Schwannoma de cólon ascendente: Uma rara lesão diagnosticada por ecoendoscopia
Apresentação do caso:
Paciente de 73 anos, do sexo feminino, foi submetida a colonoscopia de rastreamento que evidenciou lesão elevada séssil de aspecto subepitelial, sinal da tenda positivo e do travesseiro negativo, no cólon ascendente, medindo 30 mm, recoberta por mucosa íntegra e com suspeita tomográfica de pólipo inflamatório.
Optado pela investigação adicional com ecoendoscopia para decisão terapêutica, sendo possível alcançar a lesão com ecoendoscópio setorial.
Avaliação ecográfica revelou lesão nodular hipoecoica, heterogênea, de limites bem definidos, medindo 27 x 26 mm, localizada e restrita a camada muscular própria, sem linfonodomegalias perilesionais.
Realizada punção ecoguiada utilizando agulha FNB 22 Gauge, revelando neoplasia fusocelular de baixo grau.
Exame imunohistoquímico com resultado positivo para S100 e negativo para C-KIT , DOG-1, actina e CD34.
Tais achados corroboram o diagnóstico de Schwannoma.
Paciente foi submetida a colectomia direita videolaparocópica com retirada completa da lesão e sem necessidade de fazer linfadectomia oncológica.
Discussão:
O Schwannoma é um tumor originário de células de Schwann, presente na bainha de mielina de nervos periféricos.
Essa neoplasia possui menor incidência no trato gastrointestinal acometendo o plexo mioentérico de Auerbach, nos quais a maioria dos casos reportados estão localizados no estômago e intestino delgado, acometendo raramente o cólon.
Possui maior prevalência a partir da sexta década de vida e não tem predominância de gênero.
O quadro clínico comumente é assintomático ou composto por sintomas inespecíficos como dor e desconforto abdominal, tenesmo, constipação, sangramento retal ou melena.
A descoberta geralmente é incidental por meio do rastreamento endoscópico, revelando lesão de aspecto subepitelial de formato regular e bem definido, podendo ou não ser ulcerada.
O diagnóstico definitivo é por meio de exame patológico com imunohistoquímica positiva para S100 e negativo para SMA, Desmina, CD117 e P53.
A ecoendoscopia baixa é desafiadora, mas com habilidade técnica ela pode ser realizada de forma eficaz, contribuindo para a definição diagnóstica e direcionando a escolha da técnica cirúrgica, resultando em uma abordagem menos invasiva.
Usualmente os tumores são benignos com prognóstico favorável, com raros casos de transformação maligna.
De forma geral, a ressecção cirúrgica é o tratamento de escolha para evitar a transformação maligna.
Comentários finais:
Schwannoma de cólon é uma lesão extremamente rara, sendo diagnóstico diferencial de tumor estromal gastrointestinal. A avaliação por ecoendoscopia com punção permite o diagnóstico pré-operatório, possibilitando ressecções cirúrgicas menos extensas e com menor morbidade, contribuindo com um bom prognóstico. Na maioria dos casos o diagnóstico é feito após análise histopatológica de peça cirúrgica. Se faz necessário a avaliação imunohistoquímica para diferenciação de outros tipos histológicos de tumores que acometem o cólon.
Referências
Bohlok, A., El Khoury, M., Bormans, A., et al. Schwannoma of the colon and rectum: a systematic literature review. World Journal of Surgical Oncology, 16, 125 (2018). DOI: 10.1186/s12957-018-1427-1.
Schwannoma of the ascending colon: A rare case report. Asian Journal of Surgery, Volume 46, Issue 6, 2023, Pages 2417-2418. ISSN: 1015-9584.
Kim, G., Kim, S. I., Lee, K. Y. Schwannoma of the sigmoid colon: a case report and review of literature*. Journal of Surgical Case Reports, 2019 Feb;2019(2):rjz046. DOI: 10.1093/jscr/rjz046.
Baig, M. M. A. S., Patel, R., Kazem, M. A., Khan, A. Schwannoma in the ascending colon, a rare finding on surveillance colonoscopy. Journal of Surgical Case Reports, 2019 Feb;2019(2):rjz 046. DOI: 10.1093/jscr/rjz046.
Durante anos, a presença de vasos de grande calibre entre o ecoendoscópio e a lesão representava um obstáculo intransponível. Mas os tempos mudaram: a evolução técnica e a experiência crescente com punção transvascular guiada por EUS/EBUS (TVNA) mostram que esse caminho, antes temido, pode ser seguro e altamente eficaz, desde que bem indicado.
O que é a TVNA?
A TVNA é uma técnica de punção por agulha fina em que a agulha atravessa um vaso sanguíneo interposto (como a aorta, artéria pulmonar ou veia cava) para alcançar uma lesão torácica ou abdominal.
Objetivo: coletar tecido para análise citopatológica ou histológica
Guia: ecoendoscopia em tempo real com doppler
Público alvo: pacientes sem outra via de acesso para diagnóstico
Quando considerar?
Abaixo um fluxograma para indicar a técnica:
Evidências atuais:
Estudo multicêntrico espanhol (Garcia-Sumalla et al., 2020)
Pacientes: 49 (50 procedimentos)
Vasos transfixados: Aorta (n=19), sistema portal (n=17)
Figura: punção ecoguiada transfixando veia cava inferior com agulha 22G para investigação linfonodo suspeito. Imagem retirada de Garcia-Sumalla et al., 2020.
Meta-análise (Giri et al., 2023)
Estudos analisados: 17
Pacientes: 411
Acurácia diagnóstica: 85%
Adequação da amostra: 91,5%
Taxa de sangramento: 1,4% (todos autolimitados)
Técnica passo a passo:
Avaliação prévia com imagem (TC ou RNM)
Estudo cuidadoso com doppler
Evitar vasos com calcificação ou aneurismas
Escolher agulhas finas (FNA 25G ou 22G)
Preferir técnica com ROSE, se disponível
Após punção, monitorar área por 2 minutos com doppler
Observação clínica de 6 horas à 24 horas
Pontos-chave:
Permite diagnóstico de lesões “inacessíveis”
Evita procedimentos cirúrgicos mais invasivos
Alta acurácia quando bem indicada
Necessita de centro especializado
Contraindicado em coagulopatia ou hipertensão portal
Monitoramento rigoroso no pós-procedimento
Ainda sem estudos com FNB
Conclusão
A TVNA representa uma verdadeira virada de chave na econdoscopia diagnóstica. Ao vencer a barreira dos grandes vasos com precisão, segurança e racionalidade, ampliamos o espectro de pacientes que podem se beneficiar de diagnósticos menos invasivos e mais ágeis. É uma técnica que exige respeito, preparo e critério, mas que, nas mãos certas, torna o impossível acessível.
Referências
GARCIA-SUMALLA, Albert et al. Endoscopic ultrasound-guided transvascular needle biopsy of thoracic and abdominal lesions: a multicenter experience. Endoscopy International Open, v. 8, p. E1900–E1908, 2020. DOI: 10.1055/a-1288-0030
GIRI, Suprabhat et al. Efficacy and safety of endosonography-guided transvascular needle aspiration of thoracic and abdominal lesions: A systematic review and meta-analysis. Journal of Clinical Ultrasound, v. 51, n. 4, p. 723–730, 2023. DOI: 10.1002/jcu.23441
KAZAKOV, Jordan et al. Endobronchial and Endoscopic Ultrasound-Guided Transvascular Biopsy of Mediastinal, Hilar, and Lung Lesions. The Annals of Thoracic Surgery, v. 103, n. 3, p. 951–955, 2017.
MOLINA, Juan Carlos et al. Transvascular endosonographic-guided needle biopsy of intrathoracic lesions. The Journal of Thoracic and Cardiovascular Surgery, v. 159, n. 5, p. 2057–2065, 2020. DOI: 10.1016/j.jtcvs.2019.10.017
A drenagem ecoguiada coledocoduodenal (EUS-BD) pode substituir a CPRE com passagem de prótese nas obstruções biliares malignas distais?
Essa é a questão que Ji Young Bang e colaboradores buscaram responder em um estudo retrospectivo, avaliando os critérios de elegibilidade e as tecnologias disponíveis atualmente. O artigo “Rate of suitable cases for primary EUS-guided biliary drainage in distal malignant biliary obstruction” de Bang JY et al., publicado online em Gut em 26 de fevereiro de 2025, apresenta informações importantes sobre as limitações da drenagem ecoguiada, sob a ótica de um grupo com vasta expertise nessa abordagem.
Resumo
Atualmente, a CPRE é considerada a principal estratégia terapêutica para as obstruções malignas distais. No entanto, complicações como pancreatite, disfunção das próteses biliares e dificuldades no acesso à papila devido à invasão tumoral limitam sua aplicabilidade. A drenagem ecoguiada coledocoduodenal, proposta como alternativa à CPRE desde o início deste século, apresenta o benefício de evitar tanto a área de invasão tumoral quanto a instrumentação do ducto pancreático, o que reduz o risco de pancreatite e disfunção das próteses biliares. Uma meta-análise de 6 estudos randomizados controlados envolvendo 570 pacientes mostrou que a abordagem ecoendoscópica oferece menor risco de pancreatite e necessidade de reinternação por complicações associadas à drenagem biliar.
Dada essas observações promissoras, a drenagem ecoguiada primária tem sido sugerida como uma alternativa terapêutica à CPRE. No entanto, o procedimento técnico, que envolve o acesso ao ducto biliar com uma agulha de 19 Gauge, exige que o ducto biliar esteja dilatado. Dois dos seis estudos da meta-análise utilizaram como critério de elegibilidade um diâmetro do hepatocolédoco superior a 12 mm, enquanto nos outros estudos, a média do diâmetro foi superior a 12 mm.
A proporção de pacientes com obstrução biliar maligna distal em que a drenagem ecoguiada é viável na prática clínica ainda não é bem conhecida. Para investigar essa questão, Bang e colaboradores analisaram dados retrospectivos de pacientes submetidos à CPRE e à drenagem ecoguiada entre janeiro de 2022 e novembro de 2024. A CPRE foi utilizada como modalidade primária, e a drenagem ecoguiada como abordagem de resgate em pacientes com falha da CPRE. Foram incluídos pacientes com mais de 18 anos e dilatação superior a 11 mm do hepatocolédoco.
Dos 3201 pacientes submetidos à CPRE durante o período do estudo, 439 foram incluídos na análise. A drenagem por CPRE foi bem-sucedida em 406 pacientes (92,5%), com uma mediana do diâmetro do hepatocolédoco de 11,5 mm (IQR 10-15 mm). Em 59 casos (14,5%), foram necessárias técnicas avançadas de canulação. Complicações ocorreram em 38 pacientes (9,4%), incluindo pancreatite em 18 casos, colangite em 11, sangramentos em 7 e duas perfurações. Todos os eventos adversos foram controlados por endoscopia, exceto um sangramento que exigiu intervenção radiológica.
Nos 33 pacientes em que a CPRE falhou, a drenagem ecoguiada foi bem-sucedida em 29 casos (87,9%). Foram realizadas 28 coledocoduodenostomias e um acesso por rendez-vous. A mediana do diâmetro do hepatocolédoco nesses casos foi de 16 mm (IQR 13-18 mm). No caso tratado com rendez-vous, o diâmetro do hepatocolédoco era de 11 mm. Nos 28 pacientes tratados com drenagem ecoguiada, a prótese axios foi utilizada em 22 casos, e próteses metálicas totalmente revestidas foram aplicadas em 6.
Dois pacientes não puderam ser tratados com drenagem ecoguiada devido a um diâmetro do hepatocolédoco inferior a 10 mm, enquanto outros dois apresentaram insucesso técnico devido ao disparo inadequado da flange distal das próteses. Todos esses casos foram tratados com drenagem percutânea.
Durante o período do estudo, observou-se que os pacientes tratados com CPRE apresentaram uma mediana do diâmetro do hepatocolédoco significativamente menor (11,5 mm, IQR 10-15 mm) em comparação aos tratados com drenagem ecoguiada de resgate (16 mm, IQR 13-18 mm; p<0,001). Notavelmente, 44,9% dos pacientes (197 dos 439) apresentaram diâmetro inferior a 12 mm, o que os tornou inelegíveis para a drenagem ecoguiada.
Bang e cols. concluem que embora este estudo reforce a drenagem ecoguiada como uma excelente opção de resgate após falha da CPRE no tratamento da obstrução biliar maligna distal, ele também revela que uma proporção significativa de pacientes (44,9%) não seria elegível para a coledocoduodenostomia por ecoendoscopia. A CPRE continua sendo a primeira escolha para drenagem biliar em casos de obstrução biliar maligna distal, com uma taxa de sucesso superior a 95% nas mãos de especialistas, quando a papila duodenal é acessível. A drenagem ecoguiada é uma alternativa eficaz quando há dilatação do ducto biliar, mas a presença de uma dilatação mínima de 12 mm é crítica para o sucesso da abordagem, especialmente no uso da prótese LAMS. Portanto, dado o atual cenário técnico e tecnológico, não é realista substituir a CPRE pela drenagem coledocoduodenal ecoguiada, uma vez que essa abordagem só é viável para 60% dos pacientes, ou seja, aqueles com dilatação superior a 11 mm. Em comparação, a CPRE oferece um sucesso superior a 99% na drenagem biliar de pacientes com estenose maligna distal.
Comentários:
Apesar de metanálises recentes, como as de Gapakumar e colaboradores e Khoury e colaboradores, apontarem que a drenagem ecoguiada coledocoduodenal apresenta vantagens, como menor índice de pancreatite, maior tempo de patência com menor disfunção da prótese biliar e menor tempo de procedimento, sugerindo sua utilização como abordagem primária, Bang e colaboradores, em sua análise retrospectiva, destacam as limitações do método. Eles reforçam a necessidade de uma dilatação maior que 11 mm para que a drenagem ecoguiada seja bem-sucedida.
Assim, podemos concluir que, no cenário atual, a drenagem ecoguiada coledocoduodenal é uma opção terapêutica eficaz na falha da drenagem por CPRE, especialmente quando o acesso à papila não é viável por endoscopia e há dilatação superior a 11 mm do hepatocolédoco.
Bang JY, Faraj Agha M, Hawes R, Varadarajulu S. Rate of suitable cases for primary EUS-guided biliary drainage in distal malignant biliary obstruction. Gut. 2025 Feb 26:gutjnl-2025-334979. doi: 10.1136/gutjnl-2025-334979. Epub ahead of print. PMID: 40011036.
Gopakumar H, Singh RR, Revanur V, Kandula R, Puli SR. Endoscopic Ultrasound-Guided vs Endoscopic Retrograde Cholangiopancreatography-Guided Biliary Drainage as Primary Approach to Malignant Distal Biliary Obstruction: A Systematic Review and Meta-Analysis of Randomized Controlled Trials. Am J Gastroenterol. 2024 Aug 1;119(8):1607-1615. doi: 10.14309/ajg.0000000000002736. Epub 2024 Feb 29. PMID: 38421018.
Khoury T, Sbeit W, Fumex F, Marasco G, Eusebi LH, Fusaroli P, Chan SM, Shahin A, Basheer M, Gincul R, Leblanc S, Teoh AYB, Jacques J, Lisotti A, Napoléon B. Endoscopic ultrasound- versus ERCP-guided primary drainage of inoperable malignant distal biliary obstruction: systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. Endoscopy. 2024 Dec;56(12):955-963. doi: 10.1055/a-2340-0697. Epub 2024 Jun 6. PMID: 38843824.
Paciente de 48 anos, hígida e sem comorbidades, foi diagnosticada com lesão sólida pancreática em investigação de dispepsia dor abdominal em cólicas em hipocôndrio direito após refeições, com realização de exames prévios de ultrassom de abdome total e tomografia de abdome. Foi então encaminhada para realização de ecoendoscopia para avaliação e biópsia da lesão. Com os seguintes achados:
Vesícula biliar normodistendida, com paredes finas, exibindo imagem hiperecóica e móvel, formadora de sombra acústica posterior, medindo cerca de 12 mm no maior eixo, compatível com cálculo (Foto 1);
Imagem com ecotextura hipoecóica, homogênea, arredondada, de aproximadamente 11,6 x 10,2 mm, com contornos regulares, limites precisos, sem comunicação com ducto pancreático principal ou acometimento dos vasos perilesionais, localizada em colo pancreático (Fotos 2 e 3).
Figura 1 – Colelitíase
Figura 2 – Lesão sólida em colo pancreático Figura 3 – Lesão sólida em colo pancreático
Foram realizadas punções ecoguiadas para obtenção de material para análise anatomopatológica (Foto 4).
Figura 4 – Punção de lesão pancreática
O resultado do anatomopatológico evidenciou os seguintes achados:
Anatomopatológico: Avaliação histológica revela tumor neuroendócrino bem diferenciado. Amostra apresenta placas sólidas compostas por células atípicas relativamente homogêneas, em densidade celular elevada e estroma escasso. Células atípicas apresentam citoplasma eosinofílico e núcleo arredondado, com cromatina finamente granular. Necrose tumoral não identificada. Figuras mitóticas indistintas.
Imuno-histoquímica (marcadores na figura 5): Quadro morfológico e perfil de imuno-expressão compatíveis com TUMOR NEUROENDÓCRINO BEM DIFERENCIADO GRAU 1 (NET G1).
Figura 5 – Resultado imuno-histoquímica
CPRE e Ecoendoscopia no tratamento da pancreatite aguda recorrente pediátrica e pancreatite crônica
Ampliando a discussão sobre CPRE em pacientes pediátricos, esse post discutirá o artigo publicado por Joshi D, Shafi T, Al-Farsi U, et al., publicado no Journal of Clinical Medicine em 2024.
Introdução
A pancreatite crônica (PC) e a Pancreatite Aguda Recorrente (PAR) na população pediátrica são tipicamente causadas por variantes anatômicas (por exemplo, pâncreas divisum), malformações coledococianas, mutações genéticas no regulador da condutância transmembrana da fibrose cística (CFTR), no gene da Protease Serina tipo 1 (PRSS1), no inibidor de protease de serina tipo Kazal 1 (SPINK1), na quimotripsina C (CTRC) e nos genes da carboxipeptidase A1 (CPA1), bem como infecções, causas autoimunes e traumas. A incidência estimada de PC na população ocidental varia entre 0,5 e 2 a cada 100.000 crianças por ano. Embora rara em crianças, é frequentemente associada com sintomas debilitantes, atraso no crescimento, desenvolvimento prejudicado, aumento dos custos com saúde e uma baixa qualidade de vida.
Métodos
Este trabalho é uma Coorte Retrospectiva, unicêntrica, com dados coletados no King’s College Hospital, no Reino Unido, entre janeiro de 2008 e dezembro de 2022. Foram incluídos pacientes pediátricos (<18 anos) que realizaram CPRE e/ou Ecoendoscopia para PC ou PAR.
Nos casos de CPRE, um duodenoscópio pediátrico era utilizado em crianças menores que 1 ano. Quando maiores que um ano, um duodenoscópio adulto era escolhido. Quanto à ecoendoscopia, foi utilizado um ecoendoscópio com transdutor linear ou radial em pacientes maiores que 1 ano. Nos menores que 1 ano, um ultrassom endobrônquico foi utilizado.
Eventos adversos periprocedimento foram registrados e classificados de acordo com as orientações da Sociedade Americana de Endoscopia Gastrointestinal (ASGE). Durante o período de acompanhamento, os pacientes eram geralmente avaliados a cada 3 a 6 meses em uma clínica de pancreatite pediátrica. Quaisquer procedimentos endoscópicos adicionais, cirurgias ou outras intervenções—incluindo alterações nos medicamentos analgésicos—também foram registrados.
Resultados
Ao longo dos 16 anos do estudo, 562 crianças realizaram um procedimento de CPRE (n = 486) ou Ecoendoscopia (n = 76). Um total de 111 pacientes (20%) foi diagnosticado com PC e 25 pacientes foram diagnosticados com PAR. Todos os indivíduos realizaram exames de imagem pré-procedimento (ultrassom, tomografia computadorizada e/ou ressonância magnética) para confirmar a presença de PC ou PAR e para definir o melhor método endoscópico a ser utilizado.
O sintoma mais frequente foi dor abdominal (93%). Insuficiência exócrina pancreática esteve presente em 76% dos indivíduos. A maioria dos pacientes era do sexo feminino (55%), e a idade mediana da coorte foi de 11 anos (intervalo de 1 a 18 anos).
As etiologias mais comuns da PC foram genéticas (20%), anormalidades anatômicas (22%), autoimunes (12%), cálculos biliares (7%) e criptogênica (28%). Entre os casos de pancreatite hereditária, as variantes nos genes PRSS1 e SPINK1 foram as mais prevalentes (74% dos indivíduos). As anormalidades anatômicas incluíram pâncreas divisum (n = 15), má junção pancreático-biliar (n = 10) e pâncreas anular (n = 5).
CPRE
Um total de 222 CPREs foram realizadas em 98 indivíduos com PC/PAR. Os alvos terapêuticos incluíram: estenose do ducto pancreático principal (DPP) com dilatação a montante (45%); cálculos sintomáticos no DPP associados a uma estenose (65%) ou sem estenose associada (20%); e estenose associada do ducto biliar comum inferior (5%). As estenoses do DPP foram mais frequentemente observadas na cabeça do pâncreas (70%).
A canulação bem-sucedida do ducto pancreático foi alcançado em 98% dos pacientes. Todos os pacientes realizaram uma esfincterotomia pancreática seguida de dilatação com balão (4 mm). Em 80% dos casos, foi utilizado o balão extrator, seguida da inserção de um único stent plástico na CPRE inicial em 60% dos casos.
Dos pacientes submetidos ao CPRE para PAR, 88% tiveram a colocação de stent (todos plásticos). A resolução da estenose foi mais comumente observada com stents metálicos totalmente cobertos em comparação com stents plásticos isolados (75% vs. 51%, p = 0,001). A duração média de um stent metálico foi de 3,1 meses (intervalo de 1 a 5 meses). Pacientes tratados com um stent metálico (30%) versus um único stent plástico (50%) ou múltiplos stents plásticos (10%) necessitaram significativamente menos procedimentos subsequentes para resolver a estenose (1,1 ± 0,82 vs. 2,85 ± 0,9 vs. 1,40 ± 0,82, p < 0,001).
Após a resolução da estenose do DPP, desde 2019, um stent biodegradável Archimedes foi colocado em 80% dos casos. Isso evitou a necessidade de remoção do stent do DPP durante uma futura gastroscopia.
Para o tratamento de cálculos pancreáticos, a utilização do balão extrator foi a terapêutica mais comum, com uma taxa de sucesso de 94%. No geral, o sucesso no clareamento do DPP foi de 81%, com uma mediana de 2 procedimentos para sua resolução completa.
Não ocorreram mortes durante o procedimento de CPRE. A taxa de complicação foi de 3,6%, sendo a mais comum a pancreatite pós-CPRE (n = 4), migração interna do stent do ducto pancreático (n = 1), sangramento (n = 1), perfuração (n = 1) e dessaturação (n = 1), todas classificadas como leves ou moderadas.
Após uma mediana de follow-up de 24 meses, observou-se uma melhora na dor abdominal de 76% dos pacientes submetidos à CPRE. A CPRE com inserção de stent plástico para PAR resultou em uma redução nas internações hospitalares (2,5 vs. 1,25, p = 0,04). O IMC médio também apresentou melhora (15,5 ± 1,41 vs. 12,9 ± 1,16 kg/m², p = 0,001). Não foram disponibilizados dados acerca do controle glicêmico, e 3% dos pacientes necessitaram de cirurgia pancreática para controle dos sintomas.
Ecoendoscopia
Um total de 54 procedimentos de ecoendoscopia foram realizados em 48 pacientes. A indicação terapêutica mais comum foi drenagem de uma coleção líquida pancreática (65%). A indicação diagnóstica mais frequente foi a avaliação de uma massa pancreática ou linfadenopatia adjacente (20%), seguida pela avaliação de um cisto pancreático (15%).
A biópsia com agulha fina (FNB) revelou características de fibrose crônica em cinco pacientes, inflamação compatível com doença relacionada a IgG4 em dois pacientes e alterações inflamatórias inespecíficas em quatro pacientes.
No grupo de pacientes com coleção líquida pancreática, sete pacientes foram submetidos a uma tentativa de drenagem utilizando um stent plástico de Tennenbaum. Em quatro pacientes (56%), o stent foi colocado com sucesso. Nos outros três casos, não foi possível posicionar o stent, sendo realizada, em vez disso, uma aspiração por agulha fina (FNA). A partir de 2017, os stents metálicos autoexpansíveis com aposição luminal (LAMSs) passaram a estar disponíveis e foram preferencialmente utilizados para drenagem de coleções com ou sem necrose. Nos 25 pacientes que realizaram cistogastrostomia guiada por Ecoendoscopia com LAMS, o stent foi colocado com sucesso em todos os casos.
A maioria das massas pancreáticas estava localizada na cabeça do pâncreas (64%), com o restante observado no corpo do pâncreas. Em 88% das biópsias (todas realizadas com FNB), foi obtida uma amostra de tecido adequada para permitir uma avaliação histológica precisa.
A taxa de sucesso da Ecoendoscopia foi de 89%. Complicações pós-procedimento foram observadas em dois casos (4%), incluindo sepse (n = 1) e pancreatite (n = 1). Estas complicações foram classificadas como leve, sem necessidade de procedimentos adicionais.
Discussão
Já consolidado em pacientes adultos, o uso da CPRE e da ecoendoscopia em pacientes pediátricos vem se mostrando atrativo. No entanto, alguns cuidados amplamente utilizados em adultos, como o uso de AINE via retal, não foram amplamente utilizados em pacientes pediátricos neste estudo.
Foi demonstrado, neste estudo, a eficácia do uso de stents plásticos e metálicos, com uma taxa de resolução de estenose superior observada com os últimos. Observou-se também, uma melhora na dor abdominal em mais de dois terços dos pacientes submetidos à CPRE, uma redução nas internações hospitalares em pacientes com PAR e uma melhora no IMC. Além disso, não foram demonstrados eventos adversos após a endoscopia.
Além do seu uso para PC, existem outras indicações para o uso da Ecoendoscopia e da CPRE em pacientes pediátricos, incluindo o manejo de doenças biliares com estenose, biópsia hepática guiada por EUS, colangioscopia e pancreatoscopia, embolização guiada por EUS de varizes gástricas e medição da pressão portal. Esses procedimentos são, em teoria, possíveis em pacientes pediátricos e podem ser utilizados se considerados apropriados.
O advento da nova tecnologia de stents biodegradáveis pode ter seu uso difundido, principalmente em pacientes pediátricos. Disponível em 2019, o stent Archimedes foi adotado como o stent preferido para uso profilático em casos adultos e pediátricos. Na presente coorte, o stent Archimedes de degradação rápida foi utilizado no CPRE de seguimento após a resolução da estenose do DPP. O seu principal benefício é poupar o paciente de um novo procedimento, o qual, em pacientes pediátricos, é realizado frequentemente sob anestesia geral.
Em resumo, este estudo demonstra a segurança, eficácia e os benefícios a longo prazo da aplicação de CPRE e Ecoendoscopia em crianças com PC e PAR, como parte de uma abordagem multidisciplinar.
Comentários
Apesar dos procedimentos biliopancreáticos endoscópicos não serem frequentes na faixa etária pediátrica, há indicações precisas tanto para o diagnóstico quanto no tratamento. A Sociedade Japonesa de Endoscopia Pediátrica contabilizou 238 CPREs entre os anos de 2000 e 2004, onde, no mesmo período, foram realizadas 5059 endoscopias digestivas alta.
De acordo com a Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal e a Sociedade Europeia de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica, a CPRE e a ecoendoscopia estão indicadas nos seguintes casos:
Síndrome Colestática neonatal, onde os exames de imagem não são suficientes para definir o diagnóstico, a fim de evitar cirurgias desnecessárias;
Em crianças maiores que 1 ano de idade com quadro de colestase, não definido por exame de imagem; nos casos de suspeita de cistos de colédoco, colangite esclerosante primária e anomalias anatômicas da junção biliopancreática; na avaliação de pacientes com crises de pancreatite aguda recorrentes (PAR) e em crianças com pancreatite crônica (PC).
Quando indicada, a CPRE apresenta uma sensibilidade de 86% e uma especificidade de 94% para o diagnóstico de atresia das vias biliares. No âmbito terapêutico, os procedimentos mais frequentemente realizados incluem a papilotomia endoscópica com remoção de cálculos biliares e pancreáticos, a inserção de próteses plásticas nas vias biliares e pancreáticas, além da remoção de parasitas da via biliar, como Ascaris lumbricoides e Fasciola hepatica.
A CPRE e a ecoendoscopia devem ser realizadas sob anestesia geral em todas as crianças com até 12 anos de idade, enquanto a sedação profunda é uma alternativa viável para adolescentes. Em relação à segurança do paciente, a proteção radiológica deve ser intensificada para áreas sensíveis como gônadas, tireoide, mama e retina nesta faixa etária. Para a prevenção de pancreatite aguda pós-CPRE, o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) é recomendado apenas para crianças com idade superior a 14 anos.
Mesmo nos dias atuais, há uma limitação significativa devido à falta de equipamentos específicos para a realização da CPRE e da ecoendoscopia em crianças menores de 1 ano ou com peso inferior a 10 kg, já que a fabricação de aparelhos pediátricos foi descontinuada. Em crianças com peso superior a 10 kg submetidas à CPRE, o duodenoscópio terapêutico adulto pode ser utilizado. Para os casos em que a ecoendoscopia é indicada, o ecoendoscópio adulto pode ser empregado em crianças com mais de 15 kg, enquanto o ultrassom endobrônquico (EBUS) é uma opção viável para crianças abaixo desse peso. As Tabelas 1 e 2 apresentam os duodenoscópios atualmente comercializados no mundo, enquanto a Tabela 3 sugere a seleção desses aparelhos de acordo com o peso e a idade. Os modelos de ecoendoscópios disponíveis estão nas Tabelas 4 e 5, sendo que a Tabela 6 apresenta a seleção desses dispositivos com base na idade e no peso.
Fabricante
Modelo
Diâmetro externo da extremidade distal (mm)
Comprimento de trabalho (mm)
Diâmetro interno do canal (mm)
Olympus
TJF-160F/160VF
13,2
1240
4,2
TJF-Q180V
13,7
1240
4,2
JF-260V
12,6
1240
3,7
TJF-260V
13,5
1240
4,2
TJF-Q190V/Q290V
13,5
1249
4,2
FUJIFILM
ED-580T
13,1
1250
4,2
ED-580XT
13,1
1250
4,2
PENTAX
ED32-i10
12,5
1250
3,2
ED34-i10T2
13,6
1250
4,2
Tabela 1. Duodenoscópios padrão para adultos.
Fabricante
Modelo
Diâmetro externo da extremidade distal (mm)
Comprimento de trabalho (mm)
Diâmetro interno do canal (mm)
Olympus
PJF
8,8
1130
2,0
PJF-7.5
8,0
1030
2,0
PJF-240
8,0
1230
2,0
Tabela 2. Duodenoscópios finos para neonatos, lactentes e crianças (produtos descontinuados).
Endoscópio
Idade
Peso
Duodenoscópios finos
<1–2 anos
<10 kg
Duodenoscópios padrão
>1–2 anos
>10 kg
Tabela 3. Seleção de endoscópios com base na idade e no peso.
Fabricante
Modelo
Diâmetro Distal (mm)
Canal Interno (mm)
Transdutor / Ângulo
Olympus
GF-UC160P-OL5
14,2
2,8
Convexo / 150°
GF-UCT160-OL5
14,6
3,7
Convexo / 150°
GF-UE260-AL5
13,8
2,2
Radial / 360°
GF-UCT180/260
14,6
3,7
Convexo / 180°
TGF-UC180J/260J
14,6
3,7
Convexo / 90°
GF-UE190/290
13,4
2,2
Radial / 360°
FUJIFILM
EG-530UL2
14,2
2,2
Linear
EG-580UR
11,4
2,8
Radial / 360°
EG-580UT
13,9
3,8
Convexo / 150°
PENTAX
EG34-J10U
12,9
2,8
Convexo / 150°
EG36-J10UR
10,4
10,4
10,4
EG38-J10UT
14,3
4,0
Convexo / 150°
Tabela 4. Ecoendoscópios padrão (EUS) para adultos.
Fabricante
Modelo
Diâmetro Distal (mm)
Canal Interno (mm)
Transdutor / Ângulo
Olympus
BF-UC160F
6,9
2,0
Convexo / 80°
BF-UC180F/260FW
6,9
2,2
Convexo / 60°
BF-UC190F/290F
6,6
2,2
Convexo / 65°
FUJIFILM
EB-530US
6,7
2,0
Convexo / 65°
PENTAX
EB-1970UK
7,4
2,0
Convexo / 75°
EB19-J10U
7,3
2,2
Convexo / 75°
Tabela 5. Broncoendoscópios (EBUS).
Endoscópio
Idade
Peso
Broncoendoscópios (EBUS)
<3–4 anos
<15 kg
Ecoendoscópio padrão
>3–4 anos
>15 kg
Tabela 6. Seleção de endoscópios com base na idade e no peso
Radan Keil e colaboradores realizaram uma análise retrospectiva de uma série de casos envolvendo 626 pacientes pediátricos submetidos a 856 CPREs ao longo de um período de 18 anos. Em crianças com menos de 1 ano ou peso inferior a 12 kg, foram utilizados duodenoscópios de 7,5 mm com canal de trabalho de 2 mm, sendo a principal dificuldade o uso limitado de acessórios disponíveis para este tipo de aparelho. Para crianças entre 1 e 3 anos, foram empregados duodenoscópios diagnósticos com diâmetro de 11 mm e canal de trabalho de 3,2 mm. A partir dos 3 anos de idade, foi possível utilizar duodenoscópios terapêuticos com 13,5 mm de diâmetro e canal de trabalho de 4,2 mm.
As principais indicações para a realização da CPRE neste estudo foram a avaliação de casos de obstrução biliar e pancreatite crônica em todas as faixas etárias. A posição pronada foi a preferida para a realização do procedimento. O índice global de sucesso foi de 94,6%, enquanto o maior índice de insucesso (7,8%) ocorreu no grupo de pacientes com menos de 1 ano de idade, embora não tenha havido diferença estatisticamente significativa entre as diferentes faixas etárias.
A CPRE com finalidade terapêutica foi realizada em 58,8% dos procedimentos, dos quais 13% foram destinados ao tratamento de condições pancreáticas e 10,2% envolveram crianças com menos de 1 ano de idade. Entre as 23 CPREs realizadas em pacientes dessa faixa etária, apenas uma papilotomia foi realizada, e 20 stents de 5 Fr foram introduzidos na via biliar. Nessa faixa etária, houve apenas um caso de perfuração, sem relatos de pancreatite. A incidência global de pancreatite foi de 1,6%.
Sendo assim, tanto a CPRE quanto a ecoendoscopia podem ser considerados procedimentos seguros na faixa etária pediátrica, incluindo crianças com peso inferior a 10 kg. O principal desafio, no entanto, permanece sendo a disponibilidade de equipamentos e acessórios adequados no mercado.
Referências
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Keil R, Drábek J, Lochmannová J, Šťovíček J, Koptová P, Wasserbauer M, Frýbová B, Šnajdauf J, Matouš J, Kotalová R, Rygl M, Hlava Š. ERCP in infants, children, and adolescents-Different roles of the methods in different age groups. PLoS One. 2019 Jan 17;14(1):e0210805. doi: 10.1371/journal.pone.0210805. PMID: 30653580; PMCID: PMC6336232.
Agarwal J, Nageshwar Reddy D, Talukdar R, Lakhtakia S, Ramchandani M, Tandan M, Gupta R, Pratap N, Rao GV. ERCP in the management of pancreatic diseases in children. Gastrointest Endosc. 2014 Feb;79(2):271-8. doi: 10.1016/j.gie.2013.07.060. Epub 2013 Sep 21. PMID: 24060520.
Zeng JQ, Deng ZH, Yang KH, Zhang TA, Wang WY, Ji JM, Hu YB, Xu CD, Gong B. Endoscopic retrograde cholangiopancreatography in children with symptomatic pancreaticobiliary maljunction: A retrospective multicenter study. World J Gastroenterol. 2019 Oct 28;25(40):6107-6115. doi: 10.3748/wjg.v25.i40.6107. PMID: 31686766; PMCID: PMC6824283.
Tringali A, Thomson M, Dumonceau JM, Tavares M, Tabbers MM, Furlano R, Spaander M, Hassan C, Tzvinikos C, Ijsselstijn H, Viala J, Dall’Oglio L, Benninga M, Orel R, Vandenplas Y, Keil R, Romano C, Brownstone E, Hlava Š, Gerner P, Dolak W, Landi R, Huber WD, Everett S, Vecsei A, Aabakken L, Amil-Dias J, Zambelli A. Pediatric gastrointestinal endoscopy: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) and European Society for Paediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition (ESPGHAN) Guideline Executive summary. Endoscopy. 2017 Jan;49(1):83-91. doi: 10.1055/s-0042-111002. Epub 2016 Sep 12. PMID: 27617420.
Tagawa M, Morita A, Imagawa K, Mizokami Y. Endoscopic retrograde cholangiopancreatography and endoscopic ultrasound in children. Dig Endosc. 2021 Nov;33(7):1045-1058. doi: 10.1111/den.13928. Epub 2021 Feb 25. PMID: 33423305.
Liu QY, Gugig R, Troendle DM, Bitton S, Patel N, Vitale DS, Abu-El-Haija M, Husain SZ, Morinville VD. The Roles of Endoscopic Ultrasound and Endoscopic Retrograde Cholangiopancreatography in the Evaluation and Treatment of Chronic Pancreatitis in Children: A Position Paper From the North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology, and Nutrition Pancreas Committee. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2020 May;70(5):681-693. doi: 10.1097/MPG.0000000000002664. PMID: 32332479.
Como citar este artigo
Ide E. e Dall’Agnol MK. Endoscopic Retrograde Cholangio-Pancreatography and Endoscopic Ultrasound in the Management of Paediatric Acute Recurrent Pancreatitis and Chronic Pancreatitis. Endoscopia Terapeutica. 2025 vol. I. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/endoscopic-retrograde-cholangio-pancreatography-and-endoscopic-ultrasound-in-the-management-of-paediatric-acute-recurrent-pancreatitis-and-chronic-pancreatitis/
Drenagem biliar ecoguiada: resumo e considerações sobre o guideline americano (ASGE) de 2024
Imagem de fluoroscopia de drenagem biliar ecoguiada. Autoria e crédito: Dr. Mateus Pereira Funari.
Introdução
A drenagem biliar ecoguiada (EUS-BD) vem ganhando cada vez mais espaço na rotina do ecoendoscopista terapêutico com aumento da disponibilidade de materiais, desenvolvimento de próteses dedicadas e aumento da expertise nos centros de referência. A EUS-BD é uma das principais alternativas – junto com a drenagem biliar transparietohepática (DTPH) – para drenagem biliar após falha da CPRE. A EUS-BD também foi estudada como técnica primária comparada à CPRE. Uma metanálise de 2019 baseada em três ensaios clínicos randomizados comparando EUS-BD x CPRE como técnica primária para drenagem biliar em obstrução maligna distal, demonstrou menor disfunção de prótese na EUS-BD com sucesso técnico, clínico e eventos adversos sem diferenças em relação a CPRE (1). Apesar dos resultados, essa abordagem não ganhou espaço na maioria dos centros, de forma que a indicação mais consagrada da drenagem biliar ecoguiada permanece nos casos de falha da CPRE. Desde 2016, quando foi publicado o primeiro artigo sobre Drenagem Biliar Ecoguiada – Breve Revisão da Literatura neste portal, houve evolução técnica e amadurecimento sobre o tema, que ganhou mais relevância na prática clínica, levando ao desenvolvimento de um guideline pela “American Society for Gastrointestinal Endoscopy” (ASGE), publicado em 2024 (2). Faremos um resumo do guideline da ASGE neste artigo baseado nas 5 questões trabalhadas pelo grupo. Apresentaremos a recomendação formal, a literatura que suportou a recomendação, as considerações colocadas no guideline sobre a questão e um espaço para comentários a respeito da questão feito pelo autor deste artigo.
Definições
Drenagem biliar ecoguiada (EUS-BD) defini-se pela drenagem utilizando ecoendoscopia para puncionar a via biliar intra ou extra-hepática. Há quatro técnicas descritas: EUS-BD rendezvous, drenagem ecoguiada coledocoduodenal (EUS-CD), drenagem ecoguiada hepatogástrica (EUS-HG) e drenagem anterógrada.
EUS-BD rendezvous: punção ecoguiada da via biliar seguida de progressão do fio-guia até o duodeno (transpapilar). Troca de aparelho por duodenoscópio e canulação transpapilar auxiliada pelo fio-guia
EUS-CD: drenagem ecoguiada com prótese da via biliar extra-hepática através da janela bulbar, conectando a via biliar extra-hepática e o duodeno
EUS-HG: drenagem ecoguiada com prótese da via biliar intra-hepática esquerda através da janela gástrica, conectando a via biliar intra-hepática esquerda com o estômago
Drenagem ecoguiada da vesícula biliar (EUS-VB): drenagem ecoguiada da vesícula biliar com prótese através da janela gástrica ou bulbar, conectando a vesícula biliar com o estômago ou o duodeno
CPRE por acesso transgástrico ecoguiado: passagem de prótese metálica com aposição de lumens (LAMS) conectando o estômago excluso e o “pouch” ou o jejuno, possibilitando a progressão do duodenoscópio até o duodeno, em pacientes submetidos a gastroplastia redutora (“bypass”)
GATE (“Gastric Access Temporary for Endoscopy”): um termo mais amplo para técnica de conexão do estômago excluso com o “pouch” ou jejuno. Pode ser usado para realização de CPRE, ressecção/biópsias de lesões, sangramentos e outros motivos
EDGE (“Endoscopic Ultrasound Directed Transgastric ERCP”): termo mais específico para quando se faz um GATE para a realização de CPRE
OBS: muitas vezes GATE e EDGE são usados como sinônimos
Questões e recomendações da ASGE
EUS-BD vs. DTPH para pacientes com obstrução biliar após falha da CPRE
Recomendação: sugere EUS-BD em relação à DTPH em obstrução biliar após falha da CPRE (recomendação condicional, baixa qualidade de evidência)
Literatura: foram identificados 2 ensaios clínicos randomizados (ECR) e 11 estudos observacionais, com total de 379 pacientes no grupo EUS-BD e 376 no DTPH. A metanálise dos desfechos demonstrou menos eventos adversos e menos necessidade de reintervenção no grupo EUS-BD. Sucesso técnico e mortalidade em 30 dias foram iguais entre os grupos. Em relação ao sucesso clínico, as coortes demonstraram maior taxa no grupo EUS-BD enquanto nos dois ECR não houve diferença entre os grupos.
Considerações:
Suspeita de doença benigna: EUS-BD por rendezvous é a técnica preferida
Pacientes com ascite volumosa: considerar drenar ascite antes da drenagem biliar
Pacientes com possibilidade cirúrgica: discutir melhor via de drenagem com equipe cirúrgica
DTPH é preferível se: instabilidade hemodinâmica, suspeita de etiologia maligna, falta de expertise/material adequado para EUS-BD
Comentários: na discussão fica claro o receio dos autores em relação a possibilidade cirúrgica após EUS-BD, especialmente se realizada drenagem transmural coledocoduodenal, sendo recomendado nesses casos sempre discussão em equipe multidisciplinar. Um ponto controverso nessa primeira questão foi que, dentre as situações preferíveis para DTPH, foi colocado a etiologia maligna suspeita, porém na discussão não foi explicada essa questão. Dessa forma, ficou bastante controverso uma recomendação favorecendo EUS-BD no geral, porém dando preferência à DTPH em casos de suspeita de etiologia maligna, pois a grande maioria dos casos de obstrução biliar com falha de acesso pela CPRE são neoplásicas.
EDGE vs. CPRE assistida por laparoscopia (CPRE-LA) vs. CPRE por enteroscopia (CPRE-E) em pacientes com gastroplastia redutora tipo “by-pass” (BGYR) e obstrução biliar
Recomendação: sugere EDGE como primeira opção para pacientes com BGYR e indicação de CPRE (recomendação condicional, baixa qualidade de evidência)
Literatura: foram identificados 4 estudos observacionais e nenhum ECR, com total de 176 pacientes no grupo EDGE, 396 no CPRE-LA e 172 no CPRE-E. A metanálise dos desfechos comparando EDGE vs. CPRE-E demonstrou o grupo EDGE com maior sucesso tanto técnico quanto clínico, menos eventos adversos, menor necessidade de reintervenção e menor tempo de procedimento. A metanálise dos desfechos comparando EDGE vs. CPRE-LA demonstrou sucesso técnico, sucesso clínico e eventos adversos sem diferença entre os grupos, porém EDGE teve um menor tempo de procedimento.
Considerações:
EDGE é especialmente preferível à CPRE-LA quando: suspeita de lesão ampular, doença maligna ou necessidade de repetir CPRE no futuro
CPRE-LA é preferível à EDGE quando o paciente tem indicação de colecistectomia
Quando não há janela segura para EDGE, CPRE-LA ou CPRE-E podem ser realizadas
Fístula gastrogástrica persistente pós-GATE: 9% em seguimento médio de 182 dias; não houve ganho de peso nesses pacientes. Os autores consideram que o reganho de peso pós-GATE não deve ser uma preocupação.
Comentários: além dos óbvios vieses e limitações da metanálise de apenas 4 estudos observacionais, o que enfraquece a recomendação, é importante lembrar que o procedimento de EDGE é geralmente realizado em 2 tempos – acesso gastrogástrico com LAMS no primeiro momento e, cerca de 7 dias após, é feita a CPRE através da prótese num segundo momento. Apesar de alguns centros já realizarem EDGE em tempo único – especialmente em casos de emergência como colangite -, a técnica padrão preconizada ainda é em dois tempos. Dessa forma, quando observamos que a única diferença na metanálise entre EDGE e CPRE-LA foi o tempo de procedimento, devemos lembrar que se trata da soma dos tempos de procedimento dos dois tempos da EDGE versus o tempo total da CPRE-LA. Ou seja, o tempo “líquido” da EDGE foi menor, porém – considerando o procedimento em duas etapas – o tempo “bruto” (tempo decorrido do início do procedimento até a resolução da obstrução biliar) certamente foi menor na CPRE-LA.
EDGE vs. CPRE-E vs. DTPH em pacientes com outras alterações anatômicas cirúrgicas (Bilrroth II, pancreaticoduodenectomia, hepaticojejunostomia em Y de Roux) e obstrução biliar
Recomendação: sugere E-CPRE como abordagem inicial em pacientes com outras alterações anatômicas e obstrução biliar. Na falha, tanto EUS-BD quanto DTPH podem ser realizados (recomendação condicional, baixa qualidade de evidência).
Literatura: foram identificados 15 estudos observacionais e nenhum ECR, sendo 3 comparando EUS-BD vs. CPRE-E e 12 comparando EUS-BD vs DTPH. No total, foram estudados 299 pacientes no grupo EUS-BE, 92 no CPRE-E e 89 DTPH. A metanálise dos desfechos comparando EUS-BD vs. CPRE-E demonstrou maior sucesso técnico e clínico no grupo EUS-BD, porém com mais eventos adversos. A metanálise dos desfechos comparando EUS-BD vs. DTPH não demonstrou diferença entre os grupos em relação ao sucesso técnico, sucesso clínico, necessidade de reintervenção e eventos adversos.
Considerações:
CPRE-E foi sugerida como 1ª opção devido a menor taxa de eventos adversos, apesar de sucesso técnico e clínico menor que a EUS-BD
O sucesso técnico da CPRE-E está diretamente relacionada ao tamanho da alça intestinal a ser percorrida até o acesso biliar. Os autores sugerem sempre que possível verificar a descrição cirúrgica para identificar esse dado e direcionar a melhor técnica
EUS-BD: é necessária dilatação da via biliar intra-hepática esquerda para possibilidade técnica nesses casos
Comentários: a recomendação de se tentar a CPRE-E como primeira opção é bastante racional tendo em vista a baixa taxa de eventos adversos envolvidos. Porém, em cirurgias com reconstrução em Y com alças longas, o sucesso técnico da CPRE-E é bastante reduzido, tanto pela dificuldade de acesso à anastomose enterobiliar quanto pela dificuldade e indisponibilidade de materiais dedicados à CPRE apropriados ao enteroscópio – que é mais longo e com canal de trabalho geralmente menor que o duodenoscópio. Apesar de não terem especificado quantos pacientes realizaram cada tipo de cirurgia em cada grupo – o que muda completamente o cenário -, podemos supor que uma quantidade considerável foram pacientes submetidos a gastrectomia com reconstrução a Billroth II, e o acesso à papila duodenal nesses casos pode ser realizada com gastroscópio, colonoscópio ou mesmo duodenoscópio, o que supera as limitações do uso do enteroscópio para CPRE. Dessa forma, utilizar a via enteral para realizar CPRE em paciente com Billroth II como primeira opção – preferencialmente utilizando outros aparelhos que não ou enteroscópio – é bastante óbvia. Por outro lado, em pacientes com reconstrução em Y de Roux e alças longas, a possibilidade de DTPH ou EUS-BD como técnicas primárias podem ser consideradas – apesar de uma primeira tentativa por CPRE-E ser válida.
EUS-VB vs. drenagem percutânea (DP-VB) vs. drenagem transcística por CPRE (CPRE-VB) para colecistite aguda em pacientes não cirúrgicos
Recomendação: sugere EUS-VB para resolução da colecistite aguda em pacientes não cirúrgicos (recomendação condicional, baixa qualidade de evidência).
Literatura: foram identificados 7 estudos observacionais e 1 ECR, sendo 5 comparando EUS-VB vs. DP-VB – incluindo 1 ECR – e 3 comparando EUS-VB vs. CPRE-VB. No total, foram estudados 346 pacientes no grupo EUS-VB, 276 no PT-VB e 163 CPRE-VB . A metanálise dos desfechos comparando EUS-VB vs. DP-VB demonstrou menor necessidade de reintervenção, menor readmissão e menor necessidade de colecistectomia no grupo EUS-VB. Não houve diferença na mortalidade em 30 dias nem no sucesso clínico. No ECR comparando as duas técnicas, ainda houve menos eventos adversos e menos colecistite recorrente após a drenagem no grupo EUS-VB. Os estudos observacionais a PT-VB apresentou maior sucesso técnico. Nos estudos comparando EUS-VB vs. CPRE-VB, a metanálise dos desfechos demonstrou maior sucesso técnico, maior sucesso clínico, menos pancreatite pós procedimento e menos colecistite recorrente no grupo EUS-VB. Não houve diferença em relação a mortalidade em 30 dias, eventos adversos, necessidade de reintervenção e necessidade de colecistectomia.
Considerações:
Preferência por DP-VB: perfuração da vesícula biliar; colecistite enfisematosa; instabilidade clínica; indisponibilidade de EUS-VB
Preferência maior por EUS-VB: prótese metálica ocluindo o ducto cístico; grande quantidade de cálculos na vesícula biliar
Evitar EUS-VB em pacientes candidatos a cirurgia após melhora clínica (colecistectomia ao transplante hepático)
Preferência por CPRE-VB: ascite volumosa; infiltração maligna da vesícula biliar; coagulopatia severa; indicação de CPRE por outro motivo (ex: coledocolitíase associada)–
Comentários: apesar da recomendação ser preferencialmente por EUS-VB, há dois principais pontos que devem ser considerados. O primeiro é em relação ao custo e disponibilidade da prótese adequada – que deve ser preferencialmente uma LAMS com eletrocautério. Apesar dos autores não terem identificado desfecho de custo nos estudos, sabemos que se trata de material mais caro e menos disponível que o dreno percutâneo na grande maioria dos hospitais, especialmente em países em desenvolvimento como o Brasil. O segundo ponto de atenção é em relação a possibilidade de colecistectomia após melhora clínica. Os autores colocam que deve ser evitada EUS-VB nesses pacientes pois a presença da prótese metálica transgástrica ou transduodenal pode dificultar a execussão da colecistectomia, de forma que a EUS-VB deve ser considerada em pacientes que não seriam candidatos a cirurgia mesmo antes do evento agudo – como pacientes com demência avançada, oncológicos avançados, paliativos em geral e outros -, limitando bastante o espectro de pacientes no qual a EUS-VB seria de fato a primeira opção.
Algoritmos
Com a intenção de sintetizar as recomendações, os autores sugeriram três algoritmos – traduzidos e adaptados a seguir – para o manejo das condições abordadas no guideline. É importante enfatizar que, devido a baixa qualidade de evidência de todas as recomendações e as inúmeras condições e considerações colocadas em cada questão, os algoritmos sugeridos devem ser utilizados com parcimônia e crítica.
Algoritmo proposto para drenagem biliar após falha da CPRE
CPRE: colangiopancreatografia retrógrada endoscópica; EUS-BD: drenagem biliar ecoguiada; DTPH: drenagem transparietohepática; EUS-CD: drenagem ecoguiada coledocoduodenal; EUS-HG: drenagem ecoguiada hepatogástrica. Adaptado de “American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on the role of therapeutic EUS in the management of biliary tract disorders: summary and recommendations”, GIE, 2024 (2)
Algoritmo proposto para drenagem biliar em pacientes com “bypass’ gástrico em Y de Roux
BGYR: by-pass gástrico em Y de Roux; CPRE: colangiopancreatografia retrógrada endoscópica; EDGE: “Endoscopic Ultrasound Directed Transgastric ERCP”; ECO: ecoendoscopia digestiva alta; EUS-VB: drenagem ecoguiada da vesícula biliar; CPRE-LA: CPRE assistida por laparoscopia. Adaptado de “American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on the role of therapeutic EUS in the management of biliary tract disorders: summary and recommendations”, GIE, 2024 (2)
Algoritmo proposto para pacientes com colecistite aguda sem condições cirúrgicas com necessidade de drenagem da vesícula biliar
VB: vesícula biliar; CCT: colecistectomia; EUS-VB: drenagem ecoguiada da vesícula biliar; DP-VB: drenagem percutânea da vesícula biliar; CPRE-VB: drenagem transcística por colangiopancreatografia retrógrada endoscópica. Adaptado de “American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on the role of therapeutic EUS in the management of biliary tract disorders: summary and recommendations”, GIE, 2024 (2)
Conclusão
A drenagem biliar ecoguiada vem ganhando cada vez mais espaço na resolução dos distúrbios biliares em diversos contextos e patologias diferentes. Apesar de uma técnica relativamente nova, que exige treinamento especializado e materiais dedicados, já demonstra algumas vantagens em relação a outras opções técnicas em alguns cenários – em especial quando comparada à drenagem transparietohepática (DTPH), que apesar de segura e bastante difundida, apresenta limitações e inconvenientes ao paciente que podem ser superados com a drenagem ecoguiada. Apesar do guideline da ASGE sugerir a drenagem ecoguiada como preferência na maioria dos cenários discutidos, as recomendações devem ser interpretadas com cautela, tanto pela baixa qualidade das evidências que suportam as recomendações quanto pelas diversas condições e considerações colocadas. A discussão interdisciplinar considerando as peculiaridades de cada caso é imprescindível para a determinação da melhor conduta.
Referências
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ASGE Standards of Practice Committee; Pawa S, Marya NB, Thiruvengadam NR, Ngamruengphong S, Baron TH, Bun Teoh AY, Bent CK, Abidi W, Alipour O, Amateau SK, Desai M, Chalhoub JM, Coelho-Prabhu N, Cosgrove N, Elhanafi SE, Forbes N, Fujii-Lau LL, Kohli DR, Machicado JD, Navaneethan U, Ruan W, Sheth SG, Thosani NC, Qumseya BJ; (ASGE Standards of Practice Committee Chair). American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on the role of therapeutic EUS in the management of biliary tract disorders: summary and recommendations. Gastrointest Endosc. 2024 Dec;100(6):967-979. doi: 10.1016/j.gie.2024.03.027. Epub 2024 Jul 29. PMID: 39078360.
Como citar este artigo
Proença IM. Drenagem biliar ecoguiada: resumo e considerações sobre o guideline americano (ASGE) de 2024. Endoscopia Terapeutica, 2025 vol I. Dispnível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/drenagem-biliar-ecoguiada-resumo-e-consideracoes-sobre-o-guideline-americano-asge-de-2024/
Drenagem ecoguiada da vesícula biliar na colecistite aguda: o que diz a literatura atual?
Introdução
A drenagem da vesícula biliar guiada por ecoendoscopia (EUS-GBD) tem emergido como uma alternativa minimamente invasiva para o manejo de pacientes com colecistite aguda com alto risco cirúrgico para a abordagem cirúrgica por colecistectomia, podendo também ser utilizada para internalização de drenagem percutânea em pacientes que não serão candidatos à abordagem cirúrgica1.
As principais técnicas de drenagem incluem o uso de stents metálicos autoexpansíveis, com destaque para a utilização do stent metálico com aposição de lúmens (LAMS) – clique aqui para saber mais sobre LAMS. Em casos que envolvam dificuldade de posicionamento, vesícula fibrótica ou presença de drenos percutâneos que dificultem a visualização da vesícula, o uso de fio guia pode trazer maior segurança ao procedimento.
A escolha da janela de drenagem é indicada com base na anatomia do paciente e na proximidade das estruturas, sendo a distância de 10 mm entre a parede do TGI e o lúmen da vesícula considerada segura. O acesso pode ser realizado pela janela transgástrica ou transduodenal, sendo que a primeira tem por vantagem a facilidade de acesso cirúrgico ao sítio de punção em caso de colecistectomia posterior, enquanto que o posicionamento no bulbo duodenal pode reduzir a ocorrência de migração da prótese e impactação alimentar. O posicionamento de próteses duplo pig tail no interior da LAMS pode mitigar a ocorrência de sangramento e impactação alimentar2.
Algumas contraindicações ao procedimento incluem a presença de coagulopatia significativa, perfuração da vesícula biliar, peritonite biliar e ascite volumosa1,2,3.
Imagem de drenagem ecoguiada da vesícula biliar em etapas, adaptada de Irani et al., AGA Clinical Practice Update on Role of EUS-Guided Gallbladder Drainage in Acute Cholecystitis: Commentary. Clin Gastroenterol Hepatol. 2023 2
Resultados da literatura atual
Em comparação à drenagem percutânea, a EUS-GBD demonstra resultados que indicam vantagens, como menor risco de infecção e complicações pós-procedimento, podendo promover melhores resultados de longo prazo. Estudo randomizado multicêntrico com 80 pacientes, comparando as duas técnicas, demonstrou redução significativa de eventos adversos em um ano, reintervenções e internações hospitalares, com resultados similares em sucesso técnico, clínico e mortalidade4. Da mesma forma, uma metanálise abarcando 1155 pacientes em 11 estudos demonstrou menores eventos adversos, reintervenções e recorrência da colecistite na EUS-GBD com LAMS com eletrocautério acoplado, quando comparada à drenagem percutânea, porém, quando incluídos estudos com todos os modelos de próteses para EUS-GBD, não houve diferença estatística entre as abordagens5.
No que tange aos eventos adversos relacionados ao procedimento, os principais relatados envolvem obstrução ou deslocamento da prótese, peritonite, pneumoperitônio, abscesso e recorrência da colecistite. Em um estudo que realizou o seguimento dos pacientes ao longo de 3 anos a ocorrência de eventos adversos foi de 18%, 20% e 26% em cada ano, com recorrência de colangite em 4% dos casos6. Foi relatado ainda que os eventos sintomáticos relacionados à LAMS ocorriam principalmente no posicionamento gástrico em comparação ao duodenal6.
Podem também ocorrer eventos adversos intra-procedimento que envolvem sangramento, mal posicionamento ou deslocamento da prótese, perfuração e complicações cardiovasculares. Estes algumas vezes podem ser manejados por endoscopia com uso de métodos hemostáticos, reposicionamento ou colocação de novas próteses, mas por vezes podem requerer abordagem cirúrgica de urgência7.
A realização de colecistoscopia pode ser indicada após a resolução da colecistite aguda visando a remoção completa dos cálculos da vesícula biliar, nesta ocasião pode-se substituir a LAMS por prótese do modelo duplo pig tail. Outra abordagem, principalmente utilizada em pacientes de alto risco, é manter a LAMS, com realização de nova abordagem apenas caso necesário2.
Considerações finais
A EUS-GBD vem se tornando uma opção estabelecida no manejo de pacientes com colecistite aguda e alto risco cirúrgico, apresentando resultados favoráveis reportados na literatura. A adequada seleção de pacientes envolve abordagem multidisciplinar entre as equipes de endoscopia, radiologia intervencionista e cirurgia, devendo-se considerar fatores como comorbidades, potencial para abordagem cirúrgica posterior, características anatômicas e disponibilidade de profissionais e material.
Há tendência a escolha pela EUS-GBD em pacientes que não sejam bons candidatos à abordagens de repetição, presença de fatores de obstrução do ducto cístico e pacientes com múltiplos cálculos que possam se beneficiar da realização de colecistoscopia2
Tabela comparativa entre as técnicas de drenagem da vesícula biliar, adaptada de Irani et al., AGA Clinical Practice Update on Role of EUS-Guided Gallbladder Drainage in Acute Cholecystitis: Commentary. Clin Gastroenterol Hepatol. 2023 2
Irani SS, Sharzehi K, Siddiqui UD. AGA Clinical Practice Update on Role of EUS-Guided Gallbladder Drainage in Acute Cholecystitis: Commentary. Clin Gastroenterol Hepatol. 2023 May;21(5):1141-1147.
Pawa S, Marya NB, Thiruvengadam NR, et al. American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on the role of therapeutic EUS in the management of biliary tract disorders: summary and recommendations. Gastrointest Endosc. 2024 Jul 29:S0016-5107(24)00188-3.
Teoh AYB, Kitano M, Itoi T , et al. Endosonography-guided gallbladder drainage versus percutaneous cholecystostomy in very high-risk surgical patients with acute cholecystitis: an international randomised multicentre controlled superiority trial (DRAC 1). Gut. 2020 Jun;69(6):1085-1091.
Hemerly MC, de Moura DTH, do Monte Junior ES, et al. Endoscopic ultrasound (EUS)-guided cholecystostomy versus percutaneous cholecystostomy (PTC) in the management of acute cholecystitis in patients unfit for surgery: a systematic review and meta-analysis. Surg Endosc. 2023 Apr;37(4):2421-2438.
Martinez-Moreno B, López-Roldán G, Martínez-Sempere J, et al. Long-term results after EUS gallbladder drainage in high-surgical-risk patients with acute cholecystitis: A 3-year follow-up registry. Endosc Int Open. 2023 Nov 10;11(11):E1063-E1068.
Binda C, Anderloni A, Forti E, et al. EUS-Guided Gallbladder Drainage Using a Lumen-Apposing Metal Stent for Acute Cholecystitis: Results of a Nationwide Study with Long-Term Follow-Up. Diagnostics (Basel). 2024 Feb 13;14(4):413.
Como citar este artigo
Logiudice FP. Drenagem ecoguiada da vesícula biliar na colecistite aguda: o que diz a literatura atual?. endoscopia Terapeutica 2024, vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/rascunho-automatico/
IPMN: o que mudou de Fukuoka a Kyoto
1.Introdução
As lesões císticas pancreáticas tem sido cada vez mais diagnosticadas, tanto pelo aumento da incidência dessas lesões quanto pela realização e acesso crescente a exames de imagem que eventualmente identificam tais lesões. A neoplasia mucinosa papilar intraductal (IPMN) é uma das principais lesões císticas do pâncreas, tanto pela sua incidência quanto pelo seu potencial de transformação maligna, porém sua apresentação e evolução apresentam um espectro amplo de possibilidades. Como o potencial maligno do IPMN de ducto secundário varia de 1 a 38%, é fundamental identificar quais lesões apresentam risco aumentado e quais podem ser apenas acompanhadas, evitando cirurgias desnecessárias que envolvem riscos e morbi-mortalidade consideráveis. Já o IPMN de ducto principal apresenta um potencial maligno maior, de 33 a 85%, sendo indicada a ressecção cirúrgica sempre que o ducto pancreático principal (DPP) esteja dilatado em 10 mm ou mais e o paciente apresente condições clínicas e expectativa de vida compatível com a abordagem cirúrgica (1).
Para padronizar o manejo dos IPMN com base nas melhores evidências disponíveis, a Associação Internacional de Pancreatologia (IAP) publicou o primeiro guideline contemplando as lesões císticas pancreáticas mucinosas – IPMN e cistoadenoma mucinoso – em 2006 (2). Este guideline foi revisado em 2012 (3) e, posteriormente em 2017, um novo guideline com foco apenas nos IPMN foi publicado, e ficou conhecido como o consenso de Fukuoka (4). Os critérios de Fukuoka foram amplamente divulgados e discutidos ao longo dos últimos anos, sendo ferramenta chave no manejo dos IPMN, que já foi tema de publicação no Endoscopia Terapêutica (clique aqui para Critérios de Fukuoka para IPMN). Mais recentemente, em 2022 no encontro da IAP realizado em Kyoto, o consenso de Fukuoka foi revisado, sendo o novo guideline publicado na Pancreatology em 2024 (5).
Neste artigo, iremos abordar o novo guideline de Kyoto, enfatizando o que mudou desde o último consenso em Fukuoka à luz do recente artigo publicado na The New England Journal of Medicine sobre o tema (1), sendo essas as duas referências para os próximos tópicos (1, 5).
2.Conceitos e definições
Não houve mudança em relação às definições dos três tipos de IPMN, que podem ser de ducto secundário (“Branch duct-IPMN” ou BD-IPMN), de ducto principal (“Main-duct IPMN” ou MD-IPMN) ou misto – quando contempla os critérios tanto para BD-IPMN quanto para MD-IPMN. Os cistos pancreáticos >5mm com comunicação com o DPP devem ser classificados como BD-IPMN, enquanto uma dilatação do DPP >5mm sem fator obstrutivo é classificado como MD-IPMN. A importância e manejo de cistos pancreáticos assintomáticos <5mm permanece controverso.
Figura 1: Tipos de IPMN na ressonância magnética. Adaptado de Ohtsuka T, et al. Pancreatology. 2024 (5).
Os IPMN podem apresentar displasia de baixo grau ou displasia de alto grau – que também pode ser chamada de carcinoma in situ -, podendo chegar a carcinoma invasivo (CI). O objetivo no manejo dos IPMN é distinguir os IPMN de baixo grau (maioria) dos de alto grau, que evoluirão para carcinoma invasivo.
Em relação aos subtipos morfológicos, são reconhecidos três tipos: gástrico (mais frequente e melhor prognóstico), intestinal e pancreatobiliar (maior risco de malignização). O tipo oncocítico foi separado como entidade própria, sendo denominado neoplasia oncocítica papilar intraductal, devido principalmente estudos genéticos que identificaram diferenças significativas.
3.Investigação diagnóstica e exames complementares
Os exames de imagem primários na avaliação dos IPMN são a ressonância magnética (RM) e a tomografia computadorizada (TC), sendo a ecoendoscopia indicada para avaliação de achados sugestivos de displasia de alto grau e carcinoma invasivo.
Punção ecoguiada
A punção ecoguiada não está indicada de rotina. Ela deve ser indicada apenas quando há dúvida diagnóstica para diagnóstico diferencial com outras lesões císticas ou em casos nos quais a punção poderá mudar a conduta. Quando há evidência de alto risco para displasia de alto grau ou carcinoma invasivo na RM, a cirurgia está indicada e não há indicação de punção ecoguiada.
Para o diagnóstico diferencial com as demais lesões císticas pancreáticas, o CEA e a amilase são tradicionalmente os principais marcadores utilizados, porém estudos mais recentes destacam a glicose como importante marcador para distinguir lesões mucinosas de não mucinosas. Glicose <50ng/ml apresenta sensibilidade de 93%, especificidade de 89% e acurácia que pode chegar até 90 a 94%, tendo um rendimento melhor que o CEA – que apresenta uma sensibilidade de 58% e especificidade de 87%. É importante ressaltar que tais marcadores não apresentam relação com displasia de alto grau ou carcinoma in situ.
Em relação a punção ecoguiada com o objetivo de identificar displasia de alto grau ou carcinoma invasivo em casos limítrofes, a sensibilidade para identificação citológica no fluido cístico é de apenas 28,7%, porém o achado suspeito ou positivo apresenta especificidade de 91-100% e 100% respectivamente, e a ressecção cirúrgica estaria indicada. Para superar a baixa sensibilidade da punção aspirativa, foram desenvolvidos “microforceps” para biópsias através da agulha, que apresentam maior sensibilidade, apesar de um risco um pouco aumentado de pancreatite e sangramento. A punção ecoguiada também pode possibilitar a análise genética do conteúdo, que pode se relacionar tanto na confirmação do diagnóstico de IPMN (alterações nos genes KRAS e GNAS) quanto com risco de displasia de alto grau e carcinoma invasivo (alterações nos genes TP53, CTNNB1, CDKN2A, SMAD4, e genes envolvidos na via mTOR) – estes apresentando alta especificidade (92-98%) porém baixa sensibilidade (9-39%). Quando identificada áreas sólidas, as punções (se indicada) devem ser dirigidas a estas áreas, onde o rendimento diagnóstico é maior. No caso de avaliação de nódulos murais, a ecoendoscopia com contraste pode definir o caráter neoplásico ou não-neoplásico do nódulo, evitando a necessidade de punção ecoguiada, que apresenta um risco de “seeding” de cerca de 0,3%.
Pancreatoscopia
Pode ser útil nos casos de MD-IPMN e tipo misto com indicação de cirurgia para delimitar a extensão da ressecção e evitar a pancreatectomia total em alguns casos. Ela não deve ser realizada no intra-operatório pelo risco de disseminação neoplásica peritoneal e pela possível super-estimativa da extensão da lesão a ser ressecada, uma vez que a acurácia para diferenciar displasia de baixo grau (que não precisa ser ressecada) de alto grau (que deve ser ressecada) é baixa. Dessa forma, quando indicada, a pancreatoscopia deve ser realizada antes do procedimento cirúrgico, ficando a margem intra-operatória a critério da avaliação anatompatológica de congelação.
O que mudou: 1) a análise genética do material da punção ecoguiada pode auxiliar no diagnóstico e identificação de lesões de alto risco. 2) a pancreatoscopia pode auxiliar em alguns casos de MD-IPMN e tipo misto e, quando indicada, deve ser realizada antes da cirurgia (e não no intra-operatório).
4. Avaliação do risco – estigmas de alto risco e características preocupantes
Talvez a principal contribuição dos guidelines que abordam os IPMN seja identificar os achados e fatores que aumentam o risco de evolução para câncer e atribuir condutas a partir desses fatores. Desde a publicação de 2012 os termos “estigmas de alto risco” (high risk stigmata – HRS) e “características preocupantes” (worrisome features – WF) vem sendo utilizados para identificar os fatores que apresentam alto risco e risco intermediário, respectivamente.
4. a) Estigmas de alto risco
Icterícia obstrutiva em paciente com lesão cística na cabeça do pâncreas
Nódulo mural com realce ≥ 5mm ou componente sólido
Ducto pancreático principal ≥ 10mm
Citologia suspeita ou positiva (caso tenha sido indicada punção ecoguiada)
O que mudou: citologia suspeita ou positiva foi definida como estigma de alto risco
Figura 2: Estigmas de alto risco. Adaptado de Gonda TA, et al. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024 (1).
4. b) Características preocupantes (CP)
> Clínica
Pancreatite aguda
Aumento de CA 19-9
Início ou exacerbação aguda de Diabetes no último 1 ano
> Imagem
. Cisto ≥ 30mm
Nódulo mural com realce < 5mm
Paredes císticas espessadas ou com realce
Ducto pancreático principal ≥ 5mm e <10mm
Mudança abrupta de calibre do DPP com atrofia distal
Linfadenopatia
Crescimento cístico ≥ 2,5mm/ano
A presença de múltiplas CPs aumenta significativamente o risco de displasia de alto grau e carcinoma invasivo:
– 1 CP: 22% de risco – 2 CP: 34% de risco – 3 CP: 59% de risco – ≥4 CP: até 100% de risco
O que mudou: 1) um critério clínico novo foi incorporado – início ou exacerbação de diabetes no último ano; 2) um critério foi alterado – crescimento cístico ≥ 2,5mm/ano (antes era ≥ 5mm/2 anos; 3) foi incorporado o conceito de que múltiplas características preocupantes aumentam o risco de displasia de baixo grau e carcinoma invasivo.
Figura 3: Representação de 8 das 10 características preocupantes. Adaptado de Gonda TA, et al. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024 (1).
5) Fatores adicionais para avaliação nos pacientes com “características preocupantes”
Os pacientes que não têm estigmas de alto risco, porém apresentam alguma CP, devem ser avaliados para fatores adicionais que possam direcionar a conduta para o seguimento clínico ou uma tendência à indicação cirúrgica.
Foram alterados os três fatores considerados previamente em Fukuoka (que eram: presença de nódulo mural definitivo > 5mm, características suspeitas para envolvimento do DPP e citologia suspeita ou positiva). No atual guideline de Kyoto, esses fatores são: 1) pancreatite de repetição com piora da qualidade de vida; 2) múltiplas características preocupantes; 3) jovem com bom status clínico para cirurgia. A presença de um desses três fatores direciona para uma abordagem cirúrgica, enquanto a ausência dos três direciona para o seguimento clínico com exames de imagem periódicos.
O que mudou: os três fatores adicionais a serem avaliados em pacientes sem estigmas de alto risco porém com alguma CP – 1) pancreatite de repetição com piora da qualidade de vida; 2) múltiplas características preocupantes; 3) jovem com bom status clínico para cirurgia.
6) Seguimento de IPMN não ressecado
O risco de progressão dos BD-IPMN apresenta relação com o tamanho inicial do maior cisto ao diagnóstico, e, portanto, o seguimento preferencialmente com RM das lesões não candidatas à ressecção cirúrgica baseia-se no tamanho do maior cisto:
< 20mm: reavaliação em 6 meses. Se estável, a cada 18 meses
≥ 20 mm <30mm: reavaliação em 6 e 12 meses. Se estável, a cada 12 meses
≥ 30mm: a cada 6 meses
Em relação ao seguimento de lesões <20mm sem CP que permanecem estáveis, há controvérsia na literatura, de forma que o novo guideline admite duas possibilidades: manter o seguimento OU parar o seguimento após 5 anos. Dessa forma, os candidatos a interrupção do seguimento com exames de imagem são:
Cistos <20mm sem estigmas de alto risco ou CPs, estáveis por pelo menos 5 anos;
Pacientes não candidatos à cirurgia ou com expectativa de vida < 10 anos.
O seguimento dos IPMN é importante não só devido ao risco de progressão da lesão, mas também pelo risco aumentado em desenvolver adenocarcinoma de pâncreas sem relação com o IPMN, que pode ser até 5x maior do que a população geral, segundo estudos japoneses. Esse mecanismo foi chamado de “dupla carcinogênese” dos IPMN, e é um dos argumentos defendidos por aqueles que advogam em manter o seguimento mesmo em lesões pequenas estáveis.
Em relação aos BD-IPMN multifocais – que correspondem a 20-40% dos casos – não há risco aumentado de progressão e o manejo e seguimento deve ser de acordo com a maior lesão.
O que mudou: o seguimento de acordo com o tamanho do maior cisto, que antes distinguia quatro grupos (<1cm, 1-2cm, 2-3cm e > 3cm) foi reduzido para apenas três grupos (< 2cm, ≥ 2cm <30cm e ≥ 3cm).
7) Seguimento de IPMN não invasivo ressecado
Seguimento de IPMN não invasivo ressecado:
– Pancreatectomia total: seguimento por 5 anos;
– Pancreatectomia parcial: a cada 6-12 meses, até o paciente não ser mais candidato à cirurgia.
8) Algoritmo de manejo de BD-IPMN pelo guideline de Kyoto (adaptado)
Sublinhado em vermelho: critério novos;
Sublinhado em amarelo: critério que foram modificados em relação à Fukuoka.
Figura 4: Algoritmo de manejo de IPMN pelo guideline de Kyoto. Adaptado de Ohtsuka T, et al. Pancreatology. 2024 (5).
Referências:
Gonda TA, Cahen DL, Farrell JJ. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024;391(9):832-843. doi:10.1056/NEJMra2309041
Tanaka M, Chari S, Adsay V, et al. International consensus guidelines for management of intraductal papillary mucinous neoplasms and mucinous cystic neoplasms of the pancreas. Pancreatology. 2006;6(1-2):17-32. doi:10.1159/000090023
Tanaka M, Fernández-del Castillo C, Adsay V, et al. International consensus guidelines 2012 for the management of IPMN and MCN of the pancreas. Pancreatology. 2012;12(3):183-197. doi:10.1016/j.pan.2012.04.004
Tanaka M, Fernández-Del Castillo C, Kamisawa T, et al. Revisions of international consensus Fukuoka guidelines for the management of IPMN of the pancreas. Pancreatology. 2017;17(5):738-753. doi:10.1016/j.pan.2017.07.007
Ohtsuka T, Fernandez-Del Castillo C, Furukawa T, et al. International evidence-based Kyoto guidelines for the management of intraductal papillary mucinous neoplasm of the pancreas. Pancreatology. 2024;24(2):255-270. doi:10.1016/j.pan.2023.12.009
Drenagem de coleção abdominal pós-pancreatectomia por ecoendoscopia com prótese de aposição luminal (LAMS)
Caso clínico
Paciente do sexo feminino, 22 anos, diagnosticada com neoplasia pseudopapilar de cauda pâncreas (Tumor de Frantz)
Submetida a pancreatectomia corpo-caudal + esplenectomia + linfadenectomia videolaparoscópica. Drenagem da loja esplênica e do coto pancreático com Blake 19.
Recebeu alta no 4º PO.
15 dias depois retorna com dor abdominal, febre e leucocitose.
TC de abdômen revela coleção retrogastrica em contato com a margem de ressecção do pâncreas (Figuras 1 e 2).
Figura 1: TC abdômen sagital mostrando a coleção (seta amarela) retrogástrica (seta azul). Note que o dreno está no interior da coleção, porém apresenta drenagem inadequada.Figura 2: TC de abdômen corte axial mostrando a coleção em íntimo contato com o corpo gástrico e com dreno no seu interior sendo exteriorizado no flanco direito.
Conduta
Após reunião multidisciplinar foi indicada a drenagem endoscópica através da colocação de prótese de aposição luminal guiada por ecoendoscopia. Para o procedimento foi utilizada prótese Hot Axios (Boston Scientific).
Evolução pós-operatória
Liberada dieta líquida no 1º. PO;
Manutenção de antibioticoterapia;
Revisão endoscópica precoce no 3º. PO para limpeza e retirada de restos necróticos;
Retirada do dreno abdominal;
Alta hospitalar;
Retorno com 21 dias após drenagem. Retirada da axios.
Comentários
A drenagem de coleções fluidas peripancreáticas por ecoendoscopia com auxilio de próteses de aposição luminal é uma técnica que revolucionou o tratamento dessas condições, possibilitando uma drenagem segura, eficaz e muito mais ágil. A drenagem das coleções sem auxílio das próteses quentes LAMS é possível, porém muito mais trabalhosa. Necessitaria punção, dilatação do trajeto e colocação de próteses pigtail.
A principal complicação que vemos na drenagem com LAMS é o risco de sangramento, que geralmente ocorre tardiamente devido corrosão do tecido retroperitoneal perigastrico pela extremidade da prótese quando ocorre regressão da cavidade (3 a 4 semanas em média). Alguns autores advogam a passagem de prótese tipo duplo pigtail no interior da LAMS para minimizar esse evento adverso. No caso em questão a regressão total da coleção ocorreu em 3 semanas e foi possível retirar a prótese com segurança.
A microlitíase biliar é uma entidade identificada e descrita a relativamente pouco tempo, ainda sendo tema de muita controvérsia na literatura, desde sua definição e diagnóstico até sua relevância clínica e manejo. Com o aumento da disponibilidade do exame de ecoendoscopia e a consequente ampliação das indicações e solicitações deste exame, tornou-se uma condição cada vez mais identificada em uma população muito heterogênea de pacientes, que varia desde pacientes com obstrução das vias biliares, passando por pacientes com dor abdominal ou dispepsia, chegando até pacientes assintomáticos em exames “de rotina” ou indicados por outros motivos. Tal situação nos faz questionar, investigar e revisitar o conceito e o manejo desta condição que se torna cada vez mais presente no nosso dia a dia.
Já foi discutido anteriormente a questão da microlitíase biliar e do barro biliar neste portal, onde foram apontadas as diferenças ecográficas das duas entidades consideradas no nosso meio e possíveis condutas, bem como a relevância da microlitíase biliar no contexto da investigação etiológica da pancreatite aguda.
Neste artigo, avaliaremos as definições mais aceitas na literatura bem como as controvérsias ainda não resolvidas e discutiremos a relação entre a microlitíase biliar e sintomas dispépticos.
Definição
As definições para microlitíase biliar e barro biliar variam imensamente na literatura, e vão desde descrições distintas para as duas entidades, passando por autores que as tratam como sinônimos, até publicações que ignoram uma ou outra entidade.
Para tentar resolver esse problema facilmente identificável na literatura, Żorniak e col. (1) publicaram um consenso sobre o tema em 2023. O estudo contou com três principais etapas de elaboração: inicialmente foi realizada uma revisão sistemática da literatura que identificou 69 artigos originais e 26 artigos de revisão que definiam “microlitíase biliar” e “barro biliar”; em um segundo momento, 30 “experts” em ecoendoscopia foram consultados através de um questionário sobre o tema; por fim, as definições mais aceitas foram organizadas e revalidadas pelos autores, passando por uma última etapa de votação.
Para demonstrar a heterogeneidade na literatura, cito alguns dos descritores mais encontrados nesta revisão:
– Microlitíase biliar: “sinal/foco/forma hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior”, “sinal/foco/forma hiperecoica necessariamente com sombra acústica posterior”, “sinal/foco/forma hiperecoica necessariamente sem sombra acústica posterior”, “imagem ecogênica móvel sem sombra acústica posterior”. Em relação ao tamanho, os estudos variaram desde <1mm até <10mm, porém a grande maioria definiu entre <3mm ou <5mm.
– Barro biliar: “substância fluida”, “nível fluido”, “múltiplos cálculos sem sombra acústica posterior”, “conteúdo em camadas na porção pendente da vesícula”, “conteúdo de baixa amplitude ecográfica”, “imagens hiperecoicas móveis sem combra acústica porterior”, “agregado hiperecoico sem sombra acústica posterior”, “material um pouco hiperecoico móvel”, “material ecogênico homogêneo”, “material ecogênico heterogêneo”.
Observa-se tanto uma sobreposição quanto uma troca ou mistura de definições entre as duas entidades na literatura especializada.
Com a difícil missão de determinar um consenso, os autores chegaram nas seguintes definições (original em inglês e respectiva tradução pelo autor deste artigo):
Microcálculo biliar: “calculi in the biliary tract and gallbladder of ≤5 mm in diameter with acoustic shadowing” / “cálculo nas vias biliares ou vesícula biliar com sombra acústica posterior com diâmetro menor ou igual 5mm”
Barro biliar: “Discrete, hyperechoic material inside the gallbladder or the bile duct, without acoustic shadowing, which sediments in the most dependent part of the gallbladder.” / “Material discretamente hiperecoico, sem sombra acústica posterior, com sedimentação na parte mais pendente da vesícula biliar”
Cálculo biliar: “calculi in the biliary tract and gallbladder of >5 mm in diameter with acoustic shadowing” / “cálculo nas vias biliares ou vesícula biliar com sombra acústica posterior com diâmetro maior que 5mm”
Em outro trabalho, Quispel e col. (2) estudaram o grau de concordância entre ecoendoscopistas em relação a microlitíase biliar e barro biliar. Eles avaliaram a concordância entre 41 ecoendoscopistas “experts” utilizando 30 vídeos. As definições aceitas neste trabalho foram (original em inglês e tradução do autor deste artigo):
Barro biliar (“sludge”): “Layered, cloud shaped, mobile echoic bile duct content, without acoustic shadowing” / “conteúdo ecogênico móvel em camadas sem sombra acústica posterior”
Microlitíase biliar (“microlithiasis”): “Hyperechoic circumscript bile duct content, < 3mm with or without acoustic shadowing” / “imagem hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior menor que 3mm”
Cálculo biliar (“stones”): “Hyperechoic circumscript bile duct content, ≥ 3mm with or without acoustic shadowing” / “imagem hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior maior ou igual a 3mm”
Neste estudo, houve uma concordância interobservador considerada moderada para um ou mais cálculos biliares – kappa de Fleiss (IC95%) 0,46 (0,13-0,78) -, fraca para microlitíase – kappa de Fleiss (IC95%) 0,25 (0,07-0,43) – e muito fraca para barro biliar – kappa de Fleiss (IC95%) 0,16 (0,07-0,25).
Em nosso meio, tendemos a definir de forma diferente tanto do consenso publicado quanto do estudo de Quispel e col., como demonstrado no artigo publicado previamente (“Microcálculos e barro biliar – Quais seus valores para a prática clínica?”) e no último manual de ecoendoscopia da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (SOBED) (3).
– Microcálculos/microlitíase: imagem móvel, hiperecoica, sem sombra acústica posterior e ≤3mm
Microlitíase biliar
– Barro biliar: conteúdo ecogênico móvel, sem sombra acústica posterior, com formação de nível.
Barro biliar
– Cálculo: imagem hiperecoica com sombra acústica posterior, independentemente do tamanho (podem ser chamados de cálculos pequenos se menores que 5mm).
Cálculo biliar
No entendimento do autor deste artigo, as definições que utilizamos no nosso meio apresentam maior correlação com os achados ecográficos e com os diferentes perfis de pacientes. Porém, com a publicação do consenso, caso a comunidade de ecoendoscopistas passe a utilizar a classificação proposta, a tendência será unificar os achados que hoje consideremos em nosso meio “microlitíase biliar” e “barro biliar” denominando ambos como “barro biliar”, enquanto o termo “microlitíase biliar” será utilizado para cálculos pequenos ≤5mm.
De qualquer forma, o mesmo consenso fez um levantamento retrospectivo que mostrou que não há diferença em relação a gravidade da pancreatite aguda biliar, independente de qual entidade biliar (cálculo, microcálculo ou barro) esteja relacionada ao evento, e alguns autores consideram que barro biliar e microlitíase biliar compartilham a mesma significância clínica (4).
Por fim, acreditamos que ainda haverá discussões na literatura para estabelecimento das definições para que haja uma melhor comunicação tanto entre os ecoendoscopistas, quanto entre médicos assistentes/solicitantes, e também na própria literatura, afim de homogeneizar a nomenclatura para estudos futuros. Dessa forma, até uma pacificação sobre o tema na literatura, sugere-se aos ecoendoscopistas descreverem os achados com precisão no corpo do laudo e realizar adequada documentação de imagens, para que o médico assistente/solicitante tenha ferramentas para interpretar corretamente os achados e tomar as melhores condutas cabíveis em cada caso, independente da definição utilizada na conclusão do laudo.
Microlitíase biliar e sintomas dispépticos
Como comentado na introdução deste artigo, com o aumento da disponibilidade da ecoendoscopia, os pedidos de exame para pacientes com sintomas dispépticos variados se tornaram parte importante da agenda de ecoendoscopia nos grandes centros, com identificação de “microcálculos/barro biliar” em um amplo perfil de pacientes e levando muitas vezes a indicação de colecistectomia. Tal cenário nos faz questionar o papel da ecoendoscopia para este perfil de pacientes, a indicação da colecistectomia e a relação com os sintomas apresentados.
Montenegro e col. (4) estudaram retrospectivamente pacientes com sintomas dispépticos variados, encaminhados para realização de ecoendoscopia após resultados negativos para litíase biliar por ultrassonografia abdominal, que foram diagnosticados com microlitíase e/ou barro biliar na ecoendoscopia e submetidos a colecistectomia. Eles excluíram pacientes assintomáticos e pacientes que tiveram qualquer complicação relacionada a litíase biliar (pancreatite, colangite, colestase ou colecistite).
Neste artigo, os autores utilizaram a seguinte definição (original em ingês e tradução do autor deste artigo): – Minilithiasis and/or biliary sludge (minilitíase e/ou barro biliar): “the presence of isoechoic and/or hyperechoic focus without an acoustic shadow less than 5 mm, which could be viewed with or without a massage in the epigastrium or right hypochondrium” / “presença de focos isoecoicos e/ou hiperecoicos sem sombra acústica posterior, menores que 5mm, que podem ser visualizados com ou sem compressão do epigástrio ou hipocôndrio direito”
A partir de uma base de dados de 1121 pacientes que realizaram ecoendoscopia entre os anos de 2014 e 2018, foram incluídos 50 pacientes compatíveis com os critérios de inclusão.
Dentre os sintomas relatados, 58% (29/50) apresentavam cólica biliar típica e 42% (21/50) apresentavam sintomas atípicos, sendo estes: dor no quadrante superior direito (24%), epigastralgia + dor no quadrante superior direito (2%), epigastralgia + náuseas/vômitos (6%), epigastralgia isolada (2%), dor abdominal difusa com ou sem distensão (8%).
Setenta porcento dos pacientes (35/50) tiveram remissão dos sintomas após a colecistectomia. No grupo dos pacientes com cólica biliar típica, a remissão foi de 86,2% enquanto no grupo de pacientes com sintomas atípicos foi de 47,6%. No grupo de pacientes com sintomas atípicos, houve diferença importante na resposta ao tratamento de acordo com o sintoma apresentado, notando-se remissão na maior parte dos pacientes com dor no quadrante superior direito e em nenhum dos 4 pacientes com dor abdominal difusa. A tabela abaixo resume os sintomas pré e pós-colecistectomia (tabela 2 do artigo original).
Tabela com sumário dos sintomas pré e pós-colecistectomia de Montenegro e col. (4)
Foi identificada apenas uma (2%) complicação com necessidade de reabordagem pós colecistectomia devido a hemoperitônio e 18% (9/50) de pacientes que evoluíram com diarreia pós colecistectomia.
Os autores concluem que pacientes com quadro de cólica biliar típica com presença de microcálculos/barro biliar à ecoendoscopia devem ser submetidos à colecistectomia, enquanto pacientes com sintomas atípicos devem ser amplamente investigados para descartar outras etiologias antes de serem submetidos a colecistectomia, sendo esta avaliação a chave para uma adequada correlação entre os sintomas e os achados ecográficos e consequente resolução dos sintomas após colecistectomia.
Jang e col. (5) estudaram o uso de medicações litolíticas (Ácidos Quenodesoxicólico e Ursodesoxicólico) para tratamento de pacientes com diagnóstico de dispepsia funcional refratária (DFR). A DFR é definida como sintomas dispépticos sem causa definida, persistentes após tratamento com sintomáticos, sendo difícil a diferenciação entre dispepsia funcional e dispepsia biliar em muitos casos.
Neste estudo prospectivo não-randomizado simples cego, foram incluídos 37 pacientes com diagnóstico de DFR e com exames de Endoscopia Digestiva Alta (EDA), ultrassom de abdome e exame de contratilidade da vesícula biliar normais. Importante notar que não foi realizada ecoendoscopia nos pacientes deste estudo. Foi utilizado uma escala de sintomas chamada de “Escala de sintomas globais de 7 pontos” (“7-point global symptom scale”), que relaciona os sintomas dispépticos com a severidade e impacto na vida do paciente, na qual 1 ponto o paciente refere não ter problemas com os sintomas dispépticos e 7 o paciente apresente um problema muito severo que interfere e limita as atividades diárias. Os sintomas relatados foram dor epigástrica, queimação epigástrica, saciedade precoce e empachamento pós-prandial.
Após 12 semanas de tratamento, a média da escala de sintomas caiu de 5,6 para 2,6, sendo que 94,6% (35/37) referiram algum grau de melhora dos sintomas e apenas 5,4% (2/37) não apresentaram nenhuma melhora.
Os autores concluem que grande parte dos pacientes diagnosticados com DFR podem ter na realidade dispepsia biliar, podendo ser beneficiados com o tratamento proposto com litolíticos. Eles ainda pontuam que a microlitíase biliar não foi adequadamente avaliada no estudo, podendo estar presente em parte ou totalidade dos pacientes que responderam ao tratamento.
Avaliando em conjunto os estudos apresentados, podemos inferir que a microlitíase/barro biliar deve ser considerada no diagnóstico diferencial em pacientes com dispepsia, porém o sucesso do tratamento – seja com colecistectomia ou com litolíticos – depende do tipo de sintoma apresentado e a exclusão de outras etiologias.
É importante considerar que são estudos de baixa qualidade metodológica para avaliar a eficácia do tratamento, mas que apontam para uma possibilidade que deve ser considerada e melhor estudada, preferencialmente com ensaios clínicos randomizados.
Conclusão
A microlitíase biliar é um tema ainda muito controverso, com divergências que vão desde a definição até o tratamento, principalmente quando relacionada a sintomas dispépticos.
Em relação a definição de microlitíase e barro biliar, há um debate que teremos que percorrer para chegarmos a conclusões mais consensuais e compatíveis com os achados do dia a dia. Considerando a literatura disponível, que se mostra ainda muito controversa apesar do esforço em estabelecer um consenso, cabe ao ecoendoscopista descrever e documentar com precisão os achados para que o médico interlocutor consiga identificar corretamente a entidade descrita, independente da definição utilizada.
Em relação a microlitíase/barro biliar e os sintomas dispépticos, alguns estudos de baixa qualidade metodológica sugerem a possibilidade de correlação entre tais entidades e sintomas dispépticos, com possível melhora dos sintomas em parte dos pacientes após colecistectomia ou tratamento com litolíticos. Entretanto é fundamento ressaltar que cada paciente deve ser avaliado com parcimônia, considerando os sintomas apresentados e realizando ampla investigação de outras etiologias mais prováveis, especialmente quando sintomas considerados atípicos para doença biliar são os mais importantes.
Referências
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