em 76% dos indivíduos. A maioria dos pacientes era do sexo feminino (55%), e a idade mediana da coorte foi de 11 anos (intervalo de 1 a 18 anos).
As etiologias mais comuns da PC foram genéticas (20%), anormalidades anatômicas (22%), autoimunes (12%), cálculos biliares (7%) e criptogênica (28%). Entre os casos de pancreatite hereditária, as variantes nos genes PRSS1 e SPINK1 foram as mais prevalentes (74% dos indivíduos). As anormalidades anatômicas incluíram pâncreas divisum (n = 15), má junção pancreático-biliar (n = 10) e pâncreas anular (n = 5).
CPRE
Um total de 222 CPREs foram realizadas em 98 indivíduos com PC/PAR. Os alvos terapêuticos incluíram: estenose do ducto pancreático principal (DPP) com dilatação a montante (45%); cálculos sintomáticos no DPP associados a uma estenose (65%) ou sem estenose associada (20%); e estenose associada do ducto biliar comum inferior (5%). As estenoses do DPP foram mais frequentemente observadas na cabeça do pâncreas (70%).
A canulação bem-sucedida do ducto pancreático foi alcançado em 98% dos pacientes. Todos os pacientes realizaram uma esfincterotomia pancreática seguida de dilatação com balão (4 mm). Em 80% dos casos, foi utilizado o balão extrator, seguida da inserção de um único stent plástico na CPRE inicial em 60% dos casos.
Dos pacientes submetidos ao CPRE para PAR, 88% tiveram a colocação de stent (todos plásticos). A resolução da estenose foi mais comumente observada com stents metálicos totalmente cobertos em comparação com stents plásticos isolados (75% vs. 51%, p = 0,001). A duração média de um stent metálico foi de 3,1 meses (intervalo de 1 a 5 meses). Pacientes tratados com um stent metálico (30%) versus um único stent plástico (50%) ou múltiplos stents plásticos (10%) necessitaram significativamente menos procedimentos subsequentes para resolver a estenose (1,1 ± 0,82 vs. 2,85 ± 0,9 vs. 1,40 ± 0,82, p < 0,001).
Após a resolução da estenose do DPP, desde 2019, um stent biodegradável Archimedes foi colocado em 80% dos casos. Isso evitou a necessidade de remoção do stent do DPP durante uma futura gastroscopia.
Para o tratamento de cálculos pancreáticos, a utilização do balão extrator foi a terapêutica mais comum, com uma taxa de sucesso de 94%. No geral, o sucesso no clareamento do DPP foi de 81%, com uma mediana de 2 procedimentos para sua resolução completa.
Não ocorreram mortes durante o procedimento de CPRE. A taxa de complicação foi de 3,6%, sendo a mais comum a pancreatite pós-CPRE (n = 4), migração interna do stent do ducto pancreático (n = 1), sangramento (n = 1), perfuração (n = 1) e dessaturação (n = 1), todas classificadas como leves ou moderadas.
Após uma mediana de follow-up de 24 meses, observou-se uma melhora na dor abdominal de 76% dos pacientes submetidos à CPRE. A CPRE com inserção de stent plástico para PAR resultou em uma redução nas internações hospitalares (2,5 vs. 1,25, p = 0,04). O IMC médio também apresentou melhora (15,5 ± 1,41 vs. 12,9 ± 1,16 kg/m², p = 0,001). Não foram disponibilizados dados acerca do controle glicêmico, e 3% dos pacientes necessitaram de cirurgia pancreática para controle dos sintomas.
Ecoendoscopia
Um total de 54 procedimentos de ecoendoscopia foram realizados em 48 pacientes. A indicação terapêutica mais comum foi drenagem de uma coleção líquida pancreática (65%). A indicação diagnóstica mais frequente foi a avaliação de uma massa pancreática ou linfadenopatia adjacente (20%), seguida pela avaliação de um cisto pancreático (15%).
A biópsia com agulha fina (FNB) revelou características de fibrose crônica em cinco pacientes, inflamação compatível com doença relacionada a IgG4 em dois pacientes e alterações inflamatórias inespecíficas em quatro pacientes.
No grupo de pacientes com coleção líquida pancreática, sete pacientes foram submetidos a uma tentativa de drenagem utilizando um stent plástico de Tennenbaum. Em quatro pacientes (56%), o stent foi colocado com sucesso. Nos outros três casos, não foi possível posicionar o stent, sendo realizada, em vez disso, uma aspiração por agulha fina (FNA). A partir de 2017, os stents metálicos autoexpansíveis com aposição luminal (LAMSs) passaram a estar disponíveis e foram preferencialmente utilizados para drenagem de coleções com ou sem necrose. Nos 25 pacientes que realizaram cistogastrostomia guiada por Ecoendoscopia com LAMS, o stent foi colocado com sucesso em todos os casos.
A maioria das massas pancreáticas estava localizada na cabeça do pâncreas (64%), com o restante observado no corpo do pâncreas. Em 88% das biópsias (todas realizadas com FNB), foi obtida uma amostra de tecido adequada para permitir uma avaliação histológica precisa.
A taxa de sucesso da Ecoendoscopia foi de 89%. Complicações pós-procedimento foram observadas em dois casos (4%), incluindo sepse (n = 1) e pancreatite (n = 1). Estas complicações foram classificadas como leve, sem necessidade de procedimentos adicionais.
Discussão
Já consolidado em pacientes adultos, o uso da CPRE e da ecoendoscopia em pacientes pediátricos vem se mostrando atrativo. No entanto, alguns cuidados amplamente utilizados em adultos, como o uso de AINE via retal, não foram amplamente utilizados em pacientes pediátricos neste estudo.
Foi demonstrado, neste estudo, a eficácia do uso de stents plásticos e metálicos, com uma taxa de resolução de estenose superior observada com os últimos. Observou-se também, uma melhora na dor abdominal em mais de dois terços dos pacientes submetidos à CPRE, uma redução nas internações hospitalares em pacientes com PAR e uma melhora no IMC. Além disso, não foram demonstrados eventos adversos após a endoscopia.
Além do seu uso para PC, existem outras indicações para o uso da Ecoendoscopia e da CPRE em pacientes pediátricos, incluindo o manejo de doenças biliares com estenose, biópsia hepática guiada por EUS, colangioscopia e pancreatoscopia, embolização guiada por EUS de varizes gástricas e medição da pressão portal. Esses procedimentos são, em teoria, possíveis em pacientes pediátricos e podem ser utilizados se considerados apropriados.
O advento da nova tecnologia de stents biodegradáveis pode ter seu uso difundido, principalmente em pacientes pediátricos. Disponível em 2019, o stent Archimedes foi adotado como o stent preferido para uso profilático em casos adultos e pediátricos. Na presente coorte, o stent Archimedes de degradação rápida foi utilizado no CPRE de seguimento após a resolução da estenose do DPP. O seu principal benefício é poupar o paciente de um novo procedimento, o qual, em pacientes pediátricos, é realizado frequentemente sob anestesia geral.
Em resumo, este estudo demonstra a segurança, eficácia e os benefícios a longo prazo da aplicação de CPRE e Ecoendoscopia em crianças com PC e PAR, como parte de uma abordagem multidisciplinar.
Comentários
Apesar dos procedimentos biliopancreáticos endoscópicos não serem frequentes na faixa etária pediátrica, há indicações precisas tanto para o diagnóstico quanto no tratamento. A Sociedade Japonesa de Endoscopia Pediátrica contabilizou 238 CPREs entre os anos de 2000 e 2004, onde, no mesmo período, foram realizadas 5059 endoscopias digestivas alta.
De acordo com a Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal e a Sociedade Europeia de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica, a CPRE e a ecoendoscopia estão indicadas nos seguintes casos:
Síndrome Colestática neonatal, onde os exames de imagem não são suficientes para definir o diagnóstico, a fim de evitar cirurgias desnecessárias;
Em crianças maiores que 1 ano de idade com quadro de colestase, não definido por exame de imagem; nos casos de suspeita de cistos de colédoco, colangite esclerosante primária e anomalias anatômicas da junção biliopancreática; na avaliação de pacientes com crises de pancreatite aguda recorrentes (PAR) e em crianças com pancreatite crônica (PC).
Quando indicada, a CPRE apresenta uma sensibilidade de 86% e uma especificidade de 94% para o diagnóstico de atresia das vias biliares. No âmbito terapêutico, os procedimentos mais frequentemente realizados incluem a papilotomia endoscópica com remoção de cálculos biliares e pancreáticos, a inserção de próteses plásticas nas vias biliares e pancreáticas, além da remoção de parasitas da via biliar, como Ascaris lumbricoides e Fasciola hepatica.
A CPRE e a ecoendoscopia devem ser realizadas sob anestesia geral em todas as crianças com até 12 anos de idade, enquanto a sedação profunda é uma alternativa viável para adolescentes. Em relação à segurança do paciente, a proteção radiológica deve ser intensificada para áreas sensíveis como gônadas, tireoide, mama e retina nesta faixa etária. Para a prevenção de pancreatite aguda pós-CPRE, o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) é recomendado apenas para crianças com idade superior a 14 anos.
Mesmo nos dias atuais, há uma limitação significativa devido à falta de equipamentos específicos para a realização da CPRE e da ecoendoscopia em crianças menores de 1 ano ou com peso inferior a 10 kg, já que a fabricação de aparelhos pediátricos foi descontinuada. Em crianças com peso superior a 10 kg submetidas à CPRE, o duodenoscópio terapêutico adulto pode ser utilizado. Para os casos em que a ecoendoscopia é indicada, o ecoendoscópio adulto pode ser empregado em crianças com mais de 15 kg, enquanto o ultrassom endobrônquico (EBUS) é uma opção viável para crianças abaixo desse peso. As Tabelas 1 e 2 apresentam os duodenoscópios atualmente comercializados no mundo, enquanto a Tabela 3 sugere a seleção desses aparelhos de acordo com o peso e a idade. Os modelos de ecoendoscópios disponíveis estão nas Tabelas 4 e 5, sendo que a Tabela 6 apresenta a seleção desses dispositivos com base na idade e no peso.
Fabricante
Modelo
Diâmetro externo da extremidade distal (mm)
Comprimento de trabalho (mm)
Diâmetro interno do canal (mm)
Olympus
TJF-160F/160VF
13,2
1240
4,2
TJF-Q180V
13,7
1240
4,2
JF-260V
12,6
1240
3,7
TJF-260V
13,5
1240
4,2
TJF-Q190V/Q290V
13,5
1249
4,2
FUJIFILM
ED-580T
13,1
1250
4,2
ED-580XT
13,1
1250
4,2
PENTAX
ED32-i10
12,5
1250
3,2
ED34-i10T2
13,6
1250
4,2
Tabela 1. Duodenoscópios padrão para adultos.
Fabricante
Modelo
Diâmetro externo da extremidade distal (mm)
Comprimento de trabalho (mm)
Diâmetro interno do canal (mm)
Olympus
PJF
8,8
1130
2,0
PJF-7.5
8,0
1030
2,0
PJF-240
8,0
1230
2,0
Tabela 2. Duodenoscópios finos para neonatos, lactentes e crianças (produtos descontinuados).
Endoscópio
Idade
Peso
Duodenoscópios finos
<1–2 anos
<10 kg
Duodenoscópios padrão
>1–2 anos
>10 kg
Tabela 3. Seleção de endoscópios com base na idade e no peso.
Fabricante
Modelo
Diâmetro Distal (mm)
Canal Interno (mm)
Transdutor / Ângulo
Olympus
GF-UC160P-OL5
14,2
2,8
Convexo / 150°
GF-UCT160-OL5
14,6
3,7
Convexo / 150°
GF-UE260-AL5
13,8
2,2
Radial / 360°
GF-UCT180/260
14,6
3,7
Convexo / 180°
TGF-UC180J/260J
14,6
3,7
Convexo / 90°
GF-UE190/290
13,4
2,2
Radial / 360°
FUJIFILM
EG-530UL2
14,2
2,2
Linear
EG-580UR
11,4
2,8
Radial / 360°
EG-580UT
13,9
3,8
Convexo / 150°
PENTAX
EG34-J10U
12,9
2,8
Convexo / 150°
EG36-J10UR
10,4
10,4
10,4
EG38-J10UT
14,3
4,0
Convexo / 150°
Tabela 4. Ecoendoscópios padrão (EUS) para adultos.
Fabricante
Modelo
Diâmetro Distal (mm)
Canal Interno (mm)
Transdutor / Ângulo
Olympus
BF-UC160F
6,9
2,0
Convexo / 80°
BF-UC180F/260FW
6,9
2,2
Convexo / 60°
BF-UC190F/290F
6,6
2,2
Convexo / 65°
FUJIFILM
EB-530US
6,7
2,0
Convexo / 65°
PENTAX
EB-1970UK
7,4
2,0
Convexo / 75°
EB19-J10U
7,3
2,2
Convexo / 75°
Tabela 5. Broncoendoscópios (EBUS).
Endoscópio
Idade
Peso
Broncoendoscópios (EBUS)
<3–4 anos
<15 kg
Ecoendoscópio padrão
>3–4 anos
>15 kg
Tabela 6. Seleção de endoscópios com base na idade e no peso
Radan Keil e colaboradores realizaram uma análise retrospectiva de uma série de casos envolvendo 626 pacientes pediátricos submetidos a 856 CPREs ao longo de um período de 18 anos. Em crianças com menos de 1 ano ou peso inferior a 12 kg, foram utilizados duodenoscópios de 7,5 mm com canal de trabalho de 2 mm, sendo a principal dificuldade o uso limitado de acessórios disponíveis para este tipo de aparelho. Para crianças entre 1 e 3 anos, foram empregados duodenoscópios diagnósticos com diâmetro de 11 mm e canal de trabalho de 3,2 mm. A partir dos 3 anos de idade, foi possível utilizar duodenoscópios terapêuticos com 13,5 mm de diâmetro e canal de trabalho de 4,2 mm.
As principais indicações para a realização da CPRE neste estudo foram a avaliação de casos de obstrução biliar e pancreatite crônica em todas as faixas etárias. A posição pronada foi a preferida para a realização do procedimento. O índice global de sucesso foi de 94,6%, enquanto o maior índice de insucesso (7,8%) ocorreu no grupo de pacientes com menos de 1 ano de idade, embora não tenha havido diferença estatisticamente significativa entre as diferentes faixas etárias.
A CPRE com finalidade terapêutica foi realizada em 58,8% dos procedimentos, dos quais 13% foram destinados ao tratamento de condições pancreáticas e 10,2% envolveram crianças com menos de 1 ano de idade. Entre as 23 CPREs realizadas em pacientes dessa faixa etária, apenas uma papilotomia foi realizada, e 20 stents de 5 Fr foram introduzidos na via biliar. Nessa faixa etária, houve apenas um caso de perfuração, sem relatos de pancreatite. A incidência global de pancreatite foi de 1,6%.
Sendo assim, tanto a CPRE quanto a ecoendoscopia podem ser considerados procedimentos seguros na faixa etária pediátrica, incluindo crianças com peso inferior a 10 kg. O principal desafio, no entanto, permanece sendo a disponibilidade de equipamentos e acessórios adequados no mercado.
Referências
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Como citar este artigo
Ide E. e Dall’Agnol MK. Endoscopic Retrograde Cholangio-Pancreatography and Endoscopic Ultrasound in the Management of Paediatric Acute Recurrent Pancreatitis and Chronic Pancreatitis. Endoscopia Terapeutica. 2025 vol. I. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/endoscopic-retrograde-cholangio-pancreatography-and-endoscopic-ultrasound-in-the-management-of-paediatric-acute-recurrent-pancreatitis-and-chronic-pancreatitis/
Esfincterotomia transpancreática
A canulação biliar é etapa fundamental no sucesso da CPRE, sendo o acesso biliar difícil associado a maiores taxas de falha na CPRE e eventos adversos documentados na literatura1.
Na falha de acesso à via biliar pela técnica convencional métodos alternativos de acesso pela CPRE podem ser empregados, tais como a fístula suprapapilar, cateterização por duplo fio guia, esfincterotomia transpancreática (ETP), pré-corte e diferentes técnicas de acesso por Rendez Vous2.
A ETP, descrita por Goff em 1995 3, vem recentemente sendo discutida como importante método de acesso, nos casos de cateterização inadvertida do DPP.
A técnica consiste em, após a cateterização do ducto pancreático principal, direcionar o papilótomo para o eixo da via biliar às 11h, realizando a esfincterotomia (Figura 1).
Figura 1: ilustração da técnica de esfincterotomia transpancreática.
Na sequência é recomendada a passagem de uma prótese pancreática e em seguida procedida a cateterização da via biliar (Figura 2).
Figura 2: esfincterectomia transpancreática seguida de passagem de prótese pancreática.
Uma das vantagens potenciais do método é o acesso ser direcionado pela presença do fio guia, em contrapartida à fístula suprapapilar, podendo beneficiar endoscopistas em treinamento4.
Nos últimos anos foram realizados novos trabalhos, avaliando as taxas de sucesso da ETP, assim como a ocorrência de eventos adversos relacionados. Clique para saber mais sobre Estratégias de prevenção de pancreatite pós-CPRE.
Dois estudos retrospectivos se destacam pelas grandes amostras de pacientes submetidos à CPRE5,6. O primeiro realizou comparação entre um grupo controle cujo acesso convencional obteve sucesso, ETP, duplo fio-guia e pré-corte com estilete, as taxas de sucesso foram respectivamente 94,9% / 87,2% / 74,5% / 69.6%, não houve diferença significativa em eventos adversos entre o grupo controle e a ETP, nesta a taxa de pancreatite foi de 1,1% e a de sangramento 0,3%. O segundo trabalho citado avaliou pacientes submetidos à ETP em comparação aos com acesso biliar convencional, o sucesso técnico da ETP foi de 95,9%, a ocorrência de pancreatite nesse grupo de 2,8% e o desfecho de sangramento apresentou-se significativamente superior quando comparado ao acesso convencional (10,9%, P=0,005), atribuindo porém o risco de sangramento a tentativas prévias de acesso por pré-corte.
Em ensaio clínico randomizado multicêntrico comparando ETP e duplo fio-guia em acesso biliar difícil7, Kylänpää e colaboradores demonstraram superioridade da ETP na realização de acesso biliar (84,6 % x 69,7 %; P = 0.01), sem diferença na taxa de pancreatite (13,5 % x 16,2 %).
Por fim, a metanálise comparando as diferentes técnicas de acesso à via biliar difícil8, favoreceu a realização de ETP em relação à persistir na tentativa com técnica tradicional, duplo fio guia, pré-corte e canulação assistida por prótese pancreática para o desfecho de acesso bem sucedido à via biliar.
Com base nos trabalhos avaliados a esfincterotomia transpancreática se demonstra como método seguro e eficaz para a canulação biliar em casos de falha do acesso convencional, devendo ser uma opção no arsenal do endoscopista. É importante destacar que a seleção da técnica para o acesso biliar em caso de falha na canulação convencional deve considerar o aspecto endoscópico da papila, patologia de base, ocorrência de cateterização do DPP e a expertise do endoscopista.
Referências
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Kylänpää L, Koskensalo V, Saarela A, Ejstrud P, Udd M, Lindström O, Rainio M, Tenca A, Halttunen J, Qvigstad G, Arnelo U, Fagerström N, Hauge T, Aabakken L, Grönroos J. Transpancreatic biliary sphincterotomy versus double guidewire in difficult biliary cannulation: a randomized controlled trial. Endoscopy. 2021 Oct;53(10):1011-1019.
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Primary Needle-Knife Fistulotomy Versus Conventional Cannulation Method in a High-Risk Cohort of Post-Endoscopic Retrograde Cholangiopancreatography Pancreatitis
Publicado no American Journal of Gastroenterology (AJG) em 2020 Referência: Jang SI, Kim DU, Cho JH, et al. Primary Needle-Knife Fistulotomy Versus Conventional Cannulation Method in a High-Risk Cohort of Post-Endoscopic Retrograde Cholangiopancreatography Pancreatitis. Am J Gastroenterol. 2020 Apr;115(4):616-624. doi: 10.14309/ajg.0000000000000480. PMID: 31913191.
Introdução
A maior parte das publicações relacionadas à CPRE, envolve medidas para reduzir a incidência de pancreatite aguda (post-ERCP pancreatitis – PEP), cuja incidência chega a 14,1% em pacientes de alto risco (1). Talvez o fator de risco passível de intervenção mais relevante seja o trauma de cateterização (2), motivo pelo qual, alguns artigos passaram a estudar o acesso por fístula infundibular ou infundibulotomia sem tentativas prévias de canulação transpapilar. A hipótese é que, com uma incisão mais distante do ducto pancreático principal (DPP)/óstio papilar, haja menor edema local e incidência de PEP. Por outro lado, questiona-se a segurança e eficácia desta estratégia.
Métodos
Este trabalho é multicêntrico (7 centros na Coréia do Sul), que incluiu apenas pacientes de alto risco para PEP, randomizando pacientes para cateterização convencional transpapilar (conventional cannulation methods – CCM) ou para infundibulotomia (needle-knife fistulotomy – NKF) “upfront”, sem tentativas transpapilares prévias.
No grupo CCM, as tentativas eram limitadas a 10 minutos, 5 cateterizações do ducto pancreático principal (DPP) ou mais de uma injeção de contraste no DPP. Nestes casos, ocorria uma espécie de crossover, sendo realizada a NKF. Ainda no grupo da CCM, a técnica do duplo fio guia poderia ser empregada.
No grupo da NKF, buscou-se manter uma distância de ao menos 5 mm entre a incisão e o óstio da papila. Foi utilizada a unidade eletrocirúrgica VIO 300D, com o endocut I, efeito 2, duração e intervalo de corte 3. Após a cateterização, o acesso era ampliado com papilótomo ou dilatação balonada.
AINEs via retal e hiper-hidratação com ringer-lactato não foram utilizados. Como profilaxia de PEP, houve apenas o uso de stent pancreático, cuja passagem ocorreu de acordo com a avaliação momentânea do endoscopista. O follow-up foi realizado apenas até o terceiro dia após a CPRE. Uma vez que sangramentos tardios podem ocorrer até 1-2 semanas, a avaliação deste evento adverso apresenta um viés importante
Resultados
CCM: 97 pacientes → 87 canulações (89,7% de sucesso) x 10 casos que foram para NKF (acesso à via biliar bem sucedido nos 10). Vale ressaltar que os 10 pacientes submetidos a NKF neste grupo não foram incluídos na análise final – isso apresenta importante limitação metodológica, uma vez que são pacientes com manipulação relevante da papila, logo de alto risco para PEP, podendo subestimar a incidência de PEP neste grupo.
NKF: 98 pacientes → 96 canulações (97,9% de sucesso) x 1 caso em foi tentado CCM (sem sucesso) e 1 com acesso à via biliar apenas após procedimento combinado com radiointervenção.
O estudo considerou maior sucesso técnico no grupo da NKF (89,7% x 97,9%, p = 0,005). Os 10 casos considerados como insucesso no grupo da CCM foram resolvidos com NKF, revelando a eficácia da estratégia empregada pela maioria dos endoscopistas, na qual a NKF é um método “de resgate” – aproximadamente 90% de sucesso transpapilar e os outros 10% foram resolvidos com NKF.
Em relação aos eventos adversos, houve 8 casos de PEP com CCM e nenhum com NKF (9,2% x 0%; p = 0,001). Não houve diferença na incidência de sangramento, perfuração, hiperamilasemia assintomática (lembrar que não é considerado um evento adverso ou complicação), colangite ou colecistite entre os grupos.
Como esperado, houve mais passagem de stents pancreáticos (p = 0,048), cateterizações (p = 0,017) e injeções de contraste (não significativo) no DPP no grupo da CCM, já que o mesmo não está presente na topografia da fístula suprapapilar, exceto em casos de canal comum longo.
O tempo total de procedimento e de canulação foi maior no grupo da NKF. Isso pode ser explicado pela exclusão de pacientes submetidos a CCM com tempo de canulação prolongado, conforme exposto pelos autores.
Os desfechos clínicos com diferença estatística e os eventos adversos são sumarizados na tabela 1.
Desfechos clínicos
CCM
NKF
p
Sucesso técnico
89/97 (89,7%)
96/98 (97,9%)
0,005
Número de canulações do DPP
18 (20,7%)
8 (8,3%)
0,017
Número de injeções de contraste do DPP
4 (4,6%)
3 (3,1%)
0,606
Passagem de stent pancreático
6 (6,9%)
1 (1,0%)
0,048
Tempo de canulação
171,5 +/- 173,0 min
257,2 +/- 219,6 min
0,004
Tempo total de procedimento
766,9 +/- 375,2 min
907,6 +/- 458,8 min
0,025
Eventos adversos
PEP
8 (9,2%)
0 (0%)
0,001
Sangramento
1 (1,1%)
3 (3,1%)
0,363
Perfuração
0 (0%)
0 (0%)
> 0,999
Colecistite
0 (0%)
0 (0%)
> 0,999
Colangite
2 (2,3%)
3 (3,1%)
0,733
Hiperamilasemia assintomática
15 (17,2%)
13 (13,5%)
0,489
Discussão
O trabalho traz um resultado muito expressivo, com uma redução importante na incidência de PEP com a estratégia de NKF “upfront”, sem manipulação do óstio papilar. A redução da taxa de PEP foi bastante superior a estratégias preconizadas como o uso de AINEs, hiper-hidratação, emprego de corte puro (ou endocut efeito 1) na papilotomia e uso de stent pancreático (2, 3).
Os resultados vão de encontro ao mecanismo de trauma de canulação como possível principal fator modificável na profilaxia de PEP (2)
Entretanto, alguns questionamentos são levantados em relação à estratégia NKF:
Em primeiro lugar, a morfologia da papila é sabidamente relevante no sucesso desta técnica, a qual fica muito limitada, por exemplo em papilas diminutas e planas. O trabalho avaliou apenas a semelhança da morfologia da papila entre os grupos – não houve seleção de casos de acordo com a morfologia favorável, o que parece mais adequado na prática clínica (possivelmente a melhor estratégia é direcionar os casos em que haja morfologia favorável para NKF “upfront”). Além disso, excluiu 2 casos em que a papila apresentava morfologia desfavorável para NKF.
Outro ponto importante é a curva de aprendizado, não havendo consenso a esse respeito. Uma vez que trata-se de uma técnica avançada e exige expertise em CPRE, existe a recomendação (não consensual) de ser empregada apenas por endoscopistas com > 300 CPREs supervisionadas e > 80% de canulação transpapilar.
A técnica em si, com exposição de cerca de 3 mm da ponta do estilete (needle-knife), incisão gradual, aprofundando planos e reavaliando o tecido exposto (e sabendo identificar a parede e mucosa do colédoco), mantendo-se a uma distância mínima de 3 mm do óstio também é muito importante para o sucesso e menor incidência de complicações.
Deve-se ainda, considerar que, pela menor abertura da incisão final da NKF em relação à incisão desde o óstio papilar (CCM), alguns cálculos de grandes dimensões podem ser de extração mais difícil.
O trabalho também nos permite concluir que a NKF é um método seguro, uma vez que apresenta menor incidência de PEP e semelhante incidência dos demais eventos adversos quando comparado à CCM.
Outros trabalhos na literatura apresentam resultados similares, destacando-se:
Estudo randomizado por Furuya et al., publicado em 2018 (4): PEP: NKF 1/51 = 2% x CCM 5/51 = 9,8% (p não significativo); 100% de sucesso na canulação biliar no grupo da NKF x 39/51 = 76,5% na CCM, sendo os outros 12 casos bem sucedidos com fístula de resgate.
Revisão sistemática e metanálise por Mutneja et al, publicado em 2021 (5): tendência a menor incidência de PEP com NKF 3/253 (1,2%) x 16/238 (6,7%), p = 0,06; com taxas de sucesso no acesso à via biliar (p = 0,28) e de outros eventos (p = 0,59) similares entre os grupos.
Em resumo, a despeito das limitações do trabalho e considerações a respeito da NKF, já há evidência para embasar esta técnica “upfront” para endoscopistas com adequada expertise, especialmente em papilas com morfologia favorável e pacientes de alto risco para PEP.
Referências
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Buxbaum JL, Freeman M, Amateau SK, et al. American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on post-ERCP pancreatitis prevention strategies: summary and recommendations. Gastrointest Endosc. 2023;97(2):153-162. doi:10.1016/j.gie.2022.10.005. PMID: 36517310.
Furuya CK, Sakai P, Marinho FRT, et al. Papillary fistulotomy vs conventional cannulation for endoscopic biliary access: A prospective randomized trial. World J Gastroenterol. 2018;24(16):1803-1811. doi:10.3748/wjg.v24.i16.1803. PMID: 29713133.
Mutneja HR, Bhurwal A, Attar BM, Vohra I, Tejeda EP, Verma S, Kumar V, Demetria M. Efficacy and safety of primary needle-knife fistulotomy in biliary cannulation: a systematic review and meta-analysis. Eur J Gastroenterol Hepatol. 2021 Dec 1;33(1S Suppl 1):e71-e77. doi: 10.1097/MEG.0000000000002238. PMID: 34284413.
Pure Cut ou Endocut para Esfincterotomia Biliar? Um Estudo Multicêntrico Randomizado
Publicado no American Journal of Gastroenterology (AJG) em 2023
Introdução
Há grande preocupação com os eventos adversos pós-CPRE. Dentre eles, o que gera maior preocupação é a pancreatite pós-CPRE (post-ERCP pancreatitis – PEP) devido à sua incidência (1,6 – 9,7%) e potencial de gravidade (1-3). Múltiplas medidas como anti-inflamatórios (AINEs) via retal, hiper-hidratação com ringer lactato e passagem de prótese pancreática foram postulados para a prevenção deste evento adverso. Considerando, entre os mecanismos fisiopatológicos da PEP, a disseminação de energia térmica na região da papila (proximidade com o óstio pancreático), alguns trabalhos investigaram melhor esta relação (corrente elétrica e PEP). Deste modo, existe a hipótese que o corte puro cause menos dano térmico e menos pancreatite que correntes mistas como o blend ou endocut. Por outro lado, há a preocupação de um possível aumento da incidência de sangramento diante de um menor poder de coagulação (corte puro). Recentemente, foi publicado na AJG (American Journal of Gastroenterology), um estudo randomizado multicêntrico (FMUSP e FMRP) comparando o corte puro com o corte pulsado ou Endocut (configuração recomendada pela ERBE – endocut I, efeito 2) empregados na papilotomia endoscópica. Clique aqui para saber mais sobre configurações de bisturi elétrico.
Métodos
Pacientes com papila virgem submetidos à CPRE com canulação transpapilar primária (sem técnicas de pré-corte, esfincterotomia transpancreática ou infundibulotomia/fístula) foram randomizados para corte puro ou pulsado (Endocut). A randomização foi realizada após a confirmação do acesso à via biliar e definição de que a papilotomia seria realizada. Não foram incluídos pacientes com CPRE/papilotomia prévia, variações anatômicas (pós-operatório) e com coagulopatia. As unidades eletrocirúrgicas foram:
Corte pulsado (Endocut)
ERBE VIO 300 ou VIO 3 (ERBE), Endocut I, efeito 2, duração de corte 3 e ciclo de corte 3 conforme recomendado pelo fabricante e amplamente utilizado em grandes centros em todo o mundo
Corte puro
SS-200E (WEM) corte puro 30-50W ou ICC 200 (ERBE) AUTO CUT 30-50W (efeito 3).
Como profilaxia de PEP, os pacientes de risco receberam hiper-hidratação com ringer lactato e, em raros casos, prótese pancreática (clique aqui para saber mais sobre profilaxias). AINEs via retal não foram utilizados devido sua indisponibilidade nos centros incluídos. O desfecho primário foi a incidência de PEP e os principais secundários foram sangramento e perfuração/papilotomia em zíper. Pancreatite e sangramento foram definidos e graduados segundo os critérios de Cotton (tabela 1). Consideramos apenas perfuração relacionada à papilotomia (Stapfer tipo II).
Tabela 1 – Critérios de Cotton para pancreatite e sangramento relacionados à CPRE (4)
Sangramento (tardio)
Leve
queda de Hb < 3 g/dL, evidência clínica do sangramento; sem necessidade de transfusão
Moderada
transfusão < 4 concentrados de hemácias (CH), sem necessidade de procedimento
Grave
transfusão >= 5 CH e/ou necessidade de arteriografia ou cirurgia
Pancreatite pós-CPRE
Leve
Quadro clínico compatível + amilase > 3x o valor de referência após 24h do procedimento + readmissão ou prolongamento da internação até 2-3 dias (diagnóstico exige readmissão ou prolongamento da internação)
Moderada
Hospitalização por 4-10 dias
Grave
Hospitalização > 10 dias ou complicação local (infecção/ pseudocisto/ pancreatite hemorrágica) ou necessidade de intervenção (drenagem percutânea/ cirurgia)
Resultados
Entre 2019 e 2021, 550 pacientes foram incluídos (272 no grupo do corte puro e 278 no endocut). As características de base foram semelhantes entre os grupos (incluindo fatores de risco para PEP e sangramento).
Pancreatite (PEP)
A incidência total de PEP foi de 4,0%, sendo maior no braço do endocut (5,8% vs 2,2%, P = 0,034). A análise univariada revelou o número de tentativas > 5 (p = 0,004) e o Endocut (p = 0,034) como fatores de risco. Na análise multivariada, houve uma tendência para o Endocut (p = 0,052), sendo o número de tentativas > 5 (p = 0,005) o principal fator de risco para PEP.
Sangramento imediato (durante o procedimento)
Em 18% dos casos houve sangramento imediato acima do esperado, sendo que 9% (metade) exigiram intervenção endoscópica (os outros 9% foram autolimitados). As análises uni e multivariadas revelaram idade (OR 1,013; IC 95% 1,000 – 1,025; p = 0.046), dilatação balonada da papila (OR 2,120; IC 95% 1,275 – 3,524; p = 0.004), injeção de contraste no ducto pancreático (OR 2,287; IC 95% 1,010 – 5,177; p = 0.047) e corte puro (OR 2,554; IC 95% 1,594 – 4.093; p < 0.001) como fatores de risco.
Nenhum destes casos apresentou repercussão hemodinâmica e todos foram controlados durante o mesmo procedimento, por meio de corrente de coagulação, injeção de solução de adrenalina e colocação de hemoclipes. Nenhum caso precisou de stent metálico ou procedimentos adicionais com radiologia intervencionista ou cirurgia.
Sangramento tardio (após o procedimento)
A incidência de sangramento tardio foi de 1,4%. O endocut se mostrou como fator de risco para este evento adverso (p = 0,047).
Perfuração/ papilotomia em zíper
Não houve casos de perfuração relacionada à papilotomia (p = 1,0). Ocorreu apenas um caso de papilotomia em zíper, no grupo do Endocut.
Discussão
A fisiopatologia e os trabalhos publicados sobre o assunto, apontam para maior lesão térmica e maior incidência de PEP com o emprego de maior proporção de coagulação. Vale a pena ressaltar, que um trabalho comparando blend e corte puro foi interrompido precocemente devido maior incidência de PEP com o blend, reforçando este mecanismo fisiopatológico (5). A comparação fica evidente na tabela abaixo (tabela 2), que traz os resultados de todos os estudos randomizados publicados sobre o assunto.
Tabela 2 – Sumário dos ECRs comparando a incidência de PEP com os modos de corte puro e pulsado
Corte puro
Corte pulsado (Endocut)
Ellahi et al. 2001 (6)
0/31 (0%)
5/55 (9,1%)
Kida et al. 2004 (7)
1/43 (2,3%)
4/41 (9,8%)
Norton et al. 2005 (8)
1/134 (0,75%)
3/133 (2,3%)
Funari et al. 2022 (9)
6/272 (2,2%)
16/278 (5,8%)
Total
8/486 (1,6%)
28/501 (5,6%)
O corte puro se associa a maior incidência de sangramento intra-procedimento. Porém esses sangramentos são controlados de modo relativamente simples e não se mostraram relacionados a sangramento tardio (com repercussão clínica). Além disso, houve mais sangramentos tardios com o Endocut. Hipóteses para estes achados são: (1) a identificação e tratamento de vasos durante o procedimento que não sangrariam durante a CPRE inicial (com o endocut) e, portanto, não seriam tratados, podendo apresentar sangramento tardio e (2) maior progressão de lesão térmica com o endocut, atingindo vasos mais calibrosos nos dias pós procedimento, porém ser capaz de promover sua coagulação.
Além disso, os trabalhos não mostraram associação do tipo de corrente elétrica com a perfuração e papilotomia descontrolada (em zíper). De qualquer forma, ressalta-se a importância de cuidado e treinamento para a papilotomia com corte puro, uma vez que não há interrupção automática da onda de corte como com o corte pulsado.
Resumindo, segundo os trabalhos analisados, o emprego de maior proporção de coagulação com o modo Endocut está associada a maior incidência de PEP e, talvez, de sangramentos tardios. O corte puro está associado a maior incidência de sangramento imediato (sem repercussão clínica). Logo, parece razoável preferir empregar o corte puro de modo rotineiro na papilotomia.
Vale uma ressalva importante para os endoscopistas familiarizados com o Endocut. O trabalho seguiu a recomendação atual do fabricante (ERBE), com o efeito 2. Lembramos que o efeito 1 não libera corrente de coagulação entre as ondas de corte (ausência do gráfico azul), funcionando como um corte puro pulsado (imagem 1).
Portanto, podemos utilizar o corte puro ou o endocut efeito 1 (corte puro pulsado), minimizando o efeito negativo da corrente elétrica com maior poder de coagulação na papilotomia.
Imagem 1 – Corte pulsado (Endocut): ilustração gráfica dos diferentes efeitos
Material adicional sugerido para aprofundar no assunto:
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Revisão sistemática e metanálise sobre o assunto
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Paciente feminina, 76 anos, hipertensa e diabética, refere dor abdominal, sem sintomas colestáticos ou alterações laboratoriais, encaminhada por colega gastroenterologista para avaliação de alterações em exames de imagem. Nega tabagismo, etilismo ou antecedentes cirúrgicos abdominais.
Colangiopancreatografia por Ressonância Magnética:
Ectasia de vias biliares extrahepáticas e ducto pancreático principal, com colédoco de 1,8 cm, possivelmente secundária ao divertículo duodenal. Divertículo duodenal de 2,6 cm determinando impressão em colédoco distal.
Ecoendoscopia:
Dilatação do ducto colédoco sem fator obstrutivo – janela transbulbar (ducto colédoco medindo cerca de 16 mm). Discreta dilatação do ducto pancreático principal. Vesícula com mínimas formações polipóides de 2,5 mm, sem imagens sugestivas de cálculos em seu interior.