Drenagem ecoguiada da vesícula biliar na colecistite aguda: o que diz a literatura atual?
Introdução
A drenagem da vesícula biliar guiada por ecoendoscopia (EUS-GBD) tem emergido como uma alternativa minimamente invasiva para o manejo de pacientes com colecistite aguda com alto risco cirúrgico para a abordagem cirúrgica por colecistectomia, podendo também ser utilizada para internalização de drenagem percutânea em pacientes que não serão candidatos à abordagem cirúrgica1.
As principais técnicas de drenagem incluem o uso de stents metálicos autoexpansíveis, com destaque para a utilização do stent metálico com aposição de lúmens (LAMS) – clique aqui para saber mais sobre LAMS. Em casos que envolvam dificuldade de posicionamento, vesícula fibrótica ou presença de drenos percutâneos que dificultem a visualização da vesícula, o uso de fio guia pode trazer maior segurança ao procedimento.
A escolha da janela de drenagem é indicada com base na anatomia do paciente e na proximidade das estruturas, sendo a distância de 10 mm entre a parede do TGI e o lúmen da vesícula considerada segura. O acesso pode ser realizado pela janela transgástrica ou transduodenal, sendo que a primeira tem por vantagem a facilidade de acesso cirúrgico ao sítio de punção em caso de colecistectomia posterior, enquanto que o posicionamento no bulbo duodenal pode reduzir a ocorrência de migração da prótese e impactação alimentar. O posicionamento de próteses duplo pig tail no interior da LAMS pode mitigar a ocorrência de sangramento e impactação alimentar2.
Algumas contraindicações ao procedimento incluem a presença de coagulopatia significativa, perfuração da vesícula biliar, peritonite biliar e ascite volumosa1,2,3.
Imagem de drenagem ecoguiada da vesícula biliar em etapas, adaptada de Irani et al., AGA Clinical Practice Update on Role of EUS-Guided Gallbladder Drainage in Acute Cholecystitis: Commentary. Clin Gastroenterol Hepatol. 2023 2
Resultados da literatura atual
Em comparação à drenagem percutânea, a EUS-GBD demonstra resultados que indicam vantagens, como menor risco de infecção e complicações pós-procedimento, podendo promover melhores resultados de longo prazo. Estudo randomizado multicêntrico com 80 pacientes, comparando as duas técnicas, demonstrou redução significativa de eventos adversos em um ano, reintervenções e internações hospitalares, com resultados similares em sucesso técnico, clínico e mortalidade4. Da mesma forma, uma metanálise abarcando 1155 pacientes em 11 estudos demonstrou menores eventos adversos, reintervenções e recorrência da colecistite na EUS-GBD com LAMS com eletrocautério acoplado, quando comparada à drenagem percutânea, porém, quando incluídos estudos com todos os modelos de próteses para EUS-GBD, não houve diferença estatística entre as abordagens5.
No que tange aos eventos adversos relacionados ao procedimento, os principais relatados envolvem obstrução ou deslocamento da prótese, peritonite, pneumoperitônio, abscesso e recorrência da colecistite. Em um estudo que realizou o seguimento dos pacientes ao longo de 3 anos a ocorrência de eventos adversos foi de 18%, 20% e 26% em cada ano, com recorrência de colangite em 4% dos casos6. Foi relatado ainda que os eventos sintomáticos relacionados à LAMS ocorriam principalmente no posicionamento gástrico em comparação ao duodenal6.
Podem também ocorrer eventos adversos intra-procedimento que envolvem sangramento, mal posicionamento ou deslocamento da prótese, perfuração e complicações cardiovasculares. Estes algumas vezes podem ser manejados por endoscopia com uso de métodos hemostáticos, reposicionamento ou colocação de novas próteses, mas por vezes podem requerer abordagem cirúrgica de urgência7.
A realização de colecistoscopia pode ser indicada após a resolução da colecistite aguda visando a remoção completa dos cálculos da vesícula biliar, nesta ocasião pode-se substituir a LAMS por prótese do modelo duplo pig tail. Outra abordagem, principalmente utilizada em pacientes de alto risco, é manter a LAMS, com realização de nova abordagem apenas caso necesário2.
Considerações finais
A EUS-GBD vem se tornando uma opção estabelecida no manejo de pacientes com colecistite aguda e alto risco cirúrgico, apresentando resultados favoráveis reportados na literatura. A adequada seleção de pacientes envolve abordagem multidisciplinar entre as equipes de endoscopia, radiologia intervencionista e cirurgia, devendo-se considerar fatores como comorbidades, potencial para abordagem cirúrgica posterior, características anatômicas e disponibilidade de profissionais e material.
Há tendência a escolha pela EUS-GBD em pacientes que não sejam bons candidatos à abordagens de repetição, presença de fatores de obstrução do ducto cístico e pacientes com múltiplos cálculos que possam se beneficiar da realização de colecistoscopia2
Tabela comparativa entre as técnicas de drenagem da vesícula biliar, adaptada de Irani et al., AGA Clinical Practice Update on Role of EUS-Guided Gallbladder Drainage in Acute Cholecystitis: Commentary. Clin Gastroenterol Hepatol. 2023 2
Irani SS, Sharzehi K, Siddiqui UD. AGA Clinical Practice Update on Role of EUS-Guided Gallbladder Drainage in Acute Cholecystitis: Commentary. Clin Gastroenterol Hepatol. 2023 May;21(5):1141-1147.
Pawa S, Marya NB, Thiruvengadam NR, et al. American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on the role of therapeutic EUS in the management of biliary tract disorders: summary and recommendations. Gastrointest Endosc. 2024 Jul 29:S0016-5107(24)00188-3.
Teoh AYB, Kitano M, Itoi T , et al. Endosonography-guided gallbladder drainage versus percutaneous cholecystostomy in very high-risk surgical patients with acute cholecystitis: an international randomised multicentre controlled superiority trial (DRAC 1). Gut. 2020 Jun;69(6):1085-1091.
Hemerly MC, de Moura DTH, do Monte Junior ES, et al. Endoscopic ultrasound (EUS)-guided cholecystostomy versus percutaneous cholecystostomy (PTC) in the management of acute cholecystitis in patients unfit for surgery: a systematic review and meta-analysis. Surg Endosc. 2023 Apr;37(4):2421-2438.
Martinez-Moreno B, López-Roldán G, Martínez-Sempere J, et al. Long-term results after EUS gallbladder drainage in high-surgical-risk patients with acute cholecystitis: A 3-year follow-up registry. Endosc Int Open. 2023 Nov 10;11(11):E1063-E1068.
Binda C, Anderloni A, Forti E, et al. EUS-Guided Gallbladder Drainage Using a Lumen-Apposing Metal Stent for Acute Cholecystitis: Results of a Nationwide Study with Long-Term Follow-Up. Diagnostics (Basel). 2024 Feb 13;14(4):413.
Como citar este artigo
Logiudice FP. Drenagem ecoguiada da vesícula biliar na colecistite aguda: o que diz a literatura atual?. endoscopia Terapeutica 2024, vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/rascunho-automatico/
Sistema de Última Geração da Olympus no Brasil: Aprenda Quais são as Recentes Tecnologias do EVIS X1
A Olympus lançou o novo sistema Evis X1 em 2020 na Ásia e Europa, chegando ao Brasil em 2024. Trata-se de uma tecnologia com melhoras em relação a processadora 190, a mais moderna que temos disponível até o momento no nosso país.
A processadora com o sistema de vídeo CV-1500 oferece novas tecnologias de imagens, estando combinado num mesmo box com a fonte que contém cinco luzes LED. Essa processadora é compatível com endoscópios das gerações anteriores da série 190 e com as futuras gerações de endoscópios.
Os novos recursos do sistema de endoscopia EVIS X1
1. TXI (TeXture and color enhancement Imaging)
O TXI é uma tecnologia de imagem realçada. Basicamente, o que o sistema faz é processar a imagem com luz branca após a captura, melhorando sua nitidez. Primeiramente, a imagem capturada é dividida em dois componentes (textura e cor); depois, cada componente é realçado e então a processadora as une de novo e entrega uma imagem com mais qualidade. O resultado é um aumento da claridade nas partes escuras, assim como uma maior nitidez das cores.
Existem dois modos: TX 1: realça tanto a cor quanto a estrutura. TX 2: realça basicamente só a textura.
Foto 1: luz branca. Fonte: Osaka International Cancer Institute.Foto 2: TXI modo 1. Fonte: Osaka International Cancer Institute.Foto 3: TXI modo 2. Fonte: Osaka International Cancer Institute.
2. RDI (Red Dichromatic Imaging)
Essa tecnologia aplica os mesmos princípios do NBI, ou seja, são colocados filtros de luz. A diferença é que o RDI usa filtros de comprimentos de onda mais longos objetivando melhorar a visualização dos vasos mais profundos. As áreas com maior concentração de hemácias ficam com a cor laranja ou amarelo escuro, enquanto as áreas com menor densidade, ficam amarelas claras. Isso ajuda na hora de identificar o foco de sangramento ativo durante as ressecções endoscópicas (ESD ou mucosectomia), diminuindo o tempo para atingir uma coagulação adequada.
Foto 4: sangramento ativo impossibilitando a identificação do vaso causador. Fonte: Osaka International Cancer Institute.Foto 5: Após o RDI, podemos observar um tom de amarelo mais escuro no círculo vermelho, compatível com o local do sangramento. Fonte: Osaka International Cancer Institute.
3. EDOF (Extended Depth of Field)
A incorporação do EDOF, ou campo de visão estendida, proporcionou uma melhora significativa na qualidade de imagem. Com o sistema anterior, o Near Focus produzia uma imagem ampliada, porém para atingirmos uma boa resolução, tínhamos que nos aproximar muito do foco de interesse e a imagem ao redor ficava desfocada. Para melhorar nesse aspecto, dois refletores (espelhos) foram colocados na ponta do aparelho, permitindo ver uma área de interesse de perto, porém mantendo a nitidez da área ao redor.
Foto 6: Near Focus (Aparelho H190). Fonte: Osaka International Cancer Institute.Foto 7: Near Focus com EDOF (Aparelho EZ1500). Fonte: Osaka International Cancer Institute.
4. BAI-MAC (Brightness Adjustment Imaging with Maintenance of Contrast)
Por fim, essa tecnologia é uma nova técnica de processamento de imagens para corrigir os níveis de brilho em áreas escuras da imagem endoscópica, mantendo o brilho das áreas mais claras e aumentando a visualização à distância.
Notas: A autora declara que não há conflito de interesses nesse post.
Como citar este artigo
Nobre R. O sistema de última geração da olympus chegou no brasil! Aprenda quais são as recentes tecnologias do Evis x1. Endoscopia Terapeutica, 2024 vol II. https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/Sistema-de-ultima-Geracao-da-Olympus-no-Brasil-Aprenda-Quais-sao-as-Recentes-Tecnologias-do-EVIS-X1/
Artigo comentado: Over-the-scope clip as first-line treatment of peptic ulcer bleeding: a multicenter randomized controlled trial (TOP Study)
Publicado por Soriani et al. na Endoscopy em maio de 2024 (1).
Introdução
As hemorragias digestivas altas (HDA) são frequentes na prática clínica e sua principal etiologia envolve as úlceras pépticas. Recentemente, os “over-the-scope clips” (OTSC) vêm sendo empregados para a hemostasia em úlceras pépticas, inclusive como primeira linha. Estudos envolvendo diferentes etiologias demonstraram melhores resultados para o OTSC quando comparado ao tratamento padrão com clipes convencionais (“through-the-scope clips” – TTSC) (2-4). Visando compreender melhor a eficácia do OTSC, este estudo inclui apenas HDA por úlcera péptica, randomizando o tratamento para OTSC ou TTSC.
Métodos
O estudo foi conduzido em cinco centros europeus. Pacientes com HDA submetidos a EDA em até 24h da admissão com classificação de Forrest Ia, Ib e IIa (inclusive após remoção de coágulo) foram randomizados para OTSC ou TTSC. Nos casos de Forrest I submetidos a terapia com TTSC, associou-se rotineiramente o tratamento com solução de adrenalina conforme recomendação do Guideline da ESGE (5). Neste mesmo grupo, as úlceras Forrest IIa poderiam ter terapia associada com adrenalina ou não. Não houve limite na quantidade de clipes empregada em ambos os grupos.
O desfecho primário foi ressangramento em 30 dias; os secundários correspondem a sucesso clínico, necessidade de nova EDA, necessidade de transfusão de concentrado de hemácias, tempo de internação, mortalidade em 30 dias e complicações associadas a terapia endoscópica.
Resultados
Entre 2018 e 2022, foram incluídos 112 pacientes (OTSC = 61 x TTSC = 51). Todos os pacientes foram classificados como Forrest I ou IIa (15 casos após remoção de coágulo) e receberam altas doses de IBP peri-procedimento (dose não especificada). Os grupos foram similares considerando as características dos pacientes (uso de AINE, anticoagulantes, antiplaquetários, DAOC, alterações hemodinâmicas, RNI, Hb, etc) e da úlcera (tamanho, topografia, Forrest, etc).
Apenas um paciente no grupo do OTSC recebeu um segundo clipe. No grupo TTSC, a média foi de 2 clipes (variação de 1 a 8) e 28/51 receberam injeção de solução de adrenalina.
Em relação ao desfecho primário, não houve diferença entre os grupos: OTSC 1/61 paciente (1,6%) x TTSC 2/51 (3,9%) apresentaram ressangramento dentro de 30 dias (RR = 0,42 (95%CI 0,04 – 4,53, P = 0,47). Todos os casos foram tratados adequadamente em uma segunda endoscopia: o sangramento no grupo do OTSC foi resolvido com clipes convencionais e os dois casos do braço TTSC foram resolvidos, um com OTSC, e outro com método térmico.
No tocante aos desfechos secundários, a hemostasia inicial foi maior no grupo do OTSC: 98.4% (60/61) x 78.4% (40/51) (RR = 1,25, 95%CI 1,08 – 1,45, P = 0,003). O caso de insucesso inicial do OTSC foi tratado com TTSC; dos 11 casos de insucesso inicial do TTSC, 10 foram resolvidos com OTSC e um precisou associar ainda, método térmico e pó hemostático. Vale ressaltar que dos 11 casos de falha do TTSC, 7 eram úlceras fibróticas e 3 localizadas na parede posterior do bulbo.
Não houve diferença em termos de transfusão sanguínea (p = 0,66), tempo de internação (p = 0,92) e mortalidade em 30 dias (p = 0,18).
Não houve eventos adversos relacionados à terapia endoscópica.
Discussão
Com o desenvolvimento de novas tecnologias, é interessante compreender seu papel e vantagens em relação a outros métodos. Devemos considerar que os métodos que temos atualmente para hemostasia das úlceras pépticas, sendo os principais térmicos e TTSC associados ou não à injeção de adrenalina, são altamente eficazes na grande maioria dos casos. De antemão, reconhecemos limitações principalmente dos TTSC para úlceras fibróticas, de grandes dimensões, e em posições desfavoráveis, como parede posterior do bulbo e pequena curvatura gástrica. Neste contexto, e ainda em casos de falha de um método prévio, ou seja, como terapia de resgate, percebe-se o maior benefício potencial dos OTSC.
O trabalho exposto mostra justamente este resultado, uma vez que o posicionamento/estabilização do cap e maior abrangência tecidual pelos OTSC favorecem este método em casos previamente reconhecidos como de difícil abordagem com os TTSC. A diferença em termos de resultados apresentou-se basicamente no crossover com uso de OTSC em casos de falha de TTSC (11 casos, sendo 7 úlceras fibróticas e 3 na parede posterior do bulbo). Nos demais casos, permanece a impressão de uma alta eficácia dos métodos convencionais (como TTSC) que justifica seu uso, mesmo com os OTSC disponíveis. Por outro lado, também é adequado optar pelos OTSC nestas ocasiões, uma vez que esta recurso apresenta eficácia e segurança similares.
Em outras palavras, em situações “comuns”, podemos optar pelos TTSC ou pelos OTSC, porém em situações em que os TTSC apresentam pior desempenho (ex.: úlceras fibróticas, localização em parede posterior de bulbo e pequena curvatura de corpo gástrico), os OTSC devem ser empregados como primeira escolha.
Esta colaboração foi muito importante em termos de conduta baseada em evidências, pois foi o primeiro trabalho que randomizou OTSC e TTSC no contexto exclusivo de úlceras pépticas. Se por um lado, poderia haver a impressão de que existe uma superioridade em quase todas as situações, do outro, poderia existir o receio de dificuldade técnica e eventos adversos associados. Como habitual, nenhum dos extremos foi demonstrado e cabe o reconhecimento dos benefícios e limitações de cada método para o melhor emprego do arsenal terapêutico disponível. Novos estudos, a experiência prática e o aprimoramento das tecnologias certamente poderão elaborar ainda mais as discussões, bem como aumentar a eficácia das terapias hemostáticas endoscópicas.
Soriani P, Biancheri P, Bonura GF, et al. Over-the-scope clip as first-line treatment of peptic ulcer bleeding: a multicenter randomized controlled trial (TOP Study). Endoscopy. 2024;56(9):665-673. doi:10.1055/a-2303-4824. 38599622.
Jensen DM, Kovacs T, Ghassemi KA, Kaneshiro M, Gornbein J. Randomized Controlled Trial of Over-the-Scope Clip as Initial Treatment of Severe Nonvariceal Upper Gastrointestinal Bleeding. Clin Gastroenterol Hepatol. 2021;19(11):2315-2323.e2. doi:10.1016/j.cgh.2020.08.046.
Meier B, Wannhoff A, Denzer U, et al. Over-the-scope-clips versus standard treatment in high-risk patients with acute non-variceal upper gastrointestinal bleeding: a randomized controlled trial (STING-2). Gut. 2022;71(7):1251-1258. doi:10.1136/gutjnl-2021-325300.
Bapaye J, Chandan S, Naing LY et al. Safety and efficacy of over-the-scope clips versus standard therapy for high-risk nonvariceal upper GI bleeding: systematic review and meta-analysis. Gastrointest Endosc 2022; 96: 712–720 doi:10.1016/j.gie.2022.06.032.
Gralnek IM, Stanley AJ, Morris AJ, et al. Endoscopic diagnosis and management of nonvariceal upper gastrointestinal hemorrhage (NVUGIH): European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) Guideline – Update 2021. Endoscopy. 2021;53(3):300-332. doi:10.1055/a-1369-5274.
Uso da Terapia Endoscópica a Vácuo no Manejo de Fístula Esofágica Pós-Tireoidectomia
Relato de Caso
Paciente masculino, 46 anos, natural de Arapiraca-AL, apresentou queixa de massa cervical volumosa, rouquidão e discreta disfagia, com piora recente. Os sintomas tiveram início há três anos. Foi diagnosticado com tumoração na tireoide, sendo confirmada, por citologia aspirativa com agulha fina, a presença de carcinoma medular em estágio avançado, associado a linfonodomegalia e paralisia do nervo laríngeo recorrente direito.
O paciente foi submetido a uma tireoidectomia total com esvaziamento cervical bilateral em sua cidade de origem. Durante a cirurgia, houve lesão do esôfago cervical, prontamente reparada com rafia. Para monitoramento no pós-operatório, optou-se pela colocação de um dreno tubular, além da passagem de uma sonda nasoenteral (SNE) para alimentação precoce. No sétimo dia de pós-operatório, o paciente apresentou dor e inchaço cervical, associados a febre e deterioração do estado geral. Um teste oral com azul de metileno evidenciou extravasamento de conteúdo pelo dreno cervical. O paciente foi transferido para um hospital terciário de referência em Maceió, onde foi internado na UTI geral. Uma endoscopia à beira do leito identificou uma fístula esofagotorácica localizada abaixo do cricofaríngeo, no esôfago proximal, comunicando-se com a cavidade torácica facilmente acessada com o endoscópio.
Figura 1: cavidade por visão endoscópica.
A cavidade apresentava exsudato espesso e amarelado, aderente às superfícies e com contaminação grosseira por saliva e debris, vistos no vídeo e fotos a seguir:
Figura 2: cavidade com exsudato espesso e amarelado.
Figura 3: O ápice pulmonar direito foi visualizado.
Realizou-se uma toalete cavitária com soro fisiológico 0,9%, seguida pela instalação de um sistema de terapia a vácuo (técnica modificada) com sonda nasogástrica Nº 18. Após a primeira troca, observou-se melhora significativa do quadro clínico e laboratorial, permitindo a alta da UTI para a enfermaria após o terceiro dia de terapia com pressão negativa.
Na terceira troca, era evidente a melhora na contaminação e redução do tamanho da cavidade, que se encontrava recoberta por tecido de granulação. A evolução endoscópica positiva acompanhou-se de uma melhora clínica significativa do paciente, que permaneceu estável e sem sinais de septicemia.
Vídeo de evolução após a terceira troca.
Vídeo de evolução após a quarta troca.
Vídeo de evolução após a sexta troca.
Foram necessárias seis trocas do sistema à vácuo, realizados semanalmente até o fechamento completo da cavidade e resolução em definitivo da fístula.
O relatório patológico descreve: carcinoma medular da tireoide, tumor que mede 4 x 3,3 cm (classificação de estadiamento pT3b pN1b M0). Houve invasão linfática (8 de 10 linfonodos).
Discussão
A perfuração e o extravasamento de conteúdo esofágico são condições graves e potencialmente fatais, frequentemente levando ao desenvolvimento de sepse, com uma taxa de mortalidade variando entre 12% e 50%. O prognóstico piora significativamente com o atraso no início do tratamento: a mortalidade aumenta de 7,4% para 20,3% quando a intervenção ocorre após 24 horas do evento, ressaltando a importância crítica da identificação e intervenção precoces.
A perfuração do esôfago cervical é comumente associada a complicações decorrentes de procedimentos esofágicos ou intubação traqueal. A alta mortalidade relacionada a essa condição deve-se à anatomia do esôfago proximal, que facilita o acesso de bactérias e enzimas digestivas ao mediastino, levando ao desenvolvimento de uma condição grave, a mediastinite, além de empiema, sepse e síndrome de disfunção de múltiplos órgãos.
Diversos tratamentos para perfurações esofágicas são descritos na literatura, mas ainda não há um procedimento considerado padrão-ouro. As abordagens podem ser conservadoras ou cirúrgicas. A abordagem conservadora inclui antibioticoterapia, nutrição parenteral e drenagem torácica, sendo indicada para pacientes selecionados com perfurações bem contidas, contaminação mínima e sem sinais de obstrução ou sepse. Já a abordagem cirúrgica pode variar desde rafia primária até esofagectomia com reconstrução imediata ou tardia do trato gastrointestinal, além de drenagem extensa do mediastino. Ambos os tratamentos visam prevenir a disseminação de conteúdo para o mediastino, eliminar e controlar a infecção, manter o estado nutricional do paciente e assegurar a integridade e continuidade do trato digestivo. O diagnóstico e a intervenção imediatos permanecem de importância vital.
A tireoidectomia (total ou parcial) é o tratamento de escolha para neoplasias da tireoide, sendo as principais complicações o hematoma cervical, hipoparatireoidismo transitório e lesão do nervo laríngeo recorrente. A perfuração inadvertida do esôfago é uma complicação rara. Devido à raridade desse evento, há escassez de dados na literatura, o que torna seu manejo mais desafiador.
Nesse contexto, novas terapias têm emergido e ganhado popularidade, como o uso de endoclipes e stents metálicos. Em 2003, a terapia endoscópica a vácuo (EVT) surgiu como uma alternativa, inicialmente empregada para o fechamento de fístulas de anastomose em cirurgias retais. A terapia endoscópica assistida por vácuo para fechamento de vazamentos de anastomose foi desenvolvida para superar as limitações do tratamento convencional não cirúrgico.
O fechamento de feridas cirúrgicas com pressão negativa é uma modalidade terapêutica bem estabelecida e amplamente utilizada desde 1997 para o tratamento de lesões abertas crônicas. Esse método é aplicado em diversas especialidades, como cirurgia geral, ortopedia, plástica e vascular. O procedimento consiste em selar o sítio cirúrgico com um adesivo e aplicar pressão subatmosférica. O aumento da vascularização aliado à redução da colonização bacteriana são fatores essenciais para o sucesso dessa terapia, acelerando a reparação da ferida e preparando o leito até sua cobertura definitiva por meio de diversos métodos de reconstrução tecidual.
Na EVT, o objetivo é criar um ambiente com pressão negativa que estimula o crescimento de tecido de granulação, preenchendo a cavidade e reduzindo a presença de fibrina e tecido necrótico. Esse preenchimento contínuo da cavidade com tecido de granulação resulta em uma diminuição progressiva do diâmetro e profundidade da cavidade durante as sessões subsequentes, promovendo o fechamento do defeito transmural e acelerando a cicatrização.
Um estudo de Luttikhold et al., multicêntrico realizado em cinco hospitais de três países europeus, avaliou o sucesso do fechamento de perfurações esofágicas com EVT, alcançando uma taxa de 89%. As indicações para o uso da EVT no trato gastrointestinal incluem defeitos transmurais agudos, precoces e crônicos da parede esofágica e da junção esofagogástrica. Há evidências publicadas de sucesso no fechamento de vazamentos em linhas de sutura após ressecções oncológicas e procedimentos bariátricos, além de perfurações iatrogênicas e rupturas espontâneas. A duração média do tratamento até o fechamento completo varia entre 11 e 28 dias, sendo o intervalo de troca do dispositivo um fator crucial para o sucesso da terapia.
A técnica da esponja modificada, confeccionada com sonda nasogástrica, gaze e adesivo antimicrobiano, é uma abordagem segura e relativamente simples, que se apresenta como uma alternativa eficaz para o manejo de defeitos do trato gastrointestinal. O EVT modificado é de fácil inserção e permite intervalos maiores entre as trocas do sistema. Sua relação custo-efetividade tem o potencial de expandir seu uso, democratizando o acesso à técnica e impactando significativamente o tratamento de casos desafiadores, contribuindo para desfechos mais favoráveis.
REFERÊNCIAS
Esophageal fistula complicating thyroid lobectomy. Nicholas D. Ward, Cortney Y. Lee, James T. Lee, and David A. Sloan. Journal of surgical case reports (JSCR), Jan 2015;
Cost-effective modified endoscopic vacuum therapy for the treatment of gastrointestinal transmural defects: step-by-step process of manufacturing and its advantages. Moura, Diogo et al. VIDEOGIE, Volume 6, No. Dec. 2021;
Current treatment and outcome of esophageal perforations in adults: systematic review and meta-analysis of 75 studies. Biancari F, D’Andrea V, Paone R, Di Marco C, Savino G, Koivukangas V, Saarnio J, Lucenteforte E. World J Surg. Fev 2013;
Endoscopic vacuum therapy in the upper gastrointestinal tract: when and how to use it. Gutschow CA, Schlag C, Vetter D. Langenbecks Arch Surg. May 2022;
Endoluminal vacuum-assisted closure (E-Vac) therapy for postoperative esophageal fistula: successful case series and literature review. Rubicondo C, Lovece A, Pinelli D, Indriolo A, Lucianetti A, Colledan M. World Journal Surgical Oncology. Nov. 2020;
The use of endoluminal vacuum (E-Vac) therapy in the management of upper gastrointestinal leaks and perforation. Nathan R. Smallwood, James W. Fleshman, Steven G. Leeds & J. S. Burdick. Surgical endoscopy. Set 2015;
Endoscopic vacuum therapy for esophageal perforation: a multicenter retrospective cohort study. Luttikhold J, Pattynama LMD, Seewald S, Groth S, Morell BK, Gutschow CA, Ida S, Nilsson M, Eshuis WJ, Pouw RE. Endoscopy. Sep. 2023.
Quando utilizar endoclipes profiláticos após polipectomia ou mucosectomia de lesões sésseis do cólon?
A colonoscopia e polipectomia de pólipos adenomatosos diminuem o risco do câncer colorretal, no entanto, o sangramento tardio pós-polipectomia (DPPB) é uma conhecida complicação potencialmente grave que ocorre entre 0,23% e 1,9% para pólipos em geral e em 7% para grandes pólipos ressecados através de mucosectomia (EMR). Os principais fatores de risco para o desenvolvimento do DPPB incluem o tamanho, a morfologia e localização do pólipo, bem como o uso de agentes anti-agregantes plaquetários e anticoagulantes.
A discussão do papel do fechamento profilático com endoclipes de forma rotineira para prevenção do DPPB já se arrasta há anos, sempre com resultados conflitantes entre os diversos trabalhos que abordam o tema (vide artigo prévio sobre SANGRAMENTO TARDIO PÓS-MUCOSECTOMIA DE CÓLON. SERÁ QUE PODEMOS EVITAR ESSE DRAMA?). Os defensores referenciam estudos que evidenciaram redução na incidência, enquanto os contrários apontam falta de evidência comprovada e o alto custo de sua implementação. De fato, o uso de endoclipes aumenta o custo do procedimento, com um estudo de Liaquat et al. estabelecendo o valor unitário de US$ 150,00 por clipe e estimando uma conta total de US$ 555,00 por paciente, em média. Todavia, a despesa do sistema de saúde decorrente do manejo de um DPPB pode facilmente suplantar o custo dos endoclipes, especialmente se houver necessidade de internação hospitalar e repetição da colonoscopia, ou menos frequentemente, se for necessária angiografia ou cirurgia.
O Guideline de 2017 da Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal (ESGE) para Polipectomia e EMR colorretal recomenda hemostasia profilática de rotina apenas para grandes pólipos pediculados (cabeça ≥ 20 mm ou pedículo ≥ 10 mm), usando injeção de adrenalina e/ou hemostasia mecânica (por exemplo, endoloops ou clipes). As diretrizes indicam que a hemostasia profilática mecânica pode ser superior à injeção de adrenalina, conforme evidenciado por estudos que descobriram que o uso de dispositivos mecânicos para pré-tratamento do pedículo do pólipo, sozinhos ou em combinação com injeção de adrenalina, diminuiu significativamente o sangramento pós-polipectomia em comparação à injeção de adrenalina sozinha. No entanto, para pólipos não pediculados (ou seja, sésseis), a diretriz da ESGE não recomendou o fechamento com endoclipes de rotina para evitar sangramento tardio.
Desde o Guideline de 2017, houve alguns ensaios clínicos randomizados (RCT) adicionais publicados que abordaram essa questão, portanto, uma reavaliação das evidências de alta qualidade se fazia necessária e foi efetivamente realizada por Kamal et al. (2020) numa meta-análise intitulada “Hemoclipes profiláticos na prevenção de sangramento tardio pós-polipectomia para pólipos colorretais ≥ 1 cm: Meta-análise de ensaios clínicos randomizados”. Buscando responder definitivamente à questão “clipar ou não clipar”, os desfechos primários de interesse foram DPPB com pólipos ≥ 2 cm e pólipos de 1 a 1,9 cm. Os desfechos secundários incluíram DPPB para todos os pólipos ≥ 1 cm, pólipos proximais, pólipos distais, uso de terapia anticoagulante/antiplaquetária, perfuração e síndrome pós-polipectomia. Um total de nove RCTs (oito publicações completas e um resumo) foram incluídos em sua análise, compreendendo 3764 pólipos, dos quais 1917 tiveram colocação de clipe profilático e 1847 não. Os resultados desta meta-análise demonstram uma redução significativa no DPPB com a colocação de clipe profilático em pólipos do cólon proximal ≥ 2 cm.
As conclusões da meta-análise de Kamal et al. são corroboradas por outra meta-análise publicada por Spadaccini et al (2020). Sua revisão de nove RCTs demonstrou uma redução de risco de quase 50% no DPPB com clipagem profilática em pólipos do cólon proximal ≥ 2 cm, mas nenhum benefício significativo da clipagem geral. Suas constatações se traduziram em um NNT (número necessário para tratar – com endoclipes) de 23 pacientes para prevenir um DPPB em lesões desse tamanho.
Por último, uma terceira meta-análise publicada em 2022 por Forbes et al. analisou dados individuais de pacientes em ensaios randomizados que avaliaram a eficácia do fechamento com endoclipes após EMR de pólipos colorretais não pediculados (LNPCP) do cólon proximal ≥20 mm para prevenção de eventos adverso. De 3145 citações, 4 ensaios foram incluídos, representando 1248 pacientes com LNPCP proximais. A taxa geral de sangramento clinicamente significativo pós-EMR foi de 3,5% e 9,0% em pacientes clipados e não clipados, respectivamente. Restou a conclusão, portanto, que o fechamento com endoclipes profilático é eficaz na prevenção e deve ser considerado um componente padrão pós-EMR de LNPCP no cólon proximal.
A despeito da evidência dos novos conhecimentos de que o fechamento com endoclipes de pólipos sésseis grandes (≥ 2 cm) do cólon proximal comprovadamente reduz o risco de DPPB, faz-se necessário algumas ponderações antes de adotar esta prática de maneira sistemática e irrestrita, uma vez que determinadas variáveis tem a capacidade de modificar o desfecho da custo-efetividade:
Tamanho da lesão – defeitos maiores exigem mais clipes para fechar e podem não ser passíveis de fechamento completo em muitos casos. Existem evidências de que o fechamento parcial ou incompleto do defeito da polipectomia ou EMR não é eficaz na redução do DPPB e que, mesmo em mãos de especialistas, 43% dos sítios de EMR com tamanho ≥ 20 mm não puderam ser totalmente fechados com clipes.
Custo-benefício – pode variar substancialmente dependendo do número de clipes necessários para cada caso, bem como do custo local de cada clipe.
Seguimento pós polipectomia ou EMR – considerando que significativa parte das ressecções de lesões >20mm ocorre em piecemeal, o que comprovadamente aumento chance de recidiva, os clipes podem dificultar a vigilância pós procedimento, uma vez que sua presença prolongada resulta no crescimento de tecido de granulação, tornando difícil, por vezes, distingui-lo de um adenoma. Mesmo depois de expelidos, a entidade bem descrita de “artefato de clipe” pode prejudicar a avaliação de locais de cicatriz de EMR/ polipectomia e, na ausência de experiência na interpretação de padrões de mucosas, potencialmente resultar em ressecção adicional desnecessária.
Novas técnicas de ressecção – técnicas emergentes como polipectomia e EMR com alça fria demonstram taxas muito baixas de sangramento tardio, mesmo para pólipos grandes, incluindo adenomas e lesões serrilhadas sésseis, sendo improvável que o fechamento com endoclipes de rotina nestas situações valha a pena.
Diante de todo o exposto, é bastante razoável considerar que consensos ou diretrizes futuras de sociedades de especialidade que abordem o tema aqui discutido passem a sugerir o fechamento profilático do leito cruento com endoclipes após polipectomias com alça quente (“hot snare”) ou EMR de pólipos sésseis do cólon proximal com tamanho ≥20 mm para fins de redução da incidência de DPPB. No entanto, ainda que eventualmente possa não ser recomendada como rotina padrão, devido a múltiplos fatores inerentes ao paciente, lesão e/ou procedimento que afetam os riscos e benefícios da aplicação profilática do clipe, sua consideração meticulosa pelo endoscopista em cada caso continuará sendo uma postura bastante apropriada.
Referências Bibliográficas:
Alexandra Marc et al. Prevention of delayed post-polypectomy bleeding: Should we amend the 2017 ESGE Guideline? Endoscopy International Open 2020; 08: E1111–E1114
Liaquat H, Rohn E, Rex DK. Prophylactic clip closure reduced the risk of delayed postpolypectomy hemorrhage: experience in 277 clipped large sessile or flat colorectal lesions and 247 control lesions. Gastrointest Endosc. 2013 Mar;77(3):401-7. doi: 10.1016/j.gie.2012.10.024. Epub 2013 Jan 11. PMID: 23317580.
Monika Ferlitsch et al. Colorectal polypectomy and endoscopic mucosal resection (EMR): European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) Clinical Guideline. Endoscopy 2017; 49(03): 270-297
Faisal Kamal et al. Prophylactic hemoclips in prevention of delayed post-polypectomy bleeding for ≥ 1 cm colorectal polyps: meta-analysis of randomized controlled trials. Endoscopy International Open 2020; 08: E1102–E1110
Marco Spadaccini et al. Prophylactic Clipping After Colorectal Endoscopic Resection Prevents Bleeding Of Large, Proximal Polyps: Meta-Analysis Of Randomized Trials. Gastroenterology 2020 Jul;159(1):148-158.e11.
Nauzer Forbes et al. Clip closure to prevent adverse events after EMR of proximal large nonpedunculated colorectal polyps: meta-analysis of individual patient data from randomized controlled trials. Gastrointest Endosc 2022;96:721-31.
Medicações em uso: de Enalapril 20mg, Hidroclorotiazida 25mg, AAS 100mg, Sinvastatina 40mg.
Durante internação, por IC descompensada, apresentou 3 episódios de melena. Não houve instabilidade hemodinâmica. Houve necessidade de transfusão de 1 unidade de hemoconcentrado.
Exames laboratoriais (antes da transfusão): Hb: 8,7| Ht: 27 | Leu: 7.500 sem desvios | Cr: 1,0 | Ur: 39 | Na 136 | K 3,5 e demais exames sem particularidades
EDA: gastrite antral erosiva plana leve; UREASE negativa
Realizou preparo anterógrado com manitol, em que foram evidenciadas:
IPMN: o que mudou de Fukuoka a Kyoto
1.Introdução
As lesões císticas pancreáticas tem sido cada vez mais diagnosticadas, tanto pelo aumento da incidência dessas lesões quanto pela realização e acesso crescente a exames de imagem que eventualmente identificam tais lesões. A neoplasia mucinosa papilar intraductal (IPMN) é uma das principais lesões císticas do pâncreas, tanto pela sua incidência quanto pelo seu potencial de transformação maligna, porém sua apresentação e evolução apresentam um espectro amplo de possibilidades. Como o potencial maligno do IPMN de ducto secundário varia de 1 a 38%, é fundamental identificar quais lesões apresentam risco aumentado e quais podem ser apenas acompanhadas, evitando cirurgias desnecessárias que envolvem riscos e morbi-mortalidade consideráveis. Já o IPMN de ducto principal apresenta um potencial maligno maior, de 33 a 85%, sendo indicada a ressecção cirúrgica sempre que o ducto pancreático principal (DPP) esteja dilatado em 10 mm ou mais e o paciente apresente condições clínicas e expectativa de vida compatível com a abordagem cirúrgica (1).
Para padronizar o manejo dos IPMN com base nas melhores evidências disponíveis, a Associação Internacional de Pancreatologia (IAP) publicou o primeiro guideline contemplando as lesões císticas pancreáticas mucinosas – IPMN e cistoadenoma mucinoso – em 2006 (2). Este guideline foi revisado em 2012 (3) e, posteriormente em 2017, um novo guideline com foco apenas nos IPMN foi publicado, e ficou conhecido como o consenso de Fukuoka (4). Os critérios de Fukuoka foram amplamente divulgados e discutidos ao longo dos últimos anos, sendo ferramenta chave no manejo dos IPMN, que já foi tema de publicação no Endoscopia Terapêutica (clique aqui para Critérios de Fukuoka para IPMN). Mais recentemente, em 2022 no encontro da IAP realizado em Kyoto, o consenso de Fukuoka foi revisado, sendo o novo guideline publicado na Pancreatology em 2024 (5).
Neste artigo, iremos abordar o novo guideline de Kyoto, enfatizando o que mudou desde o último consenso em Fukuoka à luz do recente artigo publicado na The New England Journal of Medicine sobre o tema (1), sendo essas as duas referências para os próximos tópicos (1, 5).
2.Conceitos e definições
Não houve mudança em relação às definições dos três tipos de IPMN, que podem ser de ducto secundário (“Branch duct-IPMN” ou BD-IPMN), de ducto principal (“Main-duct IPMN” ou MD-IPMN) ou misto – quando contempla os critérios tanto para BD-IPMN quanto para MD-IPMN. Os cistos pancreáticos >5mm com comunicação com o DPP devem ser classificados como BD-IPMN, enquanto uma dilatação do DPP >5mm sem fator obstrutivo é classificado como MD-IPMN. A importância e manejo de cistos pancreáticos assintomáticos <5mm permanece controverso.
Figura 1: Tipos de IPMN na ressonância magnética. Adaptado de Ohtsuka T, et al. Pancreatology. 2024 (5).
Os IPMN podem apresentar displasia de baixo grau ou displasia de alto grau – que também pode ser chamada de carcinoma in situ -, podendo chegar a carcinoma invasivo (CI). O objetivo no manejo dos IPMN é distinguir os IPMN de baixo grau (maioria) dos de alto grau, que evoluirão para carcinoma invasivo.
Em relação aos subtipos morfológicos, são reconhecidos três tipos: gástrico (mais frequente e melhor prognóstico), intestinal e pancreatobiliar (maior risco de malignização). O tipo oncocítico foi separado como entidade própria, sendo denominado neoplasia oncocítica papilar intraductal, devido principalmente estudos genéticos que identificaram diferenças significativas.
3.Investigação diagnóstica e exames complementares
Os exames de imagem primários na avaliação dos IPMN são a ressonância magnética (RM) e a tomografia computadorizada (TC), sendo a ecoendoscopia indicada para avaliação de achados sugestivos de displasia de alto grau e carcinoma invasivo.
Punção ecoguiada
A punção ecoguiada não está indicada de rotina. Ela deve ser indicada apenas quando há dúvida diagnóstica para diagnóstico diferencial com outras lesões císticas ou em casos nos quais a punção poderá mudar a conduta. Quando há evidência de alto risco para displasia de alto grau ou carcinoma invasivo na RM, a cirurgia está indicada e não há indicação de punção ecoguiada.
Para o diagnóstico diferencial com as demais lesões císticas pancreáticas, o CEA e a amilase são tradicionalmente os principais marcadores utilizados, porém estudos mais recentes destacam a glicose como importante marcador para distinguir lesões mucinosas de não mucinosas. Glicose <50ng/ml apresenta sensibilidade de 93%, especificidade de 89% e acurácia que pode chegar até 90 a 94%, tendo um rendimento melhor que o CEA – que apresenta uma sensibilidade de 58% e especificidade de 87%. É importante ressaltar que tais marcadores não apresentam relação com displasia de alto grau ou carcinoma in situ.
Em relação a punção ecoguiada com o objetivo de identificar displasia de alto grau ou carcinoma invasivo em casos limítrofes, a sensibilidade para identificação citológica no fluido cístico é de apenas 28,7%, porém o achado suspeito ou positivo apresenta especificidade de 91-100% e 100% respectivamente, e a ressecção cirúrgica estaria indicada. Para superar a baixa sensibilidade da punção aspirativa, foram desenvolvidos “microforceps” para biópsias através da agulha, que apresentam maior sensibilidade, apesar de um risco um pouco aumentado de pancreatite e sangramento. A punção ecoguiada também pode possibilitar a análise genética do conteúdo, que pode se relacionar tanto na confirmação do diagnóstico de IPMN (alterações nos genes KRAS e GNAS) quanto com risco de displasia de alto grau e carcinoma invasivo (alterações nos genes TP53, CTNNB1, CDKN2A, SMAD4, e genes envolvidos na via mTOR) – estes apresentando alta especificidade (92-98%) porém baixa sensibilidade (9-39%). Quando identificada áreas sólidas, as punções (se indicada) devem ser dirigidas a estas áreas, onde o rendimento diagnóstico é maior. No caso de avaliação de nódulos murais, a ecoendoscopia com contraste pode definir o caráter neoplásico ou não-neoplásico do nódulo, evitando a necessidade de punção ecoguiada, que apresenta um risco de “seeding” de cerca de 0,3%.
Pancreatoscopia
Pode ser útil nos casos de MD-IPMN e tipo misto com indicação de cirurgia para delimitar a extensão da ressecção e evitar a pancreatectomia total em alguns casos. Ela não deve ser realizada no intra-operatório pelo risco de disseminação neoplásica peritoneal e pela possível super-estimativa da extensão da lesão a ser ressecada, uma vez que a acurácia para diferenciar displasia de baixo grau (que não precisa ser ressecada) de alto grau (que deve ser ressecada) é baixa. Dessa forma, quando indicada, a pancreatoscopia deve ser realizada antes do procedimento cirúrgico, ficando a margem intra-operatória a critério da avaliação anatompatológica de congelação.
O que mudou: 1) a análise genética do material da punção ecoguiada pode auxiliar no diagnóstico e identificação de lesões de alto risco. 2) a pancreatoscopia pode auxiliar em alguns casos de MD-IPMN e tipo misto e, quando indicada, deve ser realizada antes da cirurgia (e não no intra-operatório).
4. Avaliação do risco – estigmas de alto risco e características preocupantes
Talvez a principal contribuição dos guidelines que abordam os IPMN seja identificar os achados e fatores que aumentam o risco de evolução para câncer e atribuir condutas a partir desses fatores. Desde a publicação de 2012 os termos “estigmas de alto risco” (high risk stigmata – HRS) e “características preocupantes” (worrisome features – WF) vem sendo utilizados para identificar os fatores que apresentam alto risco e risco intermediário, respectivamente.
4. a) Estigmas de alto risco
Icterícia obstrutiva em paciente com lesão cística na cabeça do pâncreas
Nódulo mural com realce ≥ 5mm ou componente sólido
Ducto pancreático principal ≥ 10mm
Citologia suspeita ou positiva (caso tenha sido indicada punção ecoguiada)
O que mudou: citologia suspeita ou positiva foi definida como estigma de alto risco
Figura 2: Estigmas de alto risco. Adaptado de Gonda TA, et al. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024 (1).
4. b) Características preocupantes (CP)
> Clínica
Pancreatite aguda
Aumento de CA 19-9
Início ou exacerbação aguda de Diabetes no último 1 ano
> Imagem
. Cisto ≥ 30mm
Nódulo mural com realce < 5mm
Paredes císticas espessadas ou com realce
Ducto pancreático principal ≥ 5mm e <10mm
Mudança abrupta de calibre do DPP com atrofia distal
Linfadenopatia
Crescimento cístico ≥ 2,5mm/ano
A presença de múltiplas CPs aumenta significativamente o risco de displasia de alto grau e carcinoma invasivo:
– 1 CP: 22% de risco – 2 CP: 34% de risco – 3 CP: 59% de risco – ≥4 CP: até 100% de risco
O que mudou: 1) um critério clínico novo foi incorporado – início ou exacerbação de diabetes no último ano; 2) um critério foi alterado – crescimento cístico ≥ 2,5mm/ano (antes era ≥ 5mm/2 anos; 3) foi incorporado o conceito de que múltiplas características preocupantes aumentam o risco de displasia de baixo grau e carcinoma invasivo.
Figura 3: Representação de 8 das 10 características preocupantes. Adaptado de Gonda TA, et al. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024 (1).
5) Fatores adicionais para avaliação nos pacientes com “características preocupantes”
Os pacientes que não têm estigmas de alto risco, porém apresentam alguma CP, devem ser avaliados para fatores adicionais que possam direcionar a conduta para o seguimento clínico ou uma tendência à indicação cirúrgica.
Foram alterados os três fatores considerados previamente em Fukuoka (que eram: presença de nódulo mural definitivo > 5mm, características suspeitas para envolvimento do DPP e citologia suspeita ou positiva). No atual guideline de Kyoto, esses fatores são: 1) pancreatite de repetição com piora da qualidade de vida; 2) múltiplas características preocupantes; 3) jovem com bom status clínico para cirurgia. A presença de um desses três fatores direciona para uma abordagem cirúrgica, enquanto a ausência dos três direciona para o seguimento clínico com exames de imagem periódicos.
O que mudou: os três fatores adicionais a serem avaliados em pacientes sem estigmas de alto risco porém com alguma CP – 1) pancreatite de repetição com piora da qualidade de vida; 2) múltiplas características preocupantes; 3) jovem com bom status clínico para cirurgia.
6) Seguimento de IPMN não ressecado
O risco de progressão dos BD-IPMN apresenta relação com o tamanho inicial do maior cisto ao diagnóstico, e, portanto, o seguimento preferencialmente com RM das lesões não candidatas à ressecção cirúrgica baseia-se no tamanho do maior cisto:
< 20mm: reavaliação em 6 meses. Se estável, a cada 18 meses
≥ 20 mm <30mm: reavaliação em 6 e 12 meses. Se estável, a cada 12 meses
≥ 30mm: a cada 6 meses
Em relação ao seguimento de lesões <20mm sem CP que permanecem estáveis, há controvérsia na literatura, de forma que o novo guideline admite duas possibilidades: manter o seguimento OU parar o seguimento após 5 anos. Dessa forma, os candidatos a interrupção do seguimento com exames de imagem são:
Cistos <20mm sem estigmas de alto risco ou CPs, estáveis por pelo menos 5 anos;
Pacientes não candidatos à cirurgia ou com expectativa de vida < 10 anos.
O seguimento dos IPMN é importante não só devido ao risco de progressão da lesão, mas também pelo risco aumentado em desenvolver adenocarcinoma de pâncreas sem relação com o IPMN, que pode ser até 5x maior do que a população geral, segundo estudos japoneses. Esse mecanismo foi chamado de “dupla carcinogênese” dos IPMN, e é um dos argumentos defendidos por aqueles que advogam em manter o seguimento mesmo em lesões pequenas estáveis.
Em relação aos BD-IPMN multifocais – que correspondem a 20-40% dos casos – não há risco aumentado de progressão e o manejo e seguimento deve ser de acordo com a maior lesão.
O que mudou: o seguimento de acordo com o tamanho do maior cisto, que antes distinguia quatro grupos (<1cm, 1-2cm, 2-3cm e > 3cm) foi reduzido para apenas três grupos (< 2cm, ≥ 2cm <30cm e ≥ 3cm).
7) Seguimento de IPMN não invasivo ressecado
Seguimento de IPMN não invasivo ressecado:
– Pancreatectomia total: seguimento por 5 anos;
– Pancreatectomia parcial: a cada 6-12 meses, até o paciente não ser mais candidato à cirurgia.
8) Algoritmo de manejo de BD-IPMN pelo guideline de Kyoto (adaptado)
Sublinhado em vermelho: critério novos;
Sublinhado em amarelo: critério que foram modificados em relação à Fukuoka.
Figura 4: Algoritmo de manejo de IPMN pelo guideline de Kyoto. Adaptado de Ohtsuka T, et al. Pancreatology. 2024 (5).
Referências:
Gonda TA, Cahen DL, Farrell JJ. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024;391(9):832-843. doi:10.1056/NEJMra2309041
Tanaka M, Chari S, Adsay V, et al. International consensus guidelines for management of intraductal papillary mucinous neoplasms and mucinous cystic neoplasms of the pancreas. Pancreatology. 2006;6(1-2):17-32. doi:10.1159/000090023
Tanaka M, Fernández-del Castillo C, Adsay V, et al. International consensus guidelines 2012 for the management of IPMN and MCN of the pancreas. Pancreatology. 2012;12(3):183-197. doi:10.1016/j.pan.2012.04.004
Tanaka M, Fernández-Del Castillo C, Kamisawa T, et al. Revisions of international consensus Fukuoka guidelines for the management of IPMN of the pancreas. Pancreatology. 2017;17(5):738-753. doi:10.1016/j.pan.2017.07.007
Ohtsuka T, Fernandez-Del Castillo C, Furukawa T, et al. International evidence-based Kyoto guidelines for the management of intraductal papillary mucinous neoplasm of the pancreas. Pancreatology. 2024;24(2):255-270. doi:10.1016/j.pan.2023.12.009
Mucosectomia por imersão (underwater) com auxílio de cap – um alternativa para casos difíceis
Paciente masculino, 45 anos, previamente hígido, foi submetido a colonoscopia em outro serviço que identificou um pólipo séssil de 6 mm de diâmetro, 0-Is pela classificação de Paris, com superfície lisa e amarelada, localizado em reto médio. Na ocasião foi realizada ressecção parcial da lesão com alça a frio. Resultado anatomopatológico e imunohistoquímico evidenciaram tumor neuroendócrino bem diferenciado (grau 1 – Ki67<2%), com margens comprometidas.
Paciente veio encaminhado para realizar nova colonoscopia na tentativa de ressecção completa da lesão. Durante o procedimento foi observada uma diminuta lesão amarelada no reto, discretamente elevada, correspondente à área de polipectomia prévia com presença de lesão residual (Figuras 1, 2 e 3). Realizada tentativa de mucosectomia pela técnica de imersão (“underwater”), não havendo pega adequada com a alça para ressecção. Foi optado, então, pela realização da mucosectomia por imersão assistida por cap, que consiste na imersão do espaço intraluminal com água, seguido por sucção da lesão com auxílio de cap endoscópico, afim de formar um pseudopólipo, e assim facilitar a apreensão e ressecção da lesão (Figura 4). Com o uso dessa técnica foi possível apreender a lesão residual com a alça e realizar sua ressecção completa (Figuras 5 e 6). O resultado anatomopatológico confirmou a presença de tumor neuroendócrino bem diferenciado (grau 1 – Ki67<2%), com margens laterais e profunda livres.
Figura 1: aspecto endoscópico da lesão residual em reto distalFigura 2: aspecto endoscópico da lesão residual em reto distalFigura 3: aspecto endoscópico da lesão residual em reto distal com auxílio de NBIFigura 4: aspiração da lesão com auxílio de cap para formação de pseudopólipoFigura 5: apreensão do pseudopólipo com alça de polipectomiaFigura 6: aspecto pós ressecção endoscópica
Discussão
A mucosectomia underwater assistida por cap (CAP-UEMR) consiste na utilização de cap endoscópico para sucção da lesão a ser ressecada sob imersão em água, até que seja formado um “pseudopólipo” passível de apreensão e ressecção. Se a ressecção em monobloco não for possível, pode-se realizar novos “pseudopólipos” e ressecar à piece-meal, até que se alcance o resultado desejado, conforme ilustrado na figura abaixo:
Fonte: Ilustração de Uchima Hugo et al. Endoscopy 2023.
O estudo foi uma análise observacional retrospectiva de 83 procedimentos de ressecção endoscópica pela técnica CAP-UEMR, realizados em dois centros entre setembro de 2020 e dezembro de 2021. O desfecho primário foi o sucesso técnico, definido como ressecção completa macroscópica da lesão no índice CAP-UEMR. Os desfechos secundários foram as taxas de sangramento e perfuração. As 83 lesões tratadas tinham um tamanho médio de 20 mm. Foram incluídas 64 lesões deprimidas ou planas (18 previamente manipuladas, 9 com acesso difícil), 11 lesões do apêndice e 8 lesões da válvula ileocecal. Os resultados mostraram uma taxa de sucesso técnico de 100%, com ressecção macroscópica completa alcançada em todas as 83 lesões. Houve 7 casos de sangramento intraoperatório e 2 casos de sangramento tardio, todos tratados endoscopicamente. Nenhuma perfuração ou outras complicações ocorreram. Entre as 64 lesões com colonoscopia de acompanhamento, apenas 1 recorrência foi detectada, que foi tratada endoscopicamente.
Concluiu-se que a CAP-UEMR pode ser uma técnica segura e eficaz para facilitar a ressecção de lesões colorretais complexas. O estudo possui suas limitações, sendo as principais o possível viés de seleção e design retrospectivo e necessidade de estudos comparativos para determinar a eficácia específica do CAP-UEMR em relação a outras técnicas de ressecção.
Referência
Uchima H, Calm A, Muñoz-González R, Caballero N, et al. Underwater cap-suction pseudopolyp formation for endoscopic mucosal resection: a simple technique for treating flat, appendiceal orifice or ileocecal valve colorectal lesions. Endoscopy. 2023 Nov;55(11):1045-1050. doi: 10.1055/a-2115-7797. Epub 2023 Jun 22. PMID: 37348544.
Uso do escore SPICE (Smooth Protuding lesion Index at Capsule Endoscopy) para diferenciar massa subepitelial de abaulamento inocente.
Quem avalia exame de cápsula endoscópica com certeza se depara com abaulamentos na luz do intestino delgado que o iniciante imediatamente acreditará ser uma lesão subepitelial. Será que ele lembrou que poderia ser uma contração ou uma compressão extrínseca?
Em um exame onde só imagens são avaliadas, sem toque nem possibilidade de movimentar o aparelho para posições que possibilitem melhor visualização, é realmente desafiador conseguir diferenciar a causa do abaulamento. Falaremos sobre o escore SPICE (Smooth Protuding lesion Index at Capsule Endoscopy), que pode nos auxiliar nesta situação. O SPICE utiliza características da lesão, de apresentação e seu o tempo de visualização. SPICE > 2 tem sensibilidade de 83,3% e especificidade de 86,4% para massa subepitelial. Um abaulamento benigno é definido como protuberância redonda de mucosa com aparência normal, com margens suaves mal definidas e base maior que a altura. Seria como se colocássemos um objeto debaixo de um lençol, fazendo com que o lençol levantasse suavemente, com margens suaves e imprecisas. O escore se utiliza destas características para tentar definir que tipo é o abaulamento.
Escore SPICE
Critérios
Não
Sim
Margem mal definida com a mucosa adjacente
1
0
Diâmetro maior que a altura
1
0
Lúmen visível nas imagens em que aparece
0
1
Imagem da lesão aparece por mais de 10 minutos
0
1
Um valor > 2 é preditivo de massa subepitelial
Por exemplo: o tempo entre o primeiro e o último aparecimento do abaulamento na imagem abaixo é de 7 minutos (Figura 1). No caso, temos Score SPICE 1 (0 + 0 + 1 + 0 ).
Figura 1.
Uma característica relatada por Min et. al (que corresponderia ao primeiro critério da SPICE) é o grau de inclinação da base da protusão em relação a mucosa. Uma massa subepitelial bem definida formaria uma inclinação aguda, como se quisesse formar um pedículo. Um ângulo agudo (< 90º) tem maior possibilidade de ser criado por massa subepitelial (Figura 2) porém, um ângulo obtuso poderá ser formado por uma lesão, compressão extrínseca ou contração (Figura 3). Comparando com a SPICE, um ângulo menor que 90o tem a mesma especificidade e maior sensibilidade (92% x 32%).
Figura 2Figura 3
Apesar das ferramentas existentes, continua desafiador determinar com certeza a natureza de uma protusão em um exame de cápsula endoscópica mas estudos tem favorecido sua melhor definição, auxiliando no seguimento dos pacientes.
E você, teria dificuldade em afirmar se um abaulamento trata-se de massa subepitelial ou um artefato?
Referências
Min M, Noujaim MG, Green J et al. Role of mucosal protrusion angle in discriminating between true and false masses of the small-bowel on video capsule endoscopy. J Clin Med 2019; 8: 418
Rosa B, Margalit-Yehuda R, Gatt K, Sciberras M, Girelli C, Saurin JC, Valdivia PC, Cotter J, Eliakim R, Caprioli F, Baatrup G, Keuchel M, Ellul P, Toth E, Koulaouzidis A. Scoring systems in clinical small-bowel capsule endoscopy: all you need to know! Endosc Int Open. 2021 Jun;9(6):E802-E823. doi: 10.1055/a-1372-4051. Epub 2021 May 27. Erratum in: Endosc Int Open. 2021 Jun;9(6):C6. doi: 10.1055/a-1521-0901. Erratum in: Endosc Int Open. 2021 Jun;9(6):C7. doi: 10.1055/a-1525-7686. PMID: 34079861; PMCID: PMC8159625.
Girelli CM, Porta P, Colombo E et al. Development of a novel index to discriminate bulge from mass on small-bowel capsule endoscopy. Gastrointest Endosc 2011; 74: 1067–1074
Os procedimentos de endoscopia são realizados sob sedação venosa, salvo raras exceções, com uma série de recomendações a respeito da segurança do paciente durante a sedação (clique aqui para Sete passos para anestesia segura em procedimentos endoscópicos). E o que acontece depois do exame? Após a sedação, como avaliar objetivamente quando o paciente está realmente apto a sair da sala de exame e do consultório?
Foram desenvolvidas algumas escalas para avaliar parâmetros clínicos do paciente que permitam liberar o mesmo com segurança após anestesia, seja ela local, loco-regional, sedação ou anestesia geral.
A escala de Aldrete e Kroulik foi desenvolvida em 1970 com o objetivo de determinar condições de alta após anestesia através da avaliação de cinco parâmetros simples: atividade motora, respiração, nível de consciência, pressão arterial e coloração da pele/leito ungueal (avaliação de hipoxemia). Em 1995 os mesmos autores modificaram a escala substituindo a avaliação subjetiva de hipoxemia por dados da oximetria de pulso. Vide critérios a seguir:
Atividade motora Movimenta os quatro membros – 2 pontos Movimenta dois membros – 1 ponto Não move os membros – 0 pontos
Respiração Capaz de respirar profundamente – 2 pontos Dispneia / limitação à respiração – 1 ponto Apneia – 0 pontos
Nível de consciência Completamente acordado – 2 pontos Desperta ao chamado – 1 ponto Não responde – 0 pontos
Circulação – pressão arterial Pressão arterial (PA) até 20% do nível pré-anestésico – 2 pontos PA em 20-49% do nível pré anestésico – 1 ponto PA em 50% nível pré anestésico – 0 pontos
Saturação de oxigênio Mantém saturação de oxigênio (SO2) > 92% em ar ambiente – 2 pontos Mantém SO2 >90% com oxigênio suplementar – 1 ponto Mantém SO2 <90% com oxigênio suplementar – 0 pontos
Cada parâmetro avaliado varia de 0 a 2 pontos, totalizando uma pontuação máxima de 10 na escala, sendo considerado como critério de alta um escore de 9 ou 10. Pacientes que estão com pontuação de 8 ou menos precisam de maior monitorização e possivelmente cuidados, intervenções de acordo com a necessidade como uso de cateter de oxigênio, expansão volêmica, drogas vasopressoras, uso de antagonistas como flumazenil.
A escala é objetiva, envolvendo parâmetros facilmente mensuráveis, rápida, sem trazer gastos, sendo utilizada regularmente nas salas de recuperação anestésica para determinar critérios de alta após sedação ou anestesia geral. Embora a escala possa ser aplicada por qualquer profissional de saúde que receba treinamento, a interpretação e tomada de decisão sobre a alta do paciente é de responsabilidade do médico.
Foi criada também a Escala de Aldrete para procedimentos ambulatoriais incluindo todos os cinco parâmetros da escala modificada e adicionando outros quatro parâmetros: sangramento (aspecto curativo), deambulação, alimentação, micção espontânea. O paciente é considerado apto para alta quando atinge um escore de 18 ou mais nesta escala.
Atividade motora Movimenta os quatro membros – 2 pontos Movimenta dois membros – 1 ponto Não move os membros – 0 pontos
Respiração Capaz de respirar profundamente – 2 pontos Dispneia / limitação à respiração – 1 ponto Apneia – 0 pontos
Nível de consciência Completamente acordado – 2 pontos Desperta ao chamado – 1 ponto Não responde – 0 pontos
Circulação – pressão arterial Pressão arterial (PA) até 20% do nível pré-anestésico – 2 pontos PA em 20-49% do nível pré anestésico – 1 ponto PA em 50% nível pré anestésico – 0 pontos
Saturação de oxigênio Mantém saturação de oxigênio (SO2) > 92% em ar ambiente – 2 pontos Mantém SO2 >90% com oxigênio suplementar – 1 ponto Mantém SO2 <90% com oxigênio suplementar – 0 pontos
Curativo Limpo e seco – 2 pontos Molhado porém sem expandir – 1 ponto Molhado, expandindo – 0 pontos
Deambulação Fica em pé e anda em linha reta – 2 pontos Tontura quando em pé – 1 ponto Tontura em posição supina – 0 pontos
Alimentação Apto a tomar líquidos – 2 pontos Nauseado – 1 ponto Vômitos – 0 pontos
Micção espontânea É capaz de urinar – 2 pontos Não urina mas está confortável – 1 ponto Não urina e sente desconforto – 0 pontos
Uma outra escala também é muito utilizada para avaliar a alta do paciente é a Modified Post-Anaesthetic Discharge Scoring System (MPADSS) que se destaca por incluir a avaliação da dor nos critérios de alta.
Sinais vitais Frequência cardíaca e pressão arterial variando até 20% do nível pré-anestésico – 2 Frequência cardíaca e pressão arterial entre 20% e 40% do nível pré-anestésico – 1 Frequência cardíaca e pressão arterial com mais de 40% do nível pré-anestésico – 0
Atividade Marcha adequada, sem tonturas ou nível similar ao pré anestésico – 2 Necessita de assistência para deambular – 1 Não deambula – 0
Náuseas e vômitos Sem queixas/ queixas mínimas controladas com medicação oral -2 Queixa moderada tratada com medicação venosa – 1 Queixas intensas ou contínuas apesar do tratamento – 0
Sangramento Ausente ou mínimo – 2 Moderado (1 episódio de hematêmese ou sangramento retal) – 1 Severo (2 ou mais episódios de hematêmese ou sangramento retal) – 0
Nesta escala o paciente é considerado apto para alta quando atinge escore igual ou superior a 9 em duas medidas consecutivas.
Foi realizada uma comparação entre a escala de Aldrete modificada e a MPADSS em publicação envolvendo 120 pacientes em cada grupo, em pacientes submetidos a endoscopia ambulatorial sob sedação venosa. Houve maior percentagem de pacientes considerados recuperados dentro da primeira hora pós sedação no grupo avaliado pela escala de Aldrete (42,5% vs 25%, p<0,01) embora a taxa de pacientes com sonolência no momento da alta tenha sido maior (19,1% vs 5%, p<0,01); não houve diferença significativa na taxa de efeitos adversos nas primeiras 24h entre ambos grupos.
É importante respeitar todas as etapas para a realização de uma endoscopia segura, não esquecendo da relevância em avaliar as condições de alta do paciente, algo que se torna mais fácil com auxílio de escalas objetivas como as citadas.
Referências
Yamaguchi D, Morisaki T, Sakata Y, Mizuta Y, Nagatsuma G, Inoue S, Shimakura A, Jubashi A, Takeuchi Y, Ikeda K, Tanaka Y, Yoshioka W, Hino N, Ario K, Tsunada S, Esaki M. Usefulness of discharge standards in outpatients undergoing sedative endoscopy: a propensity score-matched study of the modified post-anesthetic discharge scoring system and the modified Aldrete score. BMC Gastroenterol. 2022 Nov 4;22(1):445.
Trevisani L, Cifalà V, Gilli G, Matarese V, Zelante A, Sartori S. Post-Anaesthetic Discharge Scoring System to assess patient recovery and discharge after colonoscopy. World J Gastrointest Endosc. 2013 Oct 16;5(10):502-7.
Oliveira Filho GR. Rotinas de cuidados pós-anestésicos de anestesiologistas brasileiros [Postanesthetic routines of Brazilian anesthesiologists]. Rev Bras Anestesiol. 2003 Aug;53(4):518-34.
Como citar este artigo
Ferreira F. Você já ouviu falar sobre a Escala de Aldrete? Endoscopia Terapeutica, 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/voce-ja-ouviu-falar-sobre-a-escala-de-aldrete/