Tratamento de fístula com vácuo endoscópico transparietal: uma alternativa eficaz que preserva o conforto do paciente

Introdução:

O tratamento de fístulas após cirurgias gastroesofágicas é um grande desafio. Nos últimos anos, a terapia a vácuo endoscópico (EVT) ganhou popularidade e se consolidou como uma ferramenta segura e eficaz para tratamento desta complicação, associando a drenagem de secreções ao estímulo à cicatrização.

Usualmente, a sonda para aspiração da terapia a vácuo é inserida através da narina, e posicionada dentro da luz do órgão ou na cavidade causada pela fístula. Entretanto, neste caso, o vácuo foi confeccionado de forma externa, transparietal, através do trajeto de um dreno cirúrgico. Este arranjo permitiu maior conforto para paciente, que continuou recebendo dieta via sonda nasoenteral.

Relato:

Paciente do sexo feminino de 70 anos submetida a gastrectomia total + esofagectomia distal com anastomose esofagojejunal intratorácica e linfadenectomia D2 devido carcinoma gástrico pouco diferenciado com envolvimento de esôfago distal.

Foram locados dois drenos perianastomose: um exteriorizado em flanco direito e um em flanco esquerdo.

No 5º. PO a paciente evoluiu com dor abdominal e distensão após infusão da dieta enteral. Foi realizado teste com azul de metileno, que extravasou pelo dreno abdominal à esquerda.

A endoscopia evidenciou deiscência de 1/3 da circunferência da anastomose esofagojejunal, na parede posterior. Era possível identificar o dreno através do orifício. A sonda nasoenteral estava locada na alça jejunal.

Figura 1: Endoscopia pós-operatória identificando fístula da anastomose esofagojejunal.
Figura 2: Esquema demonstrando o posicionamento dos drenos (azul) e a deiscência esofagojejunal intratorácica (amarelo).

A terapia a vácuo endoscópica foi indicada. Duas alternativas de inserção da sonda do vácuo seriam viáveis neste momento: via nasal (convencional), ou através do dreno transparietal. Tendo em vista o conforto da paciente, e a possibilidade de mantê-la com apenas uma sonda na narina (para alimentação), foi optado por instalar o vácuo através do dreno, de maneira transparietal.

Terapêutica

O dispositivo escolhido para a terapia a vácuo foi do tipo tube in tube, confeccionado com sonda nasogástrica dentro do dreno siliconado já existente, dispensando o uso de esponjas ou gazes. A sonda foi conectada ao dispositivo de aspiração. Enquanto a sonda (tubo interno) aspirava, o dreno (tubo externo) evitava entupimentos.

  • Passagem de sonda nasogástrica 16 Fr através de dreno abdominal (figura 3), com o posicionamento na cavidade fistulosa confirmado pela endoscopia (figura 4).
  • Foi mantido vácuo com pressão negativa contínua de 125 mmHg, com auxílio de bomba eletrônica.
  • Paciente mantida com dieta enteral através de sonda nasoenteral locada na alça jejunal.
Figura 3: Esquema demonstrando o dispositivo da terapia a vácuo locado. A) passagem de fio-guia pelo dreno externo o qual foi capturado pela endoscopia e exteriorizado pela boca. B) inserção da sonda nasogástrica 16Fr sobre o fio-guia e posicionada a cerca de 1,5 cm da deiscência da anastomose sob supervisão endoscópica com aparelho de fino calibre.
Figura 4: Local onde o dreno estava locado, e foi instalada a terapia a vácuo.

É importante salientar que, em casos em que o vácuo é instalado através de sondas nasais, muitos pacientes não toleram permanecer com uma sonda em cada narina – uma para a terapia a vácuo e uma para alimentação – ficando dependentes de nutrição parenteral.

Uma semana após a instalação da terapia a vácuo, foi realizada revisão endoscópica. O orifício fistuloso apresentava diminuição significativa de calibre, passando a medir cerca de 8 mm (figura 5).

Figura 5: A e B) Primeira revisão endoscópica após 7 dias de instalação da EVT; C, D e E) exame com aparelho de 4.9 mm através do orifício da fístula observando bom tecido de granulação no trajeto fistuloso. Dreno de silicone (azul) e sonda nasogástrica no seu interior.

Foi realizada leve tração do dreno (cerca de 2 cm) através da parede abdominal, afastando-o da luz do órgão, e reinstalado o vácuo endoscópico tipo tube in tube.

Figura 6: a) Trajeto fistuloso após tração do dreno; b) dreno realocado com dispositivo de vácuo no interior.

No 17º dia foi realizada nova revisão endoscópica, que identificou a anastomose esofagojejunal terminolateral ampla, sem sinais de fístula.

Figura 7: Segunda revisão endoscópica após 17 dias de instalação da EVT.

O dispositivo do vácuo endoscópico e o dreno abdominal foram retirados após novo teste com azul de metileno. No mesmo dia foi iniciada dieta oral, que foi progredida gradualmente até a alta hospitalar.

NOTA:

Em casos em que o paciente não possui um dreno previamente locado, a técnica tube in tube
também pode ser realizada. Para isso utilizam-se duas sondas Levine de calibres diferentes. A sonda de maior calibre tem sua extremidade de conexão cortada, para que a sonda de menor calibre seja inserida. A sonda interna (a de menor calibre) é conectada à pressão negativa (figura 8).

Figura 8: Esquema do tube in tube com sondas.

Veja mais sobre o assunto: Terapia endoscópica com vácuo (EVT) – Principais resultados de uma metanálise. • Endoscopia Terapeutica.

Como citar este artigo

Kristal I, Alves PA, Martins B. Tratamento de fístula com vácuo endoscópico transparietal: uma alternativa eficaz que preserva o conforto do paciente Endoscopia Terapeutica 2025 Vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/casosclinicos/tratamento-de-fistula-com-vacuo-endoscopico-transparietal-uma-alternativa-eficaz-que-preserva-o-conforto-do-paciente/




Terapia endoscópica com vácuo (EVT) – Principais resultados de uma metanálise.

A endoscopia possui um papel de destaque no tratamento de fístulas pós cirúrgicas, particularmente bariátricas. Temos diversas opções de tratamento, com enfoques distintos e diversas publicações sobre estes métodos.

A terapia endoscópica com vácuo – Endoscopic Vacuum Therapy (EVT) – é uma técnica mais recente e por tal motivo ainda conta com menor quantidade de publicações e nenhuma metanálise, ao menos até a publicação do artigo original que iremos comentar aqui. 

Artigo original: Intriago JMV, de Moura DTH, do Monte Junior ES, et al. Endoscopic Vacuum Therapy (EVT) for the Treatment of Post-Bariatric Surgery Leaks and Fistulas: a Systematic Review and Meta-analysis. Obes Surg. 2022.

Os principais mecanismos de ação da EVT estão relacionados a sua capacidade de promover macro e microdeformação, mudanças na perfusão através de estímulo a angiogênese, controle de exsudato e clearance bacteriano. Resumidamente, a EVT atinge seus resultados promovendo estímulo a cicatrização ao mesmo tempo que mantém drenagem. A localização da sonda pode ser intracavitária (sonda alocada dentro da cavidade perigástrica) ou intraluminal (no lúmen esofágico/gástrico); em ambos casos o sistema é mantido com pressão negativa entre 125 a 175mmHg.

Os modelos utilizados podem ser de quatro tipos:

  • Open-pore sponge (OPS) – esponja localizada na extremidade da sonda
  • Open-pore film (OPF) – filme fino de drenagem na extremidade da sonda
  • Sonda EVT modificada* – modelo modificado de sonda, difundido por Flaubert Sena
  • Sonda EVT três lumens – modelo com sonda de três vias, permitindo a terapêutica com EVT ao mesmo tempo que oferece via alimentar com sonda única

 * Em nossas referências procure o artigo publicado na VideoGIE com um vídeo gratuito, detalhando como montar a sonda.

Métodos

O estudo foi protocolado na PROSPERO e aprovado pelo comitê de ética da Universidade de São Paulo seguindo as normativas da Cochrane (PRISMA).

Dois avaliadores independentes realizaram a busca com os alguns descritores em diversas bases de dados incluindo MEDLINE, Embase, Cochrane e outros com os descritores “negative pressure, vaccum, EVT, Evac , leak, leakage” e outros. Um terceiro avaliador esteve disponível para casos de não concordância.

Foram excluídos estudos com desenho inapropriado ou não descrito, dados insuficientes e estudos duplicados (neste caso, sendo utilizado apenas o mais recente). Em casos de estudos comparativo, foram selecionados apenas os dados referentes a EVT. Os pacientes inclusos na metanalise incluíam pacientes pós cirurgia bariátrica, fistulas ou vazamentos, independente do tempo de evolução, tratados com EVT.

Desfechos

Sucesso clínico (fechamento do defeito) e perfil de segurança (efeitos adversos e deslocamento da sonda EVT), número e intervalo entre trocas, tempo de permanência do dispositivo, terapia adjuvante utilizada, tempo de internamento hospitalar.

Estatística

O risco de viés foi avaliado considerando os critérios da Grading Recommendations Assessment, Development, and Evaluation (GRADE), utilizando software GRADE-pro. Para variáveis dicotomicas foi utilizado o método de Mantel–Haenszel, com intervalo de confiança de 95%. Foram utilizados testes de Higgins para avaliação de heterogenicidade, considerada alta com I2 maior que 50 % enquanto gráficos de Forest plot foram utilizados para avaliação dos estudos.

Resultados  

A busca inicial encontrou 5803 artigos, sendo selecionados 207 para avaliação de resumo. 12 estudos foram selecionados porém 7 foram excluídos por tratarem do mesmo grupo de pacientes, sendo mantido apenas os estudos mais recentes. Para análise final foram selecionados 5 artigos, todos retrospectivos (4 séries de caso e 01 coorte).

Características dos estudos:

O número total foi de 55 pacientes, assim divididos:

Morell B. et al – 6 pacientes, casos de fístula aguda após bypass gástrico (RYGB) e sleeve, utilizando (OPS) Eso-Esponge isoladamente ou em associação a com prótese em caso de fístulas de largo calibre (técnica stent over sponge).  Dois pacientes utilizaram EVT como terapia primária e quatro como terapia de resgate. Sucesso clínico em todos casos, sem relato de eventos adversos.

Christogianni V. et al – 21 pacientes com fístulas precoces (até 10 dias), pós sleeve. Todos pacientes foram submetidos a laparoscopia, lavagem e drenagem para posterior uso do EVT. Sucesso clínico em todos casos sendo 18 apenas com EVT; em três casos houve persistência de fístula onde o tratamento realizado foi drenagem interna através de cateter tipo duplo pigtail. Em quatro casos houve deslocamento/desalojamento do EVT.

Archid R. et al – coorte retrospectiva avaliando 27 pacientes comparando EVT e prótese no tratamento de fístulas agudas e crônicas após LSG. Foram utilizados dois modelos de sistema EVT o Eso-Esponge (nos casos intracavitários) e o sistema open-pore film (OPF) em intra-luminais. O EVT foi realizado como terapêutica primária em 10 casos e como método complementar em 4 (após radiologia intervencionista ou drenagem cirúrgica). Houve sucesso em 85,7% (12/14), um deles necessitando uso de stent após EVT. Um paciente com múltiplas comorbidades foi a óbito por sepse (evento não relacionado ao EVT).

Leeds SG. et al – EVT realizado com dispositivo manufaturado utilizando esponja para tratamento de fístulas pós sleeve, agudas ou crônicas. Nove pacientes foram selecionados dos quais 3 tiveram EVT como terapêutica primária. Oito pacientes obtiveram sucesso clínico (8/9) dos quais 5 utilizaram próteses em alguma etapa do tratamento. Um paciente foi a óbito por falência múltipla de órgãos, não sendo relacionado ao EVT. Houve relato de um quadro de pancreatite como evento adverso moderado.

Zaveri et at – 6 pacientes com fístulas agudas ou crônicas após sleeve, dos quais 3 tiveram EVT como terapêutica primária. Houve sucesso clínico em 5/6 pacientes e um paciente foi submetido a tratamento complementar com prótese. Não houve relato de evento adverso ou óbito.

Metanálise

Taxa de sucesso clínico (6 estudos): 87,2% (95% CI 75,4–93,8%; I2 = 0%; P = 0,000)

Número de trocas do sistema EVT (4 estudos): 6,47 (95% CI 4.00–8.94; I2 = 85,30%; P = 0,000)

Intervalo entre a troca de sistemas (2 estudos): 4,39 dias (95% CI 3,60–5,17; I2 = 93,31%; P = 0,000)

Tempo de permanência EVT (6 estudos): 5,67 dias (95% CI 15,16–36,18; I2 = 93,31%; P = 0,000)

Terapia adjuvante durante EVT (2 estudos): 35,3% (95% CI 19,3–75,2; I2 = 14,617%; P = 0,284), ambos estudos descrevendo cirurgia como um dos métodos

Internamento hospitalar (4 estudos): 44,43 dias (95% CI 30,01–58,84 dias; I2 = 80,82%; P = 0,000)

Deslocamento do sistema EVT (2 estudos): 2,5% (95% CI 2,7–42,7; I2 = 35,52%; P = 0,021)

Eventos adversos (seis estudos): 6%, todos moderados (95% CI 1,9%–17%; I2 = 0%; P = 0,000) 

Mortalidade – dois casos foram relatados porém ambos não relacionados ao EVT

Discussão

O tratamento com EVT foi realizado de forma isolada em apenas 32.72% (18 de 55) dos casos apresentados na metanálise, o que dificulta a interpretação dos resultados. De toda forma, os resultados foram positivos tanto em casos agudos quanto em casos crônicos, estes últimos mais difíceis de tratar habitualmente.

A experiência das equipes e uso de sondas distintas podem influenciar nos resultados embora não exista um número grande de casos para fazer estudos comparativos. Foi observada diferença relevante no tempo de tratamento em alguns dos estudos com destaque para a publicação de Leeds com média de 81,3 dias de permanência, todos casos utilizando sondas OPS em contraste com Archid R que utilizou OFD em todos casos e obteve 37,04 dias de permanência. Uma possível explicação pode estar relacionada ao uso de sondas OPS que estão associadas a criação de tecido ingrowth e obstrução, requerendo intervalo mais curto entre as trocas.  

Os dados apresentados na metanálise são muito relevantes porém o estudo possui suas limitações pela pequena quantidade de dados disponíveis na literatura, tempo relativamente curto do desenvolvimento da técnica, característica de estudos retrospectivos, uso de sondas de EVT diferentes e realização de terapias combinadas (mais de um método endoscópico ou uso de outros métodos como cirurgia e drenagem percutânea).

Referências

de Moura DTH, Hirsch BS, Do Monte Junior ES, et al. Cost-effective modified endoscopic vacuum therapy for the treatment of gastrointestinal transmural defects: step-by-step process of man-ufacturing and its advantages. VideoGIE. 2021;6:523–8 *

de Moura DTH, Hirsch BS, Boghossian MB,  et al. Low-cost modified endoscopic vacuum therapy using a triple-lumen tube allows nutrition and drainage for treatment of an early post–bari-atric surgery leak. Endoscopy. 2021;

Kuehn F, Loske G, Schiffmann L, et al. Endoscopic vacuum ther-apy for various defects of the upper gastrointestinal tract. Surg Endosc. 2017;31:3449–58

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