Antrombóticos (Antiagregantes e Anticoagulantes): Manejo na Endoscopia

O termo antitrombótico compila as drogas que possuem efeito antiagregante plaquetário ou anticoagulante. Muitos pacientes têm feito uso dessas medicações contínuas em situações clínicas como fibrilação atrial, implante de valvas mecânicas, trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar.

Visando redução dos riscos e um uso adequado das drogas antitrombóticas periprocedimentos, incluindo aqueles com abordagens endoscópicas, faz-se necessário um adequado entendimento dos processos de hemostasia, dos mecanismos de ação dessas medicações, suas indicações de uso, farmacocinética e abordagem em caso de sangramento. Para tal, as condutas citadas serão baseadas nos Guidelines da American Society for Gastrointestinal Endoscopy (ASGE) e European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) [1,2].

Mecanismos de Coagulação

A hemostasia primária é o processo inicial da coagulação desencadeado pela lesão vascular. Imediatamente, mecanismos locais produzem vasoconstrição, alteração da permeabilidade vascular com produção de edema, vasodilatação dos vasos tributários da região em que ocorreu a lesão e adesão das plaquetas. O endotélio do vaso lesionado libera difosfato de adenosina, serotonina e tromboxano A2. As plaquetas respondem a essas citocinas com a expressão de glicoproteína IIb/IIIa e junto à molécula de adesão celular plaqueta endotélio tipo 1 levam a formação de um tampão plaquetário inicial (Figura 1).

Figura 1: Início de agregação plaquetária em área de lesão de vaso (adaptado de National Bleeding Disorders Foundation – hemophilia.org)

Na hemostasia secundária, a coagulação sanguínea consiste na conversão de uma proteína solúvel do plasma, o fibrinogênio, em um polímero insolúvel, a fibrina, por ação de uma enzima denominada trombina (Figura 2).

Figura 2: Formação de fibrina em lesão tecidual (adaptado de National Bleeding Disorders Foundation – hemophilia.org)

Isso ocorre com a exposição do fator tecidual no local da lesão endotelial junto com as cascatas de coagulação em suas vias intrínseca e extrínseca (Figura 3).

Figura 3: Formação de fibrina em lesão tecidual (adaptado de Parekh et al. Am J Gastroenterol 2014) [3]

Drogas Antitrombóticas

Além das drogas antigas como a Varfarina, um antagonista da vitamina K com ação anticoagulante, e o ácido acetil salicílico (AAS), um inibidor da ciclooxigenase com efeito antiagregante plaquetário, temos novas classes de drogas que serão discutidas a seguir.

Antiagregante plaquetários: Tienopiridinas

As tienopiridinas atuam como antagonistas do receptor P2Y12, inibindo a agregação plaquetária dependente da adenosina difosfato que é liberada após a lesão endotelial, durante a hemostasia primária. As principais drogas desse grupos são Clopidogrel (Plavix), Prasugrel (Effient) e Ticagrelor (Brillinta).

Antiagregante plaquetários: Inibidores da GPIIbIIIa

Os inibidores do complexo glicoprotéico IIb/IIIa constituem classe heterogênea de fármacos capazes de bloquear a via final comum da agregação plaquetária. Para uso clínico, por via endovenosa, constituído por: Tirofiban (Aggrastat), Abciximab (ReoPro) e Eptifibatide (Integrilin).

– Anticoagulante: Varfarina e Heparinas

Apesar de possuir largo tempo de utilização e efetividade bem definida, a Varfarina (Warfarin, conhecido como Coumadin e Marevan) possui algumas desvantagens frente às novas drogas anticoagulantes que são: sua estreita janela terapêutica e margem de segurança necessitando de monitorização laboratorial frequente, inicio lento de ação, com alcance de faixa terapêutica somente após alguns dias em muitos casos, e a potencial influência da dieta e outras medicações na sua atividade.   Por outro lado, é uma droga difusamente conhecida, com potencial de reversão dos seus efeitos de modo rápido e fácil com uso de vitamina K ou mesmo plasma.

Já as heparinas interagem com a antitrombina, um anticoagulante natural que inativa os fatores IXa, Xa e XIa, aumentando o efeito deste anticoagulante em mais de 1000 vezes. Representando pela Heparina não fracionada (HNF) e as de baixo peso molecular (HBPM), devido ao seu tempo de meia-vida curto, elas são utilizadas como método de ponte: troca de anticoagulante de longa duração por curta em procedimentos de alto risco.

 – Anticoagulante: Inibidores Xa

Representando pela Rivaroxabana (Xarelto), os inibidores do fator Xa inibem competitivamente o fator X ativado e atuam da cascata como um todo, já que o fator X unifica as vias intrínseca e extrínseca da coagulação. Ao se associar com o fator Va o fator X forma um complexo chamado protrombinase que atua na transformação da protrombina em trombina. A rivaroxabana atua prevenindo a formação da protrombinase e consequentemente da trombina.

 – Anticoagulante: Inibidores diretos da Trombina

Os inibidores diretos da trombina são representados pelas drogas Bivalirudina (Angiomax) e Dabigatran (Pradaxa). A Bivalirudina é um droga utilizada principalmente em procedimentos de intervenção coronariana percutânea. Já o Dabigatran é uma droga aprovada na prevenção de isquemia cerebral em casos de fibrilação atrial não valvular e no tromboembolismo venoso.

Vide resumo da tabela abaixo com o tempo de duração dos antitrombóticos equivalente ao tempo de suspensão caso seja indicado (Tabela 1).

Tabela 1: Tempo de duração e suspensão das drogas antitrombóticas (Comissão Científica SOBED 2017-2018).

Manejo Endoscópico

Com base nos conceitos acima, a forma como iremos abordar quaisquer procedimentos endoscópicos baseiam-se na janela terapêutica: em que há menor risco de sangramento (baixo risco do procedimento ou suspensão da medicação antitrombótica) versus o risco tromboembólico (doença trombótica de base), ilustrado na Figura 4.

Figura 4: Ilustração da janela terapêutica (modificado de Huo et al., Science Bulletin, 2019) [4].

Para isso, devemos inicialmente avaliar o risco versus benefício e adiar, quando possível, os procedimentos eletivos até que a terapia antitrombótica de curto prazo seja concluída. Antes da suspensão de qualquer medicação antitrombótica, o paciente deverá realizar avaliação com seu médico prescritor quanto à suspensão das medicações e indicação do exame.

Sendo um exame indicado, o primeiro passo é seguir com estratificação de risco de sangramento do procedimento, seguido de estratificação de risco tromboembólico e conduta.

Risco de sangramento do procedimento

BAIXO Risco de Sangramento ALTO Risco de Sangramento
Procedimentos diagnósticos com ou sem biópsia Polipectomia endoscópica
CPRE com passagem de prótese biliar
ou pancreática (Sem esfincterotomia)
CPRE com esfincterotomia
Colocação de próteses esofágicas, enterais ou colônicas Ampulectomia
Ecoendoscopia diagnóstica Mucosectomia e ESD
Dilatação de estenose
Tratamento de varizes
Gastrostomia endoscópica
Ecoendoscopia com punção ou terapêutica
Ablação esofágica ou gástrica
Tabela 2: Estratificação de risco de sangramento do procedimento

Risco tromboembólico

Baixo Risco Tromboembólico Alto Risco Tromboembólico
Válvula cardíaca biológica Válvula cardíaca metálica mitral ou aórtica
Válvula cardiáca com Fibrilação Atrial
Fibrilação Atrial com Estenose Mitral
Fibrilação Atrial Sem Alto Risco (CHADS 2  ≤ 4 pontos):
* Insuficiência cardíaca (1 ponto)
* Hipertensão (1 ponto)
* Idade > 75 anos (1 ponto)
* Diabetes mellitus (1 ponto)
* AVE ou AIT (2 pontos)
Fibrilação Atrial Com Alto Risco
(CHADS 2  >4 pontos)
Fibrilação Atrial com AVE ou AIT com menos de 3 meses
TVP com mais de 3 meses de tratamento TVP com menos de 3 meses de tratamento
Tabela 3: Estratificação de risco tromboembólico

Conduta

  • Procedimentos de BAIXO Risco de Sangramento:

    • Mantém antiagregação;
    • Mantém Varfarina se dentro da faixa terapêutica, caso contrário, aguardar correção de dose com especialista;
    • Suspender outros anticoagulantes somente no dia;

  • Procedimentos de ALTO Risco de Sangramento e BAIXO Risco Tromboembólico:

    • Suspender Clopidogrel, Ticagrelol ou Prasugrel 7 dias antes e reiniciar 1 a 2 dias após procedimento, mantendo sempre o AAS;
    • Suspender anticoagulantes orais diretos (DOAC – Direct Oral AntiCoagulants: Dabigatrana, Rivaroxabana, Apixabana e Edoxabana) 3 dias antes, sendo 5 dias se doença renal com clearance de 30-50mL/min, e retomar em 2 a 3 dias após procedimento;
    • Suspender Varfarina 5 dias antes (checar se INR<1,5 antes do exame) e retomar dose usual ao fim do dia do procedimento.

  • Procedimentos de ALTO Risco de Sangramento e ALTO Risco Tromboembólico:

    • Suspender Clopidogrel, Ticagrelol ou Prasugrel 7 dias antes e reiniciar 1 a 2 dias após procedimento, mantendo sempre o AAS;
    • Suspender anticoagulantes orais diretos (DOAC – Direct Oral AntiCoagulants: Dabigatrana, Rivaroxabana, Apixabana e Edoxabana) 3 dias antes, sendo 5 dias se doença renal com clearance de 30-50mL/min, e retomar em 2 a 3 dias após procedimento;
    • Realizar ponte de anticoagulação: Suspender Varfarina 5 dias antes, com início de HBPM (Enoxaparina) 3 dias antes do procedimento, seguida de suspensão no dia do procedimento. Retomar o uso da Varfarina ao fim do dia do procedimento, mantendo a HBPM até faixa de INR terapêutica.

  • Manter AAS em todos os casos, principalmente para prevenção secundária. As exceções são: suspender imediatamente em quadro agudo de sangramento, prevenção primária que poderá ser suspensa 5 dias antes em procedimentos de alto risco de sangramento e, segundo a ESGE, suspender para ampulectomia. [1,5]
  • Em casos de alto risco trombóticos de pacientes com stent coronariano ou dúvidas do risco tromboembólico, recomenda-se avaliação do cardiologista para manejo de antiagregação e anticoagulação.

Referências:

  1. Veitch AM, Radaelli F, Alikhan R, et al. Endoscopy in patients on antiplatelet or anticoagulant therapy: British Society of Gastroenterology (BSG) and European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) guideline update. Endoscopy. 2021 Sep;53(9):947-969. doi: 10.1055/a-1547-2282. Epub 2021 Aug 6. PMID: 34359080; PMCID: PMC8390296.
  2. ASGE Standards of Practice Committee; Acosta RD, Abraham NS, et al. The management of antithrombotic agents for patients undergoing GI endoscopy. Gastrointest Endosc. 2016 Jan;83(1):3-16. doi: 10.1016/j.gie.2015.09.035. Epub 2015 Nov 24. Erratum in: Gastrointest Endosc. 2016 Mar;83(3):678. PMID: 26621548.
  3. Parekh PJ, Merrell J, Clary M, Brush JE, Johnson DA. New anticoagulants and antiplatelet agents: a primer for the clinical gastroenterologist. Am J Gastroenterol. 2014 Jan;109(1):9-19. doi: 10.1038/ajg.2013.228. PMID: 24402526.
  4. Huo Y, Jeong YH, Gong Y, et al. 2018 update of expert consensus statement on antiplatelet therapy in East Asian patients with ACS or undergoing PCI. Sci Bull (Beijing). 2019 Feb 15;64(3):166-179. doi: 10.1016/j.scib.2018.12.020. Epub 2018 Dec 28. PMID: 36659616.
  5. Biondi-Zoccai GG, Lotrionte M, Agostoni P, et al. A systematic review and meta-analysis on the hazards of discontinuing or not adhering to aspirin among 50,279 patients at risk for coronary artery disease. Eur Heart J. 2006 Nov;27(22):2667-74. doi: 10.1093/eurheartj/ehl334. Epub 2006 Oct 19. PMID: 17053008.

Como citar este arquivo

Kum AST e Medrado B. Antrombóticos (Antiagregantes e Anticoagulantes): Manejo na Endoscopia. Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/antromboticos-antiagregantes-e-anticoagulantes-manejo-na-endoscopia/




Perfuração na Colonoscopia: Cuidados e Manejo

Introdução

O câncer colorretal (CCR) se trata de uma preocupação global com incidência ascendente com o decorrer dos anos, chegando a uma estimativa do número atual de 1.960.000 chegar a 3.600.000 casos em 2050 segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) [1]. A colonoscopia tem um papel importante no diagnóstico do CCR e também para diminuir sua incidência e mortalidade através do tratamento de afecções colorretais através de polipectomias e ressecções de lesões pré-malignas [2, 3]. 

Como em todo ato médico intervencionista, podem ocorrer eventos adversos inerentes a qualquer procedimento, e no caso das colonoscopias são: náuseas, vômitos ou distensão abdominal pelo preparo intestinal; hipotensão arterial, bradicardia, depressão respiratória e broncoaspiração pela sedação; dor abdominal, sangramento e perfuração pelo procedimento.

Cada paciente é um indivíduo particular, podendo ter anatomia variada congênita ou por cirurgias prévias, sendo que os dispositivos de endoscopia e colonoscopia seguem um design para um biotipo padrão. Como conseguinte, complicações como a perfuração podem ocorrer independente da técnica e expertise do endoscopista. As perfurações são efeitos adversos raros, inerentes a qualquer procedimento endoscópico, potencialmente graves e sua incidência estimada globalmente é de 0,016 a 0,8% para colonoscopias diagnósticas e 0,02 a 8% para colonoscopias terapêuticas [4].

Os mecanismos associados às perfurações de cólon após colonoscopia são: 

  • trauma direto ocasionado pelo movimento progressivo do colonoscópio;
  • pressão lateral na parede do cólon decorrente de alças do aparelho;
  • passagem do colonoscópio por áreas doentes (estenoses, tumores ou divertículos);
  • barotrauma por insuflação excessiva de ar;
  • aplicação de corrente elétrica em ressecções endoscópicas.

Aproximadamente 45-60% das perfurações são diagnosticadas durante o procedimento e o restante é reconhecido após o exame com base em sinais e sintomas clínicos que se manifestam geralmente em até 48h como dor abdominal importante com distensão abdominal, sinais de peritonite, taquicardia, leucocitose e febre [4], ou identificados através de exames de imagem como radiografia simples ou tomografia computadorizada (TC) com sinais de pneumoperitônio. Um dos pontos mais críticos do manejo da perfuração tardia é o tempo do diagnóstico, já que a mortalidade nessas condições pode chegar a 5-25% [3,4].

Clique aqui para mais informações de perfurações de trato gastrointestinal alto.

Manejo

A depender de diferentes fatores, visando minimizar a morbimortalidade da perfuração por colonoscopia e se baseando na diretriz da World Society of Emergency Surgery [4], a conduta varia conforme diferentes cenários apresentados a seguir.

Suspeita de perfurações não identificadas durante a colonoscopia

Após colonoscopias diagnósticas ou terapêuticas recentes, devem ser orientados a procurar o pronto socorro e serem investigados para perfuração intestinal por exames laboratoriais e de imagem os pacientes que apresentem os seguintes sintomas:

  • dor abdominal persistente e refratária a sintomáticos;
  • distensão abdominal importante fora do habitual;
  • febre e calafrios;
  • sangramento retal.

Os marcadores bioquímicos solicitados no caso de suspeita de perfuração são essencialmente leucograma e proteína C reativa. A complicação pode ser confirmada com a demonstração de ar livre intra-peritoneal ou extra-peritoneal. A TC possui maior sensibilidade do que as radiografias abdominais para detectar pneumoperitônio.

Perfurações identificadas durante a colonoscopia

Caso a perfuração seja detectada durante o procedimento pelo endoscopista, os seguintes detalhes das informações ajudam na tomada de decisão:

  • Indicação de colonoscopia (ou seja, diagnóstica ou terapêutica);
  • Doença cólica associada (por exemplo, estenoses, pólipos, tumores);
  • Estado geral do paciente e presença de comorbidades;
  • Tipo de gás usado para insuflação;
  • Qualidade da preparação do cólon;
  • Hora da ocorrência da perfuração;
  • Localização e tamanho da lesão;
  • Se houve intervenção endoscópica pretendida ou sucedida.

O tratamento endoscópico pode ser considerado como uma abordagem inicial se for viável dentro de 4 horas após o procedimento, com paciente estável e pouca contaminação peritoneal, a depender:

  • Perfurações Menores que 2 cm: avaliar fechamento primário por via endoscópica com hemoclipes associado ou não a terapia a vácuo endoscópico, internação, jejum, hidratação endovenosa e antibioticoterapia por 3-5 dias com cobertura de Gram negativo e anaeróbio.
  • Perfurações Maiores que 2 cm: referir para a cirurgia. Pode-se de acordo com experiência do endoscopista e os recursos locais, características dos pacientes e localização da lesão avaliar a possibilidade de fechamento primário por via endoscópica e, seguir com mesmo processo das perfurações menores que 2 cm.

O manejo não operatório, conservador, das perfurações pode ser apropriado em pacientes selecionados, incluindo pacientes que estão hemodinamicamente estáveis, sem sepse, com dor localizada e sem líquido livre em exame de imagem. A TC abdominal é sugerida para ajudar a descartar peritonite ou formação precoce de abscesso. Um diagnóstico diferencial importante é a síndrome pós-coagulação.

Perfurações tardias

Em casos de perfurações confirmadas não identificadas durante a colonoscopia, deve-se avisar imediatamente a equipe de cirurgia e endoscopia, seguida de internação hospitalar, em UTI a depender do estado e comorbidade do paciente, e avaliar necessidade de intervenção cirúrgica.

Pacientes com pequenas perfurações, ausência de sinais de sepse e peritonite, preparo de cólon adequado, assintomático ou com melhora dos sintomas: 

  • internação;
  • jejum por 2-6 horas;
  • hidratação endovenosa;
  • antibioticoterapia com cobertura de Gram negativo e anaeróbio por 3-5 dias. 

A cirurgia de emergência é recomendada quando o paciente desenvolve sinais e sintomas de peritonite, em casos de deterioração clínica, suspeita de grande perfuração, falha no manejo conservador, preparo intestinal inadequado ou na presença de doença cólica subjacente que requeira cirurgia.

Fluxograma do Manejo da Perfuração na Colonoscopia

Fluxograma para perfuração na colonoscopia (adaptado de WSES guidelines for the management of iatrogenic colonoscopy perforation)

Referências

  1. Dados de Cancer Tomorrow da International Agency for Research on Cancer, da World Health Organization. https://gco.iarc.fr/tomorrow/en.
  2. Zauber AG, Winawer SJ, O’Brien MJ, et al. Colonoscopic polypectomy and long-term prevention of colorectal-cancer deaths. N Engl J Med. 2012 Feb 23;366(8):687-96. doi: 10.1056/NEJMoa1100370. PMID: 22356322; PMCID: PMC3322371.
  3. Lee J, Lee YJ, Seo JW, et al. Incidence of colonoscopy-related perforation and risk factors for poor outcomes: 3-year results from a prospective, multicenter registry (with videos). Surg Endosc 37, 5865–5874 (2023). https://doi.org/10.1007/s00464-023-10046-5.
  4. de’Angelis N, Di Saverio S, Chiara O, et al. 2017 WSES guidelines for the management of iatrogenic colonoscopy perforation. World J Emerg Surg. 2018 Jan 24;13:5. doi: 10.1186/s13017-018-0162-9. PMID: 29416554; PMCID: PMC5784542.

Como citar este artigo

Santos JB, Vilela Filho TF, Furuya Júnior CK, Kuga R, Kum AST. Perfuração na Colonoscopia: Cuidados e Manejo. Endoscopia Terapeutica 2024, Vol I. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.com.br/assuntosgerais/perfuracao-na-colonoscopia-cuidados-e-manejo/




Acesso Transgástrico Endoscópico GATE (EDGE) em Bypass Gástrico: o passo a passo

Segundo o Ministério da Saúde, a obesidade atinge 6,7 milhões de pessoas no Brasil. Devido ao crescimento das taxas de obesidade adjunto a eficácia da cirurgia bariátrica, um levantamento da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) contabilizou 315.720 mil cirurgias bariátricas no período de 2017 a 2022. Com a crescente prevalência de pacientes com anatomia alterada principalmente pelo bypass gástrico com reconstrução em Y de Roux (BGYR), a necessidade de acesso no estômago excluso para tratamento de coledocolitíase, síndromes colestáticas obstrutivas benignas e malignas nessa população são fatores que motivaram o desenvolvimento de técnicas para acesso transgástrico e viabilizar a abordagem endoscópica.

Atualmente, as abordagens mais tradicionais são:

  • acesso por enteroscopia
  • acesso transgástrico intraoperatório: necessita equipe cirúrgica (assista ao vídeo – clique aqui)
  • gastric access temporary for endoscopy – GATE: realizado por ecoendoscopia. Essa técnica também pode ter a nomenclatura de Endoscopic ultrasound-Directed transGastric Endoscopic retrograde cholangiopancreatography – EDGE.

saiba mais sobre esse assunto nesse outro artigo – clique aqui

Dentre as três possibilidades, o GATE mostra-se mais promissor segundo uma metanálise head-to-head de Deliwala et al., cujo trabalho demonstrou

  • alta taxa de sucesso técnico quando comparado aos outros métodos: GATE 100% vs. enteroscopia 66% e GATE 97% vs. intraoperatorio 98%)
  • efeito adverso menor (GATE 9,6% vs. enteroscopia 16% e GATE 13% vs. intraop 17,6%),
  • tempo de procedimento menor (GATE 61,26 min vs. entero 169,38 min e GATE 75,64 min vs. intraop 187,73 min)
  • tempo de internação menor (GATE 1,8 dias vs. entero 6,9 dias e GATE 2,2 dias vs. intraop 5,4 dias).

As principais complicações do GATE são: falha de fechamento da fístula confeccionada (chegando a 17%) e migração do Stent (7% dos casos). Ambas as complicações são passíveis de correção por endoscopia e a abordagem cirúrgica é rara.

A seguir, descreveremos o passo a passo para o GATE.

A técnica

Consiste na confecção de acesso transgástrico através de uma gastrogastroanastomose ou por jejunogastroanastomose através da alça jejunal proximal do Y de Roux até o estômago excluso, por meio de ecoendoscopia setorial e uso de prótese metálica de aposição de lumens – LAMS (Figura 1);

Figura 1: Hot Axios, prótese metálica com aposição de lúmens inserido em catéter diatérmico que permite disparar sem necessidade de dilatação com cistótomo.

Passo 1: Avaliação ecoendoscópica

  • Em transição esofagogástrica, localizar a borda inferior do fígado e girar sentido horário pela visão ecoendoscópica até localizar a “bolacha do mar”, sand dollar sign, que seria o estômago excluso em sua porção antral (Figura 2);
Figura 2: Estômago excluso visto em ecoendoscopia, visualizando o formato de “bolacha do mar” devido ao engruvinhamento das pregas gástricas separadas em camadas ecográficas.

  • Puncionar a porção distal do estômago com agulha FNA de 19G até encostar na parede contralateral e retrair a agulha discretamente para centralizar no lúmen (Figura 3);
Figura 3: Visão ecográfica de punção do estômago excluso com agulha FNA 19G.

  • Administrar contraste iodado pela agulha (optar por seringas pequenas e contraste iodado (diluído em 50% com soro fisiológico), confirmando e dilatando o estômago excluso por ecoendoscopia e fluoroscopia (Figura 4);
Figura 4: Injeção de contraste e soro fisiológico em estômago excluso com a agulha FNA 19G.

  • Conectar a agulha com uma bomba de água adaptada com luer lock e preencher com soro fisiológico até distender o estômago de forma segura (distender com ao menos o diâmetro de uma coluna vertebral (estimado em 2,5 cm);
  • Dica: utilizar o doppler para evitar vasos no trajeto de punção e sangramento desnecessário é essencial.

Passo 2: Disparo do LAMS

  • Retrair a agulha e reposicionar o ecoendoscópico até visualizar a parte proximal do corpo gástrico excluso, logo abaixo da transição esogagogástrica, confirmando com ecoendoscopia, visão endoscópica e fluoroscopia;
  • Repuncionar com FNA 19G, em corpo proximal e distender o estômago excluso novamente com soro fisiológico em bomba até ter uma janela de punção com lúmen de ao menos 3 cm e visualizar o contraste em fundo (Figura 5);
Figura 5: Dilatação do estômago excluso através da injeção de soro fisiológico em nova punção de corpo proximal.

  • Caso o LAMS não seja diatérmico, será necessário uso de cistótomo para dilatação do trajeto guiada por fio-guia antes;
  • Disparo do LAMS (preferencialmente de 20 mm de diâmetro) em corpo proximal do estômago excluso o mais distal à transição esofagogástrica e proximal à anastomose gastrojejunal (Figura 6);
Figura 6: Visão endoscópica de parte proximal da LAMS disparada em estômago remanescente.

  • Dicas: não distar mais de 1 cm da parede do estômago remanescente com o excluso; molhar todo o catéter do LAMS antes de introduzir no aparelho; evitar puncionar em cima da linha de grampo afim de evitar permanência de fístula e área de fibrose.

Passo 3: Dilatação do LAMS e procedimento

Nesta etapa há duas possibilidades:

  • Em duas etapas: aguardar maturar a fístula em 1 a 2 semanas e seguir com procedimento após esse período com a prótese metálica já expandida ou dilatação do LAMS logo após disparo;
  • Etapa única: realizar dilatação logo após passagem da LAMS. Há opção de fixação da prótese com over-ther-scope-clip (Padlock e Ovesco) ou endossutura (Apollo) para minimizar a migração;

Dilatação da LAMS com balão hidrostático até 20 mm de diâmetro, com confirmação da dilatação por visão endoscópica e fluoroscópica (Figura 7 e 8);

Figura 7: Fluoroscopia de dilatação de LAMS com balão hidrostático.
Figura 8: Visão endoscópica da LAMS dilatada, podendo-se visualizar o estômago excluso em parte distal da prótese.

  • Prosseguir com o tratamento endoscópico proposto: CPRE principalmente
  • Dicas: em uso de duodenoscópios ou ecoendoscópios, entrar com aparelho em paralelo com a prótese; a prótese é móvel, então a fluoroscopia ajuda no posicionamento e minimiza a fricção com a prótese, evitando migração (Figura 9).
Figura 9: Passagem do aparelho com fluoroscopia e visão endoscópica combinada, mantendo-se o eixo do aparelho paralelo à LAMS.

Passo 4: Fechamento da fístula

  • Devido ao risco de complicações pós-procedimentos endoscópicos, como sangramento e perfuração pós-CPRE, mantém-se a LAMS por 1 a 2 semanas, possibilitando a reabordagem endoscópica. Alguns autores, preconizam a retirada imediata seguida por colocação de prótese plástica;
  • Após esse período, revisa-se por endoscopia digestiva alta (EDA), seguida de retirada do LAMS com pinça de corpo estranho ou com alça endoscópica, tracionando-se preferencialmente pela falange proximal da prótese;
  • Alguns autores preconizam troca por prótese plástica duplo pigtail de tamanho curto e outros por apenas retirar e deixar a fístula ocluir por cicatrização em segunda intenção;
  • O controle de fechamento da fístula com o estômago excluso pode ser feita com EDA, radiografia contrastada (EED) ou tomografia computadorizada com contraste não-baritado por via oral após 6 a 8 semanas da retirada da LAMS.

Em suma, o GATE mostra-se como um procedimento seguro e eficaz com taxa de sucesso técnico e clínico comparável a abordagem transgástrica intraoperatória, sem necessidade de combinar duas especialidades médicas, com menor taxa de efeitos adversos, menor tempo de procedimento e internação. A realização do procedimento após GATE em tempo único, com dilatação sem fixação do LAMS está cada vez mais se mostrando seguro e eficaz com o avanço das técnicas endoscópicas.

Referências

  1. Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM). SBCBM, 2023. Disponível em: https://www.sbcbm.org.br/obesidade-atinge-mais-de-67-milhoes-de-pessoas-no-brasil-em-2022/. Acesso em: 16, novembro, 2023.
  2. Deliwala SS, Mohan BP, Yarra P, Khan SR, Chandan S, Ramai D, et al. Efficacy & safety of EUS-directed transgastric endoscopic retrograde cholangiopancreatography (EDGE) in Roux-en-Y gastric bypass anatomy: a systematic review & meta-analysis. Surg Endosc. 2023 Jun;37(6):4144–58.
  3. Wang TJ, Thompson CC, Ryou M. Gastric access temporary for endoscopy (GATE): a proposed algorithm for EUS-directed transgastric ERCP in gastric bypass patients. Surg Endosc. 2019 Jun;33(6):2024–33.

Como citar este artigo

Kum AST, Nunes CM, Rocha SPR. Acesso Transgástrico Endoscópico GATE (EDGE) em Bypass Gástrico: o passo a passo. Endoscopia Terapeutica 2023, Vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/acesso-transgastrico-endoscopico-gate-edge-em-bypass-gastrico-com-y-de-roux-o-passo-a-passo/




Nova Classificação de Eventos Adversos em Endoscopia Digestiva: AGREE

Com a expansão das técnicas endoscópicas diagnosticas e terapêuticas faz-se necessário métodos uniformes e mundialmente reconhecidos para avaliação dos eventos adversos relacionados aos procedimentos endoscópicos. Essa padronização permite avaliação da qualidade de serviço, de procedimento, bem como, para estudos científicos (coorte, ensaios clínicos randomizados e metanálises).

Na literatura atual há uma escassez de ferramentas de definição para tais eventos. Para intervenções cirúrgicas existe a classificação de Clavien-Dindo (CD)1, que, por vezes, sua utilização foi extrapolada para procedimentos endoscópicos. A classificação de CD é inadequada quando aplicada para procedimentos endoscópicos, pois existem diferenças quanto a origem dos pacientes: a maioria são ambulatoriais nos procedimentos endoscópicos comparado ao perfil internado para as intervenções cirúrgicas.

Com o objetivo de padronizar o registro de eventos adversos em endoscopia digestiva, foi proposta a nova classificação chamada AGREE (Classification for Adverse events in GastRointEstinal Endoscopy)2.

Esta classificação estratifica os pacientes desde os que não apresentam eventos adversos em 30 dias até os que evoluem para óbito por complicações relacionadas ao procedimento endoscópico (vide tabela 1). A definição de evento adverso nesta nova classificação foi similar à classificação de CD, que define evento adverso como um desfecho negativo para o paciente que impede a conclusão de um procedimento planejado ou causa qualquer desvio do curso pós-procedimento padrão, independente da correlação direta. Por exemplo, paciente vítima de acidente de bicicleta que foi submetido a colonoscopia 3 dias antes sob sedação consciente pode parecer não relacionado ao procedimento, mas ainda deve ser registrado como evento adverso. Vale ressaltar que, assim como é realizado na classificação de CD, caso o paciente apresente múltiplos eventos adversos relacionados, apenas o mais grave deve ser considerado.

Graduação Definição
Ausência de Evento Adverso Contato telefônico com profissional, ambulatório ou serviço de endoscopia ou observação estendida após procedimento < 3h, sem qualquer necessidade de intervenção.
Grau I

Evento adverso sem necessidade de intervenção endoscópica, radiológica ou cirúrgica.
– Comparecimento a emergência,
– Admissão hospitalar <24h,
– Uso de drogas sintomáticas ou eletrólitos,
– Testes diagnósticos laboratoriais ou radiológicos.

Grau II Evento adverso com necessidade de uso de outras medicações (antibióticos, antitrombóticos), necessidade de transfusão sanguínea ou admissão hospitalar por mais de 24h.
Grau III III a – necessidade de intervenção endoscópica ou radiológica
III b – necessidade de intervenção cirúrgica
Grau IV Necessidade de cuidados intensivos
IV a- disfunção orgânica simples (incluindo dialise)
IV b – disfunção múltipla de órgãos
Grau V Óbito
Tabela 1: Classificação de AGREE

Para a validação desta nova ferramenta de registro de eventos adversos endoscópicos, foram cumpridas três etapas. Na primeira etapa, foram analisadas as diferentes percepções dos eventos adversos sob a ótica de endoscopistas experientes, enfermeiras e pacientes, sendo selecionados casos fictícios e analisados para graduação dos eventos na nova classificação AGREE. Como esperado, houve algumas subjetividades principalmente na análise do nexo causal do evento adverso e o procedimento endoscópico. Além disso, endoscopistas experientes tinham uma percepção menos grave sobre a necessidade de uma nova intervenção para tratamento de um evento adverso do que enfermeiras e pacientes. Na segunda etapa da validação, foram coletados dados retrospectivos de eventos adversos registrados num serviço acadêmico de Amsterdam no período de janeiro de 2016 a novembro de 2020. Foram aplicadas a classificação AGREE em todos os 436 eventos adversos. Na terceira e última etapa de validação da classificação AGREE, foram aplicados questionários para especialistas de 30 países e 5 continentes diferentes. Um dado importante é que cerca de metade dos endoscopistas experientes dos diferentes centros do mundo não utilizavam nenhum banco de dados para reportar os seus eventos adversos.

É importante ressaltar algumas limitações dessa nova classificação as quais podemos citar a ausência de definição de leve, moderada ou grave como é padronizada na classificação da ASGE3, além de não haver uma graduação de gravidade relacionada a longa permanência hospitalar na nova classificação AGREE. Comparando as duas classificações, os efeitos adversos severos correspondem graus II a IVb da classificação de AGREE. Outra ressalva deve-se a variedade de políticas aplicadas no manejo dos eventos adversos nos diversos serviços dos diversos países, dando abertura para subjetividade na avaliação de desvio do tratamento pós-procedimento padrão.

Entretanto, esta nova classificação AGREE foi considerada simples, reprodutível, aplicável e lógica pela maioria dos endoscopistas especialistas, tornando-se uma importante ferramenta no registro padronizado dos eventos adversos, gerando estudos através do banco de dados e contribuindo com a melhoria das práticas endoscópicas em todo mundo.

Em suma, o AGREE permite uma padronização exequível em todo o mundo para avaliar qualidade de serviço de endoscopia, criticidade de um novo procedimento e fomento de estudos científicos observacionais, ensaios clínicos e metanálises.

Referências

  1. Dindo D, Demartines N, Clavien PA. Classification of surgical complications: a new proposal with evaluation in a cohort of 6336 patients and results of a survey. Ann Surg. 2004 Aug;240(2):205–13.
  2. Nass KJ, Zwager LW, van der Vlugt M, Dekker E, Bossuyt PMM, Ravindran S, et al. Novel classification for adverse events in GI endoscopy: the AGREE classification. Gastrointest Endosc. 2022 Jun;95(6):1078-1085.e8.
  3. Ben-Menachem T, Decker GA, Early DS, Evans J, Fanelli RD, Fisher DA, et al. Adverse events of upper GI endoscopy. Gastrointest Endosc. 2012 Oct;76(4):707–18.

Como citar este artigo

Kum AST Nova Classificação de Eventos Adversos em Endoscopia Digestiva: AGREE Endoscopia Terapeutica 2023, vol 2. Disponível em: endoscopiaterapeutica.net/pt/nova-classificacao-de-eventos-adversos-em-endoscopia-digestiva-agree/




Litotripsia Intraductal na Colangiopancreatografia Retrógrada Endoscópica

Com o advento da colangioscopia digital de operador único em 2015 (SpyGlass™), superando a dificuldade técnica dos antigos aparelhos “mother-baby” que dependiam de dois operadores, diversas foram as utilidades desta nova tecnologia na colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE): avaliação intraductal de estenoses indeterminadas das vias biliares, direcionar a drenagem de segmentos acometidos por estenose, litotripsia intraductal de coledocolitíase e hepatolitíase.

Os cálculos complexos possuem preditores para falha de remoção das vias biliares pelo método convencional, sendo: 

  • cálculos maiores que 1,5 cm;
  • cálculos múltiplos (mais de 10); 
  • cálculos com formatos em barril e longo;
  • cálculos intrahepáticos; 
  • anormalidades de colédoco distal (oblíquos, estreitos, angulados);
  • papila duodenal peridiverticular;
  • desproporção de tamanho do cálculo vs colédoco; 
  • associados a estenoses benignas e malignas;
  • alteração pós-cirúrgica do trato gastrointestinal alto

Seguindo os guidelines europeu e americano da ESGE e ASGE, após a falha de remoção convencional na CPRE, opta-se por dilatação balonada de grandes proporções (DBGP) da papila, que é definida de 12 a 20 mm, limitando-se até o diâmetro do colédoco distal, precedida de papilotomia prévia ou tática (saiba mais nesse post). Havendo a falha de extração após DBGP, os guidelines sugerem a litotripsia, que podem ser:

  • mecânica através do basket reforçado “through the scope” (convencional) ou “out the scope” (também conhecido como litotriptor de emergência);
  • intraductal com pulso eletro-hidráulico ou a laser através do uso de colangioscópio.

Caso Clínico

No vídeo a seguir, temos o caso de uma mulher jovem com coledocolitíase de 10 mm, com duas tentativas prévias de CPRE sem sucesso na remoção de cálculo devido a desproporção cálculo vs colédoco distal. Mesmo com papilotomia ampla prévia e dilatação balonada CRE até 18 mm, sem perda de cintura radiológica por fibrose de esfíncter, houve falha na apreensão do cálculo com basket trapezoid devido a impactação do cálculo em via biliar.

Neste caso, a abordagem cirúrgica seria difícil especificamente devido ao colédoco pouco dilatado, sendo optado por intervenção com colangioscopia (Spyglass) + litotripsia endoscópica a laser intraductal. Como resultado, a paciente evoluiu com alta no primeiro pós-operatório com resolução da retirada do cálculo, assintomática, podendo ser submetida a colecistectomia em seguida.

Discussão

Um estudo multicêntrico randomizado publicado na Endoscopy de Angsuwatcharakon et al. em 2019 comparou esses dois métodos, que permitia o crossover entre a litotripsia mecânica com basket de 30 mm (LithoCrush V, Olympus) e a litotripsia a laser (SpyGlass DS, Boston Scientific, com Dornier Medilas H Solvo, Wessling), chegando aos seguintes resultados:

  • 476 pacientes pós-CPRE, com 32 falhas pós-DBGP, sendo randomizados 16 em cada grupo;
  • Média do tamanho dos cálculos: 19.5 mm (5.63) no grupo laser vs 17.6 mm (3.37) no grupo litotripsia mecânica;
  • Remoção completa na primeira tentativa foi maior na litotripsia laser vs mecânica (100% vs 63%, p < 0,01);
  • Tempo de procedimento total foi menor no laser vs mecânica (83 vs. 66 min; P = 0.23);
  • Tempo de remoção foi menor no laser vs mecânica (53 vs. 39 min; P = 0.26);
  • Tempo de fluoroscopia e radiação menor no laser vs mecânica (21 vs. 11 minutes; P < 0.01 e (40 745 vs. 20989 mGycm2; P = 0.04);
  • Efeitos adversos e tempo de internação foram semelhantes entre os grupos.

As limitações do estudo estão na amostra relativamente baixa, que tange às indicações restritas da litotripsia após falha da CPRE e DBGP, bem como na avaliação de apenas a metodologia a laser, sem comparar a eletro-hidráulica, apesar da equivalência de efetividade dos dois métodos.

Embora os limites impostos pelo alto custo do dispositivo, com necessidade de expertise do uso de colangioscopia, e baixa disponibilidade desta tecnologia nos centros de endoscopia, Deprez et al. avaliou maior economia e menor custo no grupo da litotripsia intraductal devido a maior taxa de sucesso e menor número de CPREs no tratamento da coledocolitíase complexa. Salvo limitações do custo de saúde, país e moeda diferente do estudo, as justificativas de menor custo-efetividade são válidos.

Ademais, com o desenvolvimento de outras marcas de colangioscópios e a maior abrangência desta tecnologia, espera-se que esse método diagnóstico e terapêutico se popularize e se torne um novo arsenal ao endoscopista.

Referências

  1. Angsuwatcharakon P, Kulpatcharapong S, Ridtitid W, et al. Digital cholangioscopy-guided laser versus mechanical lithotripsy for large bile duct stone removal after failed papillary large-balloon dilation: a randomized study. Endoscopy. 2019 Nov;51(11):1066-1073. doi: 10.1055/a-0848-8373. Epub 2019 Feb 20. PMID: 30786315.
  2. ASGE Standards of Practice Committee; Buxbaum JL, Abbas Fehmi SM, Sultan S, et al. ASGE guideline on the role of endoscopy in the evaluation and management of choledocholithiasis. Gastrointest Endosc. 2019 Jun;89(6):1075-1105.e15. doi: 10.1016/j.gie.2018.10.001. Epub 2019 Apr 9. PMID: 30979521; PMCID: PMC8594622.
  3. Manes G, Paspatis G, Aabakken L, et al. Endoscopic management of common bile duct stones: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) guideline. Endoscopy. 2019 May;51(5):472-491. doi: 10.1055/a-0862-0346. Epub 2019 Apr 3. PMID: 30943551.
  4. Deprez PH, Garces Duran R, Moreels T, et al. The economic impact of using single-operator cholangioscopy for the treatment of difficult bile duct stones and diagnosis of indeterminate bile duct strictures. Endoscopy 2018;50:109-18.

Como citar este artigo

Kum AST, Ide E, Nunes BCM. Litotripsia Intraductal na Colangiopancreatografia Retrógrada Endoscópica. Disponível em Endoscopia Terapeutica 2023, vol. 1. https://endoscopiaterapeutica.net/pt/litotripsia-intraductal-na-colangiopancreatografia-retrograda-endoscopica/




Endoscopia no Futuro: Inteligência Artificial até que ponto?

O desenvolvimento de carros e transportes inteligentes sem condutor, assistentes virtuais da Alexa e Google Nest gerenciando a rotina domiciliar são uma realidade que permeia a atualidade e respalda um estudo de Oxford o qual estima que 47% das profissões atuais estão em risco de automação.

Na era pós-pandemia do Covid, vimos a aceleração digital alcançar a educação com vídeo-aulas, reuniões virtuais e congressos por conferência remota. Neste sentido, uma das pautas atuais é a inteligência artificial (IA) como tecnologia na Medicina nesta última década. Ela já atua em vários campos da radiologia, oftalmologia, dermatologia e neurologia, desde diagnóstico de imagens em mamografias, lesões malignas cutâneas e na retinopatia diabética. 

Para compreender a IA, é essencial saber as terminologias básicas:

  • Inteligência Artificial (IA): ciência multidisciplinar que envolve aprendizado automatizado;
  • Machine Learning (ML): meio da IA de aprendizado automatizado por computação através de diversos métodos algorítimicos;
  • Deep Learning (DL): um dos meios de ML mais atual por envolver diversas camadas de correlações algorítimicas, podendo ter pesos diferentes em cada conexão, simulando a arquitetura de rede neural.

Na gastroenterologia, a IA entremeia a Endoscopia em dois meios que podem ser vistos no Vídeo:

  • Computer-Aided Detection (CADe): envolve o uso de ML e DL para detecção e localização de lesão. Por exemplo, a indicação de pólipos na colonoscopia, como na Figura 1, denotado por sinal azul claro em forma de retrato envolvendo o pólipo

  • Computer-Aided Diagnosis (CADx): envolve o uso de ML e DL para auxiliar no diagnóstico de lesões. É possível que a IA consiga diferenciar lesões neoplásicas de hiperplásicas na colonoscopia, como visto na Figura 2, com um círculo amarelo envolvendo a na visão endoscópica e demarcação da lesão no campo inferior direito.

Atualmente, o uso de IA encontra-se em diversos estudos e em fases distintas, desde validação, eficácia até a vigilância pós-comercialização com aprovação do FDA (agência reguladora de saúde e serviços nos EUA). Seu uso na endoscopia digestiva alta, cápsula endoscópica e colonoscopia podem ser separados por segmentos:

Esôfago

  • Esôfago de Barrett (EB): Groof et al. obteve uma sensibilidade e especificidade maiores com IA na detecção de EB, respectivamente de 90% e 88%, quando comparado aos especialistas sem CADe de 88% e 72%, respectivamente. Ebigbo et al. desenvolveu um CADx capaz de diagnosticar cancer em EB, bem como diferenciar invasão de submucosa, de T1a de T1b, com 77% de sensibilidade e 64% de especificidade.
  • Carcinoma Espinocelular (CEC): O CADe de Guo et al. conseguiu uma sensibilidade de 98% e especificidade de 95% com o auxílio de cromoscopia NBI.

Estômago

  • Helicobacter pylori: Nakashima e colegas desenvolveram um CADx com sensibilidade à luz branca de 66.7%, à cromoscopia BLI de 96.7% e à cromoscopia com LCI de 96.7%.
  • Câncer precoce: Kanesaka et al. conseguiram delinear por CADx as lesões suspeitas com sensibilidade e especificidade de 65.5% e 80.8%, respectivamente. Zhu e colegas desenvolveram um modelo capaz de diferenciar a profundidade da lesão, de SM1 versus SM2, com sensibilidade de 76.5% e especificidade de 95.6%, auxiliando na avaliação de ressecção endoscópica.

Intestino Delgado

  • Sangramento de intestino delgado: o diagnóstico por cápsula endoscópica de Jia e colegas chegou a 99% de sensibilidade e especificidade. Aoki et al. desenvolveu um CADe para detecção de erosões  e ulcerações com acurácia de 90.8%.

Intestino Grosso

  • Taxa de detecção de pólipo (ADR): Um estudo randomizado de Wang et al. reportou um aumento de ADR no grupo com CADe comparado ao convencional (34% versus 28%).
  • Cancer colorretal: Ito e colegas aplicaram um CADx capaz de diagnosticar a profundidade de invasão de cancer T1b, chegando a acurácia de 81,2%.
  • Doença inflamatória intestinal: Campo ainda com estudos prospectivos em andamento. Maeda et al. desenvolveram um CADx predizendo inflamação histológica em retocolite ulcerativa com acurácia de 91%.

A tecnologia avança exponencialmente e o estudo de Oxford mostra que o profissional do futuro deve estar aberto a inovar e aprender. Isso não difere na Medicina, tanto que em universidades renomadas, como a Harvard Medical School nos EUA, já possuem grades curriculares que antecipam a participação dos alunos no hands-on e contato com paciente e especialidades, bem como a desenvolver soft skills de pensamento crítico, coordenação e tomada de decisão, habilidades ainda além do escopo da IA.

De tantas aplicabilidades que estão em andamento e outras a virem, a IA deverá se apresentar multimodal no campo da endoscopia. Ela envolverá não apenas a detecção e diagnóstico, mas também na decisão clínica através de previsão histológica e de risco metastático em lesões neoplásicas, auxiliando nas condutas e decisões a curto e longo prazo, podendo delinear o prazo ideal de seguimento.

Referências Bibliográficas

  1. Boyle, Kathleen. “TECHNOLOGY AT WORK v6. 0: The Coming of the Post-Production Society.” (2021).
  2. Brown, Jeremy R. Glissen, and Tyler M. Berzin. “Adoption of New Technologies: Artificial Intelligence.” Gastrointestinal Endoscopy Clinics 31.4 (2021): 743-758.
  3. Okagawa, Yutaka, et al. “Artificial intelligence in endoscopy.” Digestive Diseases and Sciences 67.5 (2022): 1553-1572.

Como citar este artigo

Kum, AST e Miyajima, NT. Endoscopia no Futuro: Inteligência Artificial até que ponto? Endoscopia Terapeutica 2023, vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/endoscopia-no-futuro-inteligencia-artificial-ate-que-ponto/