CPRE em pacientes gestantes

A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) é um procedimento endoscópico destinado à diagnosticar e tratar doenças das vias biliares e pancreáticas, indicado para pacientes com afecções malignas e benignas de tais órgãos. Apesar dos benefícios proporcionados por esse procedimento serem bem documentados em literatura, a sua eficácia clínica e segurança no período gestacional ainda não são bem consolidadas.

Na gestação existe um aumento da prevalência de colelitíase (3 a 12%) em função do metabolismo da progesterona que está elevada nesse período e, por consequência, aumentam a frequência das complicações da litíase biliar, sendo a coledocolitíase a mais comum.

As indicações de CPRE na gestação devem ser de cunho terapêutico e devem ser muito bem avaliadas, afinal, quando adiá-los podem acarretar em consequências graves, que suplantam os possíveis riscos inerentes ao próprio procedimento em qualquer período.

As principais patologias que podem requerer uma CPRE inadiável durante o período gestacional são: coledocolitíase, obstruções biliares malignas, colangite e fístulas/estenoses biliares. Não existe em literatura, nenhum consenso que assegure a melhor fase da gestação para realização do exame, apesar de se saber sobre as fragilidades relacionadas ao primeiro trimestre de um modo geral.

As contraindicações são semelhantes à dos exames endoscópicos, como coagulopatias graves e suspeita de perfuração intestinal. Os procedimentos menos invasivos possuem menores riscos de complicações em relação aos procedimentos cirúrgicos, pois possuem menor morbimortalidade, e portanto, menores chances de danos à saúde materna e do feto.

A CPRE na gestação deve ser programada em seus mínimos detalhes e preferencialmente realizada por profissional experiente e habilitado para otimização do tempo e minimização dos riscos. Também deve contar com equipe multidisciplinar para avaliação da gestante, pela anestesiologia, e do feto, pela ginecologia, esta última, realizada preferencialmente antes, durante e após o procedimento.

Precauções da CPRE em gestantes

Radiação

Durante a realização do procedimento, algumas precauções devem ser tomadas, principalmente no que diz respeito à radiação, pois tem potencial deletério, podendo ocasionar, inclusive, abortamento. Apesar de não haver consenso em relação ao tempo de exposição à radiação na literatura, e também, haver uma grande variação pessoal na absorção da mesma, algumas sociedades de obstetrícia publicaram que um nível de radiação abaixo de 50 mGy (o equivalente a aproximadamente 140 segundos de radiação) estão associados a baixas taxas de aborto e má formações. Algumas técnicas descritas podem evitar a utilização de radiação, à exemplo da técnica americana que usa como base a aspiração profunda da via biliar após cateterização (confirmada por retorno bilioso) ou por alocação de prótese biliar às cegas e resolução definitiva em um segundo momento. Entretanto, apesar de serem alternativas potenciais, dados da literatura demonstram segurança na realização do mesmo na gestação, apesar de uma metanalise comprovar que técnicas livres de radiação parecem reduzir as taxas de complicações não relacionadas à gravidez, mas não de complicações fetais e relacionadas ao período gestacional.

Os fatores abaixo parecem ser tão importantes quanto o tempo de fluoroscopia:

  • tipo de equipamento utilizado,
  • uso de proteção,
  • posicionamento do paciente e a técnica do endoscopista.

Posicionamento do bisturi elétrico

Cuidados adicionais a serem tomados devem ser com o posicionamento da placa de bisturi elétrico. Vale ressaltar que o líquido amniótico é um ótimo condutor de corrente elétrica, assim tal placa deve ser posicionada preferencialmente acima do nível do abdômen (tórax de preferência) a fim de se evitar condução elétrica no feto. 

Riscos de complicações

Além das complicações inerentes ao próprio procedimento, independente de sua realização no período gestacional, como pancreatite aguda, perfuração intestinal e sangramentos; as gestantes estão sujeitas a vários outros riscos durante os procedimentos endoscópicos, como hipóxia e hipotensão, parto prematuro, trauma e teratogênese.

Os riscos e complicações são pouco claros na literatura devido ao seu reduzido número de estudos na área, entretanto, dados demonstram que as taxas de perfuração, sangramento e infecção não diferem da população em geral submetida à CPRE, bem como a sua taxa de sucesso que gira em torno de 95%. Entretanto, há maior taxa de pancreatite (12% vs 5%), provavelmente pela maior dificuldade do procedimento e menor uso de stents pancreáticos.

Em resumo, diante de uma indicação bem embasada, equipe preparada, materiais adequados e com os cuidados citados acima, o procedimento pode ser realizado com segrança, efiácia e com baixos índices de complicações tanto para a paciente quanto para o feto.

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CPRE em pacientes pediátricos

Referências

  1. Savas N. Gastrointestinal endoscopy in pregnancy. World J Gastroenterol. 2014 Nov 7;20(41):15241-52. doi:10.3748/wjg.v20.i41.15241.
  2. Agcaoglu O, Ozcinar B, Gok AF, Yanar F, Yanar H, Ertekin C, Gunay K. ERCP without radiation during pregnancy in the minimal invasive world. Arch Gynecol Obstet. 2013 Dec;288(6):1275-8. doi: 10.1007/s00404-013-2890-0.
  3. Magno-Pereira V, Moutinho-Ribeiro P, Macedo G. Demystifying endoscopicretrograde cholangiopancreatography (ERCP) during pregnancy. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2017 Dec;219:35-39. doi: 10.1016/j.ejogrb.2017.10.008.
  4. Azab M, Bharadwaj S, Jayaraj M, Hong AS, Solaimani P, Mubder M, Yeom H, Yoo JW, Volk ML. Safety of endoscopic retrograde cholangiopancreatography (ERCP) in pregnancy: A systematic review and meta-analysis. Saudi J Gastroenterol. 2019 Nov-Dec;25(6):341-354. doi: 10.4103/sjg.SJG_92_19. PMID: 31744939; PMCID: PMC6941455.
  5. Konduk BT, Bayraktar O. Efficacy and safety of endoscopic retrograde cholangiopancreatography in pregnancy: A high-volume study with long-term follow-up. Turk J Gastroenterol. 2019 Sep;30(9):811-816. doi: 10.5152/tjg.2019.18799. PMID: 31258133; PMCID: PMC6750819.

Como citar este artigo

Martins S. CPRE em pacientes gestantes. Endoscopia Terapeutica, 2023 vol. 2. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/cpre-em-pacientes-gestantes




CPRE em pacientes pediátricos

A colangiopancreatografia retrograde endoscópica (CPRE) é um dos procedimentos mais desafiadores dentro da endoscopia. Não somente pela dificuldade técnica, mas pela variedade de patologias, variações anatômicas e principalmente pelas complicações graves envolvidas, inclusive óbito.

Dentre os desafios encontrados está a CPRE em pacientes pediátricos. Muitas dúvidas envolvem o tema devido a pouca frequência em que é indicado este procedimento nesta faixa etária.

Ramin Nikman e cols (1). realizaram uma mini revisão da literatura baseada em um caso clínico de colangite desencadeada por coledocolitíase, resolvida por CPRE com sucesso. Comentaremos a seguir as principais peculiaridades da CPRE em criança baseada na revisão desses autores.

A litíase biliar é rara em crianças com prevalência variando de 0,13% a 0,3%, porém a sua prevalência aumenta na adolescência e em crianças com obesidade, podendo chegar a 6,1%. A causa mais frequente são as doenças hemolíticas (20%-30%), outras causas são as anomalias congênitas, obesidade, nutrição parenteral total, cistos de colédoco e prematuridade.

A indicação da CPRE em crianças é menor que no adulto (3.3% e 4% de acordo com Felux e cols. e Lou e cols.) não somente pela pouca frequência das patologias pancreatobiliares, mas também por limitações técnicas que diminuem sua indicação. Uma delas é a limitação do tamanho do aparelho. Os duodenoscópios convencionais só podem ser utilizados em crianças com mais de 10 kg de forma geral, limitando a aplicação desta alternativa terapêutica.

Uma avaliação detalhada com exames de imagem é fundamental para uma indicação correta da CPRE. No caso apresentado neste artigo, foi realizada ultrassonografia do abdome superior, demonstrando uma vesícula hiper distendida com espessamento de sua parede, além de dilatação do hepatocolédoco ocasionada por um cálculo no seu segmento intrapancreático. A colangiorressonância confirmou o diagnóstico e caracterizou uma vesícula biliar localizada à esquerda do ligamento redondo, anomalia rara que pode estar associada a ausência do segmento IV e a má formação das ramificações da veia porta. A vesícula biliar à esquerda do ligamento redondo é uma anomalia rara variando de 0,1% a 1,2%.

Em outro artigo, Fumihiro Terasaki descreve em detalhes estas alterações anatômicas e as classifica, concluindo que nestes casos de anomalia de implantação do ligamento redondo há mudança significativa do volume dos segmentos III e IV do fígado.

Os aparelhos disponíveis para CPRE disponíveis no Brasil são todos terapêuticos com diâmetro da ponta distal maior que 13 mm. A Olympus só fabrica atualmente o modelo TJF-190 e TJF-170. A Fujinon tem os modelos ED-580T e ED-580XT. Nestes casos temos uma limitação significativa de uso, sendo indicados apenas para crianças com peso superior a 10 kg. Felux J. utilizou o duodenoscópio convencional para adultos em crianças com peso superior a 12,5 kg e um pediátrico (Olympus PJF160) para crianças menores (com até 6 meses de idade); já Lou utilizando um duodenoscópio Olympus JF240, com 11,5 mm, realizou uma CPRE com sucesso em lactente de 3 meses (peso de 7,5 kg). Estes aparelhos não estão disponíveis comercialmente no Brasil.

Em resumo a CPRE em crianças é um procedimento de escolha para tratamento de patologias biliares, principalmente a coledocolitíase, porém com limitação de tamanho dos aparelhos disponíveis. A avaliação prévia através da colangiorressonância é importante, a fim de evitar uma CPRE puramente diagnóstica e de antever possíveis anomalias anatômicas.

Referências

  1. Stone removal in a 5-year-old child with extrahepatic biliary obstruction using ERCP: A case report and a mini-review. Niknam R, Mortazavi SMM, Jahromi MG, Davoodi M, Soheili M, Ataollahi M, Moshfeghinia R. Clin Case Rep. 2023 Jul 27;11(8): e7620. doi: 10.1002/ccr3.7620. PMID: 37520769; PMCID: PMC10374985.
  2. Felux J, Sturm E, Busch A, Zerabruck E, Graepler F, Stüker D, Manger A, Kirschner HJ, Blumenstock G, Malek NP, Goetz M. ERCP in infants, children and adolescents is feasible and safe: results from a tertiary care center. United European Gastroenterol J. 2017 Nov;5(7):1024-1029. doi: 10.1177/2050640616687868. Epub 2017 Jan 11. PMID: 29163969; PMCID: PMC5676540.
  3. Terasaki F, Yamamoto Y, Sugiura T, Okamura Y, Ito T, Ashida R, Ohgi K, Aramaki T, Uesaka K. Analysis of right-sided ligamentum teres: The novel anatomical findings and classification. J Hepatobiliary Pancreat Sci. 2021 Feb;28(2):221-230. doi: 10.1002/jhbp.856. Epub 2020 Nov 17. PMID: 33135376.
  4. Lou Q, Sun J, Zhang X, Shen H. Successful Therapeutic ERCP in a 99-Day-Old Child with Common Bile Duct Stones: A Case Report and Discussions on the Particularities of the ERCP in Children. Front Pediatr. 2020 Jul 28;8:435. doi: 10.3389/fped.2020.00435. PMID: 32850548; PMCID: PMC7399065.

Como citar este artigo

Ide E. CPRE em pacientes pediatricos Endoscopia Terapeutica 2023, vol. 2. Disponível em: 
endoscopiaterapeutica.net/pt/cpre-em-pacientes-pediatricos-2/




Colangite por IgG4 como diagnóstico diferencial do colangiocarcinoma hilar

Relato de caso

Paciente de 50 anos de idade, obesa e diabética, iniciou quadro de mal estar, astenia e dor abdominal em hipocôndrio direito, sem perda ponderal, com piora progressiva ao longo de cerca de 40 dias. Na última semana a paciente evoluiu com síndrome colestática, com icterícia, colúria e acolia fecal e procurou pronto atendimento. Na investigação inicial foi verificada elevação de transaminases e enzimas canaliculares, além de hiperbilirrubinemia (15 mg/dL) às custas de bilirrubina direta.

Os exames de imagem (tomografia e ressonância magnética com colangiografia) evidenciaram dilatação de vias biliares intra-hepáticas (sobretudo à esquerda) com presença de espessamento na confluências dos ductos hepáticos, associada a estenose desta região, favorecendo a hipótese de um colangiocarcinoma hilar tipo IIIA de Bismuth-Corlette. Não havia sinais de metástases linfonodais ou à distância, nem invasões vasculares ou de outros órgãos, e a dosagem dos marcadores tumorais (CEA e Ca19.9) foram normais.

A equipe de cirurgia optou por drenagem transparieto-hepática para alívio da colestase com posterior programação cirúrgica de hepatectomia esquerda. Foi colocado um dreno transparietohepático de 12 fr no ramo posterior do hepático direito, com a extremidade distal internalizado para a luz duodenal (transpapilar), com alívio da icterícia.

A paciente foi então encaminhada para realização de procedimento endoscópico para diagnóstico histopatológico da lesão.

Ecoendoscopia

Primeiramente fizemos uma ecoendoscopia com punção da lesão do colédoco, com boa obtenção de material (foto).

Foto 1 – Imagem ecográfica da lesão

Foto 2 – punção ecoguiada

O resultado da punção evidenciou achados compatíveis com processo inflamatório agudo, acentuado, possivelmente com formação de abscesso, com abundante infiltrado neutrofílico, notando-se de permeio, ocasionais segmentos epiteliais mostrando alterações reativas evidenciadas pelo aumento da basofilia citoplasmática.

A paciente apresentou piora clínica evoluindo com quadro de febre, com leve elevação de bilirrubinas e leucocitose, sendo fechado diagnóstico de colangite e introduzida antibioticoterapia. 

Diante da piora clínica e da ausência do diagnóstico com punção ecoguiada foi optado pela realização de procedimento de CPRE com colangioscopia com Spyglass e biópsias da lesão.

Colangioscopia

Com o procedimento foi identificada, em topografia do colédoco proximal, presença de lesão intraductal elevada, de aspecto infiltrativo e inflamatório, com áreas de aspecto necrótico e presença de coágulos em sua superfície, que se estendia desde o colédoco proximal até próximo do ramo posterior do hepático direito, envolvendo o tronco do hepático esquerdo. Foram realizadas múltiplas biópsias com pinça SpyBite Max ®. Foi realizada também remoção do dreno transparietohepático e colocação de duas próteses biliares plásticas de 10 cm (10 Fr à direita e 8,5 Fr à esquerda), observando-se saída de grande quantidade de secreção purulenta após drenagem do hepático esquerdo.

Foto 3 – colangiografia demonstrando a estenose hilar

Foto 4 – colangiografia demonstrando o posicionamento do SpyGlass DS ®.

Foto 5 – aspecto final após colocação de próteses.

vídeo da colangioscopia

Anatomopatológico

A avaliação anatomopatológica das biópsias guiadas por colangioscopia demonstraram:

  • áreas de necrose e tecido viável com alterações reativas acentuadas do revestimento epitelial e estroma;
  • no estroma, edema, congestão vascular, proliferação de fibroblastos e infiltrado inflamatório misto acentuado, sem reação desmoplásica;
  • revestimento epitelial aparece hiperplásico e reativo, recobrindo a superfície e organizado em túbulos regulares, com formação de segmentos serrilhados ou eventualmente com aspecto degenerativo em túbulos com abscesso intraluminal e necrose do tecido adjacente;
  • epitélio viável apresenta atenuação celular e basofilia do citoplasma, mantendo polarização basal do núcleo, sem atipia nuclear.

O material foi enviado para análise imuno-histoquímica que evidenciou trechos de ulceração com crosta fibrino-leucocitária, intenso infiltrado inflamatório misto com plasmócitos, linfócitos e leucócitos polimorfonucleados, neoformação vascular e epitélio glandular adjacente com alterações reparativas, com o painel de marcadores demonstrado na foto 6.

Como comentários adicionais foi registrado o seguinte:

  • ausência de neoplasia nesta amostra;
  • observa-se borda de lesão ulcerada com importante infiltrado inflamatório misto, apresentando considerável componente plasmocitário;
  • observam-se áreas que demonstram subset de plasmócitos IgG4 positivos com mais de 10 células por campo microscópico de grande aumento;
  • nesta amostra não se observam outros fatores para diagnóstico morfológico de colangite por IgG4 como fibrose e alterações vasculares; neste caso, para firmar este diagnóstico é fundamental a correlação com dados clínicos, exames laboratoriais (como dosagem sérica de IgG4) e exames de imagem para definição diagnóstica. 

Foto 6 – tabela de marcadores da imuno-histoquímica.

Após o procedimento a paciente apresentou importante melhora clínica da dor e do quadro infeccioso.

A dosagem do IgG4 sérico foi negativa e, embora os achados da biópsia não apresentarem fibrose, o gastroenterologista assistente da paciente ficou inclinado a realizar um teste terapêutico com corticoterapia.

Discussão

A colangite associada ao IgG4 (CAI) é uma das manifestações de uma doença sistêmica autoimune que se caracteriza histologicamente com um infiltrado linfoplasmocítico com presença do IgG4.

As manifestações desta doença são amplas, podendo incluir a pancreatite autoimune do tipo 1, bem como nefrite tubulointersticial, sialoadenite, fibrose retroperitoneal e colangite esclerosante.

O diagnóstico depende de achados clínicos suspeitos, em conjunto com alterações em exames de imagem, dosagem sérica de IgG4 elevada e/ou presença de células positivas para IgG4 nas biópsias.

O espectro da colangite associada ao IgG4 envolve, em geral, estenoses biliareas intra e extra-hepáticas, e boa parte dos pacientes apresenta concomitantemente pancreatite autoimune do tipo 1 e níveis séricos elevados de IgG4. O uso empírico de corticoterapia pode ajudar a confirmar o diagnóstico se houver uma suspeição da doença. Alguns pacientes acabam sendo submetidos a ressecção cirúrgica por diagnóstico presumido de colangiocarcinoma.

Estudos descrevem uma alta associação entre a CAI e sintomas de icterícia obstrutiva, pancreatite autoimune, e aumento dos níveis séricos de IgG4 (1). A importância clínica da biópsia intraductal para o diagnóstico da CAI sempre foi visto como algo controverso antes da era da colangioscopia, com uma positividade para infiltrado linfoproliferativo para IgG4 (definido como mais do que 10 células positivas para IgG4 por campo de grande aumento) variando entre 18 e 88% e uma especificidade que se aproxima de 100% (1, 2-4). Até 10% dos pacientes com diagnóstico presumido de colangiocarcinoma e ausência de evidência de CAI que foram submetidos a ressecção em centros com experiência em cirurgia hepatobiliar são diagnosticados como doença hepatobiliar não maligna após a análise do espécime ressecado (5).

O tratamento empírico com corticoide pode ser utilizado para distinguir a CAI de outras causas de estenose biliar, porém realizado de forma seletiva e com acompanhamento próximo dos pacientes.

A colangite associada ao IgG4 pode mimetizar o colangiocarcinoma e boa parte destes pacientes apresentam elevados níveis de IgG4 sérico e segmentos longos de estenose biliar. Entretanto, em casos de obstrução hilar com dosagem sérica de IgG4 negativa, sem critérios definitivos para colangiocarcinoma a CAI deve ser considerada e a realização de biópsias guiadas por colangioscopia é atualmente o melhor método para obtenção de material para análise histopatológica para definição diagnóstica.

No caso apresentado, apesar da presença de mais do que 10 células positivas para IgG4 por campo de grande aumento na biópsia, a ausência de fibrose na espécime, bem como de outras manifestações sistêmicas associadas a doença por IgG4, gerou dúvida diagnóstica na equipe que acompanha a paciente. Nestes casos o tratamento empírico com corticoterapia pode ter grande importância propedêutica e terapêutica, devendo ser realizada em momento favorável, com o fator da colangite supurativa controlado e com uma boa drenagem biliar garantida.

Referências

  1. Ghazale A, Chari ST, Zhang L, et al. Immunoglobulin G4-associated cholangitis: clinical profile and response to therapy. Gastroenterology 2008;134:706-715.
  2. Naitoh I, Nakazawa T, Ohara H, et al. Endoscopic transpapillary intraductal ultrasonography and biopsy in the diagnosis of IgG4-related sclerosing cholangitis. J Gastroenterol 2009;44:1147-1155.
  3. Kawakami H, Zen Y, Kuwatani M, et al. IgG4-related sclerosing cholangitis and autoimmune pancreatitis: histological assessment of biopsies from Vater’s ampulla and the bile duct. J Gastroenterol Hepatol 2010;25:1648-1655.
  4. Zen Y, Nakanuma Y. IgG4 Cholangiopathy. Int J Hepatol 2012; 2012:472376
  5. Baskin-Bey ES, Devarbhavi HC, Nagorney DM, et al. Idiopathic benign biliary strictures in surgically resected patients with presumed cholangiocarcinoma. HPB (Oxford) 2005;7:283-288
  6. Zaydfudim VM, Wang AY, de Lange EE, Zhao Z, Moskaluk CA, Bauer TW, Adams RB. IgG4-Associated Cholangitis Can Mimic Hilar Cholangiocarcinoma. Gut Liver. 2015 Jul;9(4):556-60.

Como citar este artigo

Mendoça EQ. Colangite por IgG4 como diagnóstico diferencial do colangiocarcinoma hilar. Endoscopia Terapeutica 2023, Vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/colangite-por-igg4-como-diagnostico-diferencial-do-colangiocarcinoma-hilar/




Litotripsia Intraductal na Colangiopancreatografia Retrógrada Endoscópica

Com o advento da colangioscopia digital de operador único em 2015 (SpyGlass™), superando a dificuldade técnica dos antigos aparelhos “mother-baby” que dependiam de dois operadores, diversas foram as utilidades desta nova tecnologia na colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE): avaliação intraductal de estenoses indeterminadas das vias biliares, direcionar a drenagem de segmentos acometidos por estenose, litotripsia intraductal de coledocolitíase e hepatolitíase.

Os cálculos complexos possuem preditores para falha de remoção das vias biliares pelo método convencional, sendo: 

  • cálculos maiores que 1,5 cm;
  • cálculos múltiplos (mais de 10); 
  • cálculos com formatos em barril e longo;
  • cálculos intrahepáticos; 
  • anormalidades de colédoco distal (oblíquos, estreitos, angulados);
  • papila duodenal peridiverticular;
  • desproporção de tamanho do cálculo vs colédoco; 
  • associados a estenoses benignas e malignas;
  • alteração pós-cirúrgica do trato gastrointestinal alto

Seguindo os guidelines europeu e americano da ESGE e ASGE, após a falha de remoção convencional na CPRE, opta-se por dilatação balonada de grandes proporções (DBGP) da papila, que é definida de 12 a 20 mm, limitando-se até o diâmetro do colédoco distal, precedida de papilotomia prévia ou tática (saiba mais nesse post). Havendo a falha de extração após DBGP, os guidelines sugerem a litotripsia, que podem ser:

  • mecânica através do basket reforçado “through the scope” (convencional) ou “out the scope” (também conhecido como litotriptor de emergência);
  • intraductal com pulso eletro-hidráulico ou a laser através do uso de colangioscópio.

Caso Clínico

No vídeo a seguir, temos o caso de uma mulher jovem com coledocolitíase de 10 mm, com duas tentativas prévias de CPRE sem sucesso na remoção de cálculo devido a desproporção cálculo vs colédoco distal. Mesmo com papilotomia ampla prévia e dilatação balonada CRE até 18 mm, sem perda de cintura radiológica por fibrose de esfíncter, houve falha na apreensão do cálculo com basket trapezoid devido a impactação do cálculo em via biliar.

Neste caso, a abordagem cirúrgica seria difícil especificamente devido ao colédoco pouco dilatado, sendo optado por intervenção com colangioscopia (Spyglass) + litotripsia endoscópica a laser intraductal. Como resultado, a paciente evoluiu com alta no primeiro pós-operatório com resolução da retirada do cálculo, assintomática, podendo ser submetida a colecistectomia em seguida.

Discussão

Um estudo multicêntrico randomizado publicado na Endoscopy de Angsuwatcharakon et al. em 2019 comparou esses dois métodos, que permitia o crossover entre a litotripsia mecânica com basket de 30 mm (LithoCrush V, Olympus) e a litotripsia a laser (SpyGlass DS, Boston Scientific, com Dornier Medilas H Solvo, Wessling), chegando aos seguintes resultados:

  • 476 pacientes pós-CPRE, com 32 falhas pós-DBGP, sendo randomizados 16 em cada grupo;
  • Média do tamanho dos cálculos: 19.5 mm (5.63) no grupo laser vs 17.6 mm (3.37) no grupo litotripsia mecânica;
  • Remoção completa na primeira tentativa foi maior na litotripsia laser vs mecânica (100% vs 63%, p < 0,01);
  • Tempo de procedimento total foi menor no laser vs mecânica (83 vs. 66 min; P = 0.23);
  • Tempo de remoção foi menor no laser vs mecânica (53 vs. 39 min; P = 0.26);
  • Tempo de fluoroscopia e radiação menor no laser vs mecânica (21 vs. 11 minutes; P < 0.01 e (40 745 vs. 20989 mGycm2; P = 0.04);
  • Efeitos adversos e tempo de internação foram semelhantes entre os grupos.

As limitações do estudo estão na amostra relativamente baixa, que tange às indicações restritas da litotripsia após falha da CPRE e DBGP, bem como na avaliação de apenas a metodologia a laser, sem comparar a eletro-hidráulica, apesar da equivalência de efetividade dos dois métodos.

Embora os limites impostos pelo alto custo do dispositivo, com necessidade de expertise do uso de colangioscopia, e baixa disponibilidade desta tecnologia nos centros de endoscopia, Deprez et al. avaliou maior economia e menor custo no grupo da litotripsia intraductal devido a maior taxa de sucesso e menor número de CPREs no tratamento da coledocolitíase complexa. Salvo limitações do custo de saúde, país e moeda diferente do estudo, as justificativas de menor custo-efetividade são válidos.

Ademais, com o desenvolvimento de outras marcas de colangioscópios e a maior abrangência desta tecnologia, espera-se que esse método diagnóstico e terapêutico se popularize e se torne um novo arsenal ao endoscopista.

Referências

  1. Angsuwatcharakon P, Kulpatcharapong S, Ridtitid W, et al. Digital cholangioscopy-guided laser versus mechanical lithotripsy for large bile duct stone removal after failed papillary large-balloon dilation: a randomized study. Endoscopy. 2019 Nov;51(11):1066-1073. doi: 10.1055/a-0848-8373. Epub 2019 Feb 20. PMID: 30786315.
  2. ASGE Standards of Practice Committee; Buxbaum JL, Abbas Fehmi SM, Sultan S, et al. ASGE guideline on the role of endoscopy in the evaluation and management of choledocholithiasis. Gastrointest Endosc. 2019 Jun;89(6):1075-1105.e15. doi: 10.1016/j.gie.2018.10.001. Epub 2019 Apr 9. PMID: 30979521; PMCID: PMC8594622.
  3. Manes G, Paspatis G, Aabakken L, et al. Endoscopic management of common bile duct stones: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) guideline. Endoscopy. 2019 May;51(5):472-491. doi: 10.1055/a-0862-0346. Epub 2019 Apr 3. PMID: 30943551.
  4. Deprez PH, Garces Duran R, Moreels T, et al. The economic impact of using single-operator cholangioscopy for the treatment of difficult bile duct stones and diagnosis of indeterminate bile duct strictures. Endoscopy 2018;50:109-18.

Como citar este artigo

Kum AST, Ide E, Nunes BCM. Litotripsia Intraductal na Colangiopancreatografia Retrógrada Endoscópica. Disponível em Endoscopia Terapeutica 2023, vol. 1. https://endoscopiaterapeutica.net/pt/litotripsia-intraductal-na-colangiopancreatografia-retrograda-endoscopica/




Estratégias de prevenção de pancreatite pós CPRE: quais as recomendações mais atuais?

Sabemos que a CPRE permite o tratamento minimamente invasivo de diversas condições pancreatobiliares com morbidade substancialmente menor do que as abordagens cirúrgicas tradicionais. No entanto, o principal evento adverso inerente ao procedimento, e também um dos mais temidos, é a pancreatite pós-CPRE (PEP). Variados artigos apontam para um risco de PEP em até 15% dos procedimentos de alto risco. Embora normalmente leve, a PEP pode se apresentar menos frequentemente de forma grave, estando associada à mortalidade de 1 em 500 pacientes e a um significativo aumento de custos de internação hospitalar. 

A literatura tem endereçado nos últimos anos diversos estudos com a finalidade de reduzir o risco de PEP e nesse texto trazemos de forma resumida os dados mais relevantes da última publicação: “American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on post-ERCP pancreatitis prevention strategies: summary and recommendations” publicado em fevereiro de 2023.

Resumo das recomendações

O guideline ainda apontou para algumas lacunas de conhecimento que precisam ser mais exploradas na definição de cuidados e prevenção de PEP. Entre os temas, podemos citar principalmente o papel da estratégia preventiva combinada com uso de stents pancreáticos, hidratação e indometacina. Faltam evidências mais robustas para indicar o uso sistematizado de tais estratégias, mas existem dados apontando para um potencial benefício, por exemplo, do uso de AINE associado a hidratação vigorosa na redução da gravidade da PEP. Novos estudos são necessários para esse e outros esclarecimentos nos cuidados preventivos da PEP, mas fica evidente o já importante ganho de possibilidades e evidências nos últimos anos, trazendo ainda mais segurança a um cenário sempre desafiador para quem lida cotidianamente com CPRE. E vocês, como tem atuado na rotina?  

Referência

Buxbaum JL, Freeman M, Amateau SK, Chalhoub JM, Coelho-Prabhu N, Desai M, Elhanafi SE, Forbes N, Fujii-Lau LL, Kohli DR, Kwon RS, Machicado JD, Marya NB, Pawa S, Ruan WH, Sheth SG, Thiruvengadam NR, Thosani NC, Qumseya BJ; (ASGE Standards of Practice Committee Chair). American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on post-ERCP pancreatitis prevention strategies: summary and recommendations. Gastrointest Endosc. 2023 Feb;97(2):153-162. doi: 10.1016/j.gie.2022.10.005. Epub 2022 Dec 12. PMID: 36517310.




Neoplasia periampular sem lesão visível

Paciente do sexo feminino, 53 anos, sem comorbidades prévias, iniciou quadro de icterícia, febre e aumento de enzimas caniculares.

  • Realizou ressonância magnética (RNM) abdominal que identificou sinais de colangite com dilatação da VB intra e extra-hepáticas.
  • Submetida a CPRE em serviço externo com evidência de “papilite” e microcálculos no coledoco. Realizado fistulotomia, dilatação de papila, varredura com balão extrator e passagem de prótese plástica. Biopsiado a papila que resultou em amostra inconclusiva.

Após um mês, apresentou novamente quadro de colangite e a nova RNM de abdome apresentava as mesmas alterações, agora com a presença de prótese biliar.

  • Realizada ecoendoscopia que mostrou dilatação do colédoco (16 mm) e ducto principal pancreático (4,5 mm), com interrupção dos mesmos na topografia da papila duodenal, sem nítida lesão perceptível na ecoendoscopia. Efetuada punção ecoguiada com agulha fina. 
  • Em nova CPRE, realizada dilatação, biópsias de papila e passagem de nova prótese plástica.

Resultado de anatomopatológico da punção ecoguiada e das biópsias por CPRE: adenocarcinoma moderadamente diferenciado de papila duodenal, superficialmente invasivo e ulcerado.

Paciente foi submetida a gastroduodenopancreatectomia com linfadenectomia regional. Estadiamento revelou comprometimento linfático, vascular e neural pT3b pN2. O tratamento adjuvante com quimioterapia foi indicado.

Vídeo

Comentários:

Esse caso ilustra bem a importância de insistir na elucidação diagnóstica dos tumores periampulares. Apesar da imagem endoscópica e da RNM não demonstrarem lesão nítida na papila duonenal maior, a suspeita se manteve devido a grande dilatação do colédoco (16mm) associado a icterícia, sem uma causa muito convincente (apenas microcálculos na CPRE anterior). Isso motivou a realização da Ecoendoscopia concomitante para melhor investigar a região, a qual demonstrou dilatação do duto pancreático principal que não havia sido evidenciado na RNM, o que aumentou ainda mais a suspeita de uma lesão periampular. Nesses casos, a punção guiada por ecoendoscopia justamente no local onde ocorre a interrupção dos dutos aumenta a sensibilidade diagnóstica.

O adenocarcinoma de papila duodenal faz parte do grupo de tumores periampulares que surgem nas proximidades da ampola de Vater. A incidência é maior na população com síndromes de Polipose Hereditária. O quadro clínico mais comum é de síndrome colestática obstrutiva associado a dor abdominal, emagrecimento e anemia. Laboratorialmente evidencia-se aumento de bilirrubinas diretas e enzimas caniculares. A avaliação diagnóstica das vias biliares se inicia com USG de abdome, com pouca sensibilidade para visualizar o tumor. A CPRE é indicada para o diagnóstico, permitindo a identificação do tumor, biópsia e descompressão biliar. A ecoendoscopia apresenta importância para detecção e punção de tumores pequenos como também no estadiamento. O tratamento padrão envolve a gastroduodenopancreatectomia e frequentemente associada à quimioterapia adjuvante e radioterapia.

Por ser um diagnóstico raro e de maior complexidade, é fundamental ressaltá-lo precocemente diante de um quadro de colestase obstrutiva, com melhora do prognóstico quando detectado inicialmente.

Para saber mais sobre este tema, acesse o site Gastropedia clicando aqui!

Como citar esse artigo?

Cardoso ACFL, Martins BC. Neoplasia periampular sem lesão visível. Endoscopia Terapêutica 2023, vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/casosclinicos/neoplasia-periampular-sem-lesao-visivel/




Estenose biliar indeterminada – importantes conceitos que você precisa conhecer

A apresentação clínica das estenoses biliares é ampla, variando de imagens incidentais e achados laboratoriais a sintomas de icterícia, dor abdominal, prurido e colangite, logo, uma história clínica detalhada pode fornecer importantes informações acerca da sua etiologia.

Considera-se estenose biliar um estreitamento da árvore biliar que pode ser causado por uma miríade de etiologias, algumas benignas, outras conferindo risco de vida. Existem três classes de estenoses biliares: benignas, malignas e indeterminadas. Infelizmente, apenas a minoria delas (15% a 24%) é benigna. A diferenciação entre benignas e malignas requer uma avaliação diagnóstica complexa, sendo a Endoscopia uma ferramenta imprescindível, especialmente por permitir amostragem de tecido.

Estenose Biliar Maligna:

  • A causa mais comum de estenose maligna do ducto biliar é o adenocarcinoma de pâncreas. Como o câncer pancreático é frequentemente diagnosticado em estágio avançado, 70% dos pacientes já apresentam estenose no momento do diagnóstico.
  • A segunda causa mais comum é o colangiocarcinoma, um tumor primário do próprio ducto biliar.

Quanto a topografia das estenoses no ducto biliar:

  • Distais – a neoplasia maligna do pâncreas deve sempre ser a consideração mais importante, independentemente de existir massa identificável em imagens transversais ou não.
  • Proximais – a suspeita de colangiocarcinoma deve ser a mais aventada.

Estenose Biliar Benigna:

  • A causa mais comum é lesão iatrogênica, sobretudo pós-colecistectomia ou pós-transplante hepático.
  • Várias condições inflamatórias também podem resultar em estenoses, principalmente a Colangite Esclerosante Primária e a Colangite Esclerosante relacionada a IgG4. No entanto, como a maioria das estenoses biliares se revela maligna ao cabo da investigação, é sempre essencial descartar malignidade nesses pacientes.

Estenose Biliar Indeterminada (EBI):

  • Conceito: na maioria das publicações postula-se que o termo se refere a uma estenose cuja etiologia não foi estabelecida por radiologia, seja Tomografia Computadorizada ou Ressonância Magnética (pelo fato de não possuir uma massa óbvia em imagens transversais) E a CPRE com biópsia transpapilar (guiada por fluoroscopia) e/ou escovado citológico também falhou em elucidar.
  • Observem que destacamos o “E” pois, apesar de ser o entendimento majoritário, há divergências no sentido de considerar que estas duas etapas seriam aditivas. Ou seja, a aparência imaginológica não conclusiva de malignidade conferiria o status de indeterminada, dispensando a realização da CPRE, visto que a acurácia diagnóstica dos procedimentos descritos acima não é boa.

  • É fato, contudo, que a CPRE com biópsia transpapilar (guiada por fluoroscopia) e/ou escovado continua sendo o procedimento padrão em muitos serviços nesses casos, sobretudo pela indisponibilidade da Colangioscopia. Porém, diante dos resultados atualmente publicados e muito promissores com as biópsias diretas guiadas pela Colangioscopia, é possível que haja mudança nesta sequência propedêutica.

EBI continuam a apresentar um desafio diagnóstico para os médicos e representam 20% de todas as estenoses biliares após a avaliação inicial. Muito embora a maioria das estenoses biliares seja considerada maligna, até 20% das peças cirúrgicas são descobertas como benignas, desta forma, o diagnóstico incorreto pode levar a cirurgias desnecessárias ou atrasos no tratamento (quando efetivamente malignas).

Um breve panorama das tecnologias mais acessíveis que podem ajudar a estabelecer a etiologia das estenoses indeterminadas

CPRE com escovado citológico e/ou biópsia transpapilar guiada por fluoroscopia:

  • continua sendo a abordagem inicial para avaliação, no entanto o rendimento diagnóstico é muitas vezes decepcionante
  • Navaneethan et al. realizaram uma metanálise demonstrando que a sensibilidade do escovado citológico é de 45%, com uma especificidade de 99% para o diagnóstico de estenoses malignas, enquanto a sensibilidade da biópsia foi de 48,1% e a sensibilidade foi de 99,2%. A combinação dos dois métodos aumenta a sensibilidade apenas para 59,4%. Da mesma forma, estudos prospectivos recentes mostraram uma sensibilidade de 46-56% e especificidade de 100% com biópsias e escovado associados. Isto sugere que tanto o escovado quanto a biópsia resultam em precisão semelhante, e a combinação das estratégias aumenta apenas modestamente a sensibilidade.

Colangioscopia:

  • O sistema de Colangioscopia direta foi introduzido em 2007, sendo desenvolvido para exame com operador único. Atualmente, existem colangioscópios com melhor resolução de imagem, maior nitidez, melhor manuseabilidade e versatilidade no uso de acessórios.
  • Um recente estudo controlado randomizado (Gerges et al.) de 57 pacientes comparou o uso da colangioscopia digital de operador único com biópsias diretas à CPRE com escovado em pacientes com EBI. A sensibilidade da Colangioscopia foi de 68,2% vs. 21,4% para CPRE com escovado (p < 0,01). Da mesma forma, uma metanálise de Navaneethan et al. de 10 estudos (456 pacientes) calculou uma sensibilidade combinada de 60,1% e especificidade de 98% com biópsias guiadas por Colangioscopia.

Ultrassonografia Endoscópica (USE)

  • Ao contrário das outras modalidades endoscópicas, a USE também oferece a oportunidade de avaliação do parênquima pancreático e da linfadenopatia regional para potencial FNA. Ela tem sido frequentemente utilizada para a avaliação de doenças da árvore biliar e suas estruturas circundantes.
  • Em duas revisões sistemáticas, a sensibilidade da aspiração com agulha fina guiada por USE após uma CPRE não diagnóstica foi de 77% e 89%, com especificidade de 100%. Uma metanálise de Chiang et al. de 10 estudos (1.162 pacientes) mostrou um incremento de 14% após uma CPRE não diagnóstica. O rendimento diagnóstico USE depende em parte da localização da estenose. Uma meta-análise de 2016 de 13 estudos relatou uma sensibilidade combinada de 83% para aspiração por agulha fina de estenoses biliares distais em comparação com a sensibilidade combinada de 76% para estenoses biliares proximais.

Apesar da tecnologia atual ajudar na definição da etiologia das EBI em muitos casos, ainda existem alguns outros considerados “negativos” durante a investigação, mas que persistem com suspeita de malignidade e terminam por realizar cirurgia. Assim, espera-se das novas tecnologias não somente alta precisão diagnóstica, como também alto valor preditivo negativo, justamente a fim de  evitar cirurgias desnecessárias. Isto é especialmente válido para a Colangioscopia, cujos critérios endoscópicos ainda não estão totalmente estabelecidos e há falta de consenso sobre terminologia e descrição dos achados, razão pela qual a histologia continua sendo o padrão-ouro para o diagnóstico.

Referências Bibliográficas

  1. Nichol S. Martinez et al. Determining the Indeterminate Biliary Stricture: Cholangioscopy and Beyond. Current Gastroenterology Reports (2020) 22:58.
  2. Robert Dorrell et al. The Diagnostic Dilemma of Malignant Biliary Strictures. Diagnostics 2020, 10, 337.
  3. Chencheng Xie et al. Indeterminate biliary strictures: a simplified approach. Expert Review Of Gastroenterology & Hepatology, 2018.
  4. Petko Karagyozov et al. Role of digital single-operator cholangioscopy in the diagnosis and treatment of biliary disorders. World J Gastrointest Endosc 2019 January 16; 11(1): 31-40. DOI: 10.4253/wjge.v11.i1.31.

Como citar esse artigo

Brasil, G. Estenose biliar indeterminada – importantes conceitos que você precisa conhecer. Endoscopia Terapêutica 2022, vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/estenose-biliar-indeterminada-importantes-conceitos-que-voce-precisa-conhecer




Qual melhor forma de sedar o paciente para CPRE: anestesia geral ou sedação profunda sem intubação?

Os eventos adversos mais comuns na CPRE estão relacionados a sedação. O tipo de sedação utilizado nas CPREs varia ao redor do mundo e inclui desde sedação realizada pelo próprio endoscopista à anestesia assistida pelo anestesiologista, que pode ser com ou sem intubação orotraqueal (IOT). Poucos estudos, no entanto, compararam os efeitos adversos relacionados a sedação profunda monitorizada pelo anestesista sem IOT com a anestesia geral sob IOT.

Um único estudo randomizado sobre esse tema foi realizado para pacientes de alto risco para sedação e concluiu que a anestesia geral estava associada a significativamente menos efeitos adversos e que não comprometeu o tempo da CPRE ou a taxa de sucesso quando comparada a sedação profunda.

Hoje discutiremos um artigo intitulado “Randomized trial comparing general anesthesia with anesthesiologist administered deep sedation for ERCP in average-risk patients”, onde os autores conduziram um estudo randomizado, em um hospital terciário de referência em CPRE na Arábia Saudita, com o objetivo de comparar a segurança e a eficácia da sedação profunda assistida pelo anestesiologista com a anestesia geral em pacientes de médio risco.

Métodos:

Todos os pacientes emaiores de 18 anos com ASA menor ou igual a III eram elegíveis para o estudo. Foram excluídos pacientes que precisaram de CPRE de emergência, ASA IV ou V, que tinham anatomia alterada por cirurgia prévia, gestantes, suspeita de IOT difícil pela escala de Mallampati, alérgicos a alguma das medicações anestésicas usadas no estudo para sedação ou não eram aptos a assinar o termo de consentimento.

Os pacientes foram randomizados (1:1) e anestesiologista e endoscopista foram informados no momento do procedimento a que grupo o paciente pertencia.

Para sedação profunda sem IOT foi utilizado propofol em bolus seguido de infusão contínua. Na anestesia geral foram usados cisatracurio como relaxante muscular e propofol para indução. A anestesia profunda foi mantida utilizando anestésicos inalatórios, além de fentanil e outras drogas a critério do anestesiologista.

Os procedimentos foram realizados em decúbito ventral e todos os pacientes foram encaminhados para sala de recuperação pós-anestésica e mantidos sob monitorização contínua sob supervisão do anestesiologista até estarem aptos a alta.

O desfecho primário foi a proporção de pacientes de cada grupo que desenvolveu os seguintes efeitos adversos relacionados a sedação:

  • Hipotensão, quando a PAS caiu abaixo de 25% da PAS basal, com necessidade de droga vasoativa;
  • Arritmia cardíaca: bradicardia < 50 bpm ou taquicardia > 120 bpm, com necessidade de tratamento;
  • Hipóxia, quando a saturação caiu abaixo de 90% em qualquer período de tempo;
  • Hipercapnia, quando o CO2 aumentou mais de 25% em relação a linha de base;
  • Apnéia, quando a atividade respiratória cessou por 10 segundos via capnografia;
  • Ou qualquer interrupção ou suspensão do procedimento devido à sedação.

Os desfechos secundários foram o tempo de indução da sedação, tempo do procedimento, tempo de recuperação, incidência de sucesso na CPRE e incidência de complicações relacionadas a CPRE (sangramento, perfuração e pancreatite).

Resultados

Duzentos e quatro pacientes foram randomizados: 107 no grupo anestesia geral e 97 no grupo sedação profunda sem IOT. Um paciente do grupo da sedação foi retirado por apresentar arritmia após a randomização e antes da administração de qualquer sedativo. Não houve diferença entre os grupos com relação aos dados demográficos, comorbidades e indicação da CPRE.

Com relação ao desfecho primário, 44 pacientes tiveram efeitos adversos relacionados a sedação, que foram significativamente maiores no grupo sedação profunda sem IOT (34/96 – 35%) que no grupo anestesia geral (10/107 – 9%),  p<0,001.

Trinta e quatro pacientes do grupo sedação sem IOT tiveram 50 efeitos adversos, portanto alguns pacientes apresentaram mais que um efeito. A maioria desses efeitos resultou na interrupção temporária da CPRE (28/50 – 56%), principalmente pela necessidade de manipulação da via aérea (2 deles necessitando de IOT e conversão para anestesia geral) porém os procedimentos foram concluídos. Não houve necessidade dessa interrupção temporária no grupo da anestesia geral.

Exceto pelo tempo de indução que foi significativamente maior no grupo da anestesia geral (p<0,001), a duração da CPRE e o tempo de recuperação foi similar em ambos os grupos. Houve 02 sangramentos e 01 perfuração no grupo sedação sem IOT e não houve complicação relacionada a CPRE no grupo IOT.

Para identificar os fatores preditores dos efeitos adversos, foi feita análise univariada. Entretanto, nenhuma das variáveis incluindo gênero, idade, ASA, IMC, comorbidades, escala de Mallampati, indicação do procedimento, tempo do procedimento ou uso do fentanil foi significativamente associada a efeitos adversos.

Na regressão logística multivariada usando as variáveis mencionadas acima, o tempo do procedimento foi significativamente associado com efeitos adversos (OR 1,016; p= 0,026). Após remover as interrupções do procedimento e focar apenas nos eventos cardiorrespiratórios, o tempo do procedimento não foi mais significativo no modelo multivariado.

Discussão

Esse estudo randomizado mostrou que, para pacientes de médio risco que serão submetidos a CPRE, a anestesia geral está associada a significativamente menor risco de efeitos adversos relacionados a sedação quando comparada à sedação profunda sem IOT (9% x 35%, respectivamente; p< 0,001)

O tempo do procedimento foi um preditor independente para efeitos adversos. Porém, a associação entre duração do procedimento e efeitos adversos é complicada. A complexidade do procedimento, a dificuldade na canulação e o tipo de intervenção terapêutica prolongam a CPRE, o que potencialmente agrava os efeitos adversos. Por outro lado, os efeitos adversos e a necessidade de resolvê-los podem prolongar a duração do procedimento, o que dificulta estabelecer uma relação de causalidade com certeza.

Leia o artigo na íntegra (grátis) em: https://www.giejournal.org/article/S0016-5107(22)01739-4/fulltext




Você sabe a melhor forma de identificar e manejar os pacientes com risco aumentado de coledocolitíase?

A incidência de colelitíase sintomática entre os americanos adultos é em torno de 10%. No Brasil  estudos retrospectivos mostram uma incidência de até 9,3%.   Entre estes pacientes, 10-20% podem apresentar coledocolitíase concomitante.

A CPRE transformou o tratamento dos cálculos na via biliar principal de uma operação de grande porte em um procedimento minimamente invasivo.   Porém, apresenta uma incidência não desprezível de efeitos adversos (5-15%) como pancreatite, sangramento e perfuração.  Assim é importante selecionar de forma correta os pacientes que serão submetidos ao procedimento para evitar a realização de exames desnecessários.

A ESGE recomenda que os pacientes com colelitíase sintomática em programação de colecistectomia devem realizar a dosagem de enzimas hepáticas e ultrassom de abdome. Estes exames servem como triagem para avaliar o risco de coledocolitíase concomitante e determinar os pacientes que se beneficiariam  de uma investigação adicional.

Agora, como devemos utilizar os resultados desta triagem?

Preditores do Risco de Coledocolitíase

Em 2010 a ASGE publicou uma lista de preditores para avaliar o risco de coledocolitíase. Baseado nestes critérios os pacientes eram divididos em risco alto, intermediário e baixo risco.  Para os de alto risco a recomendação era ir direto para a CPRE. Os de risco intermediário deveriam investigar melhor através da realização de colangiorressonância ou ecoendoscoscopia antes da decisão terapêutica.  Os de baixo risco poderiam ir para colecistectomia direto. 

Tabela 1. Preditores clínicos publicados em 2010 pela ASGE.  Adaptado de Maple et al 2010.  Atenção, estes critérios foram revisados. 

Porém,  estudos posteriores utilizando estes critérios demonstraram que  a acurácia variava de 70 a 80%, levando a até 30% de CPRE desnecessárias. 

Devido a isso, tanto a associação Americana (ASGE) quanto a europeia (ESGE) revisaram estes preditores em seus guidelines mais recentes.

Os novos critérios estão resumidos na tabela abaixo:

Tabela 2 Preditores de coledocolitíase publicados pela ASGE e ESGE. Adaptado de Buxbaum et al 2019 e  Manes et al 2019.

Os pacientes com quadro de colangite ou cálculo visualizado no ultrassom de abdome ou em tomografia/RNM são considerados como de alto risco.   A ASGE inclui um critério a mais, que é a presença de Bilirrubina total maior do que 4 mg/dl associada à dilatação da via biliar como critério de alto risco.   Estes pacientes podem ser submetidos a CPRE direto, antes da colecistectomia e sem a necessidade de investigação adicional.

Os pacientes com alteração de enzimas hepáticas (TGO, TGP, FA, GGT) ou com dilatação da via biliar no ultrassom (>6 mm com vesícula in situ) são considerados de risco intermediário. Novamente a ASGE tem um critério a mais que é a idade maior do que 55 anos.  O racional para este critério é que pacientes com mais de 55 anos tem uma maior incidência de coledocolitíase não associada à alteração de enzimas hepáticas.   Os dois guidelines sugerem que os pacientes com critérios intermediários sejam submetidos à colangiorressonância ou ecoendoscopia para avaliar a presença de coledocolitíase antes da colecistectomia.  Na impossibilidade de realizar estes exames, a colangiografia intraoperatória é indicada como alternativa.

Já os pacientes que não apresentam nenhum destes critérios são considerados como de baixo risco e podem realizar a colecistectomia direto, com ou sem colangiografia intraoperatória.

Nos critérios de 2010 a pancreatite aguda era um critério de risco intermediário.  Porém, estudos confirmaram que a incidência de coledocolitíase residual após um episódio de pancreatite leve varia de apenas 10 a 30%.  Devido a isso ela deixou de ser critério de risco.  Os pacientes após a resolução da pancreatite aguda devem ser avaliados de acordo com os critérios acima. Se não apresentares critérios de alto ou médio risco podem ir para a colecistectomia direto.

E qual dos critérios eu devo seguir? ASGE ou ESGE?

Um estudo incluindo 1042 pacientes comparou os critérios da ASGE e da ESGE para a avaliação da presença de coledocolitíase.  Os resultados mostraram que os dois critérios são válidos e muito bons, com especificidade de 96,87% para os da ASGE e 98,24% para os da ESGE.

Comparando os dois critérios, o da ESGE é ligeiramente mais específico, com os critérios da ASGE apresentando um número discretamente maior de pacientes falso positivos.

Conclusão

Apesar da CPRE ser uma técnica minimamente invasiva, ela não é isenta de complicações!

Devido a isso, a avaliação da probabilidade pré-teste em pacientes com suspeita de coledocolitíase é essencial para diferenciar os pacientes que irão se beneficiar de uma avaliação mais aprofundada dos que poderão ir direto para a CPRE.

Referências

Manes G, Paspatis G, Aabakken L et al. Endoscopic management of common bile duct stones: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) guideline. Endoscopy 2019; 51: 472–491

Maple JT, Ben-Menachem T. ASGE Standards of Practice Committee. et al. The role of endoscopy in the evaluation of suspected choledocholithiasis. Gastrointest Endosc 2010; 71: 1–9




Quiz !! Participou do nosso Webinar ?

Paciente masculino, 45 anos, antecedente de pancreatite há cerca de 2 meses. Refere que na época do quadro ficou ictérico. Após melhora do quado procurou cirurgião, que realizou investigação com ultrassonografia de vias biliares demonstrando vesícula biliar com múltiplos pequenos cálculos e vias biliares normais. Os exames laboratoriais demonstravam aumento de gamaglutamil transferase (gamaGT). De posse destes resultados, o cirurgião solicitou a realização de CPRE, antes da cirurgia.