QUIZ! Caso Clínico

CASO CLÍNICO:

Paciente feminina, 76 anos, hipertensa e diabética, refere dor abdominal, sem sintomas colestáticos ou alterações laboratoriais, encaminhada por colega gastroenterologista para avaliação de alterações em exames de imagem. Nega tabagismo, etilismo ou antecedentes cirúrgicos abdominais.

Laboratório:

Hb 15,5; Ht 47%; Leuco 7.800; Plaq 244.000, INR 0,93; Amilase 73; BT 0,7; BD 0,6; FA 79; GGT 25; TGO 32; TGP 23

Colangiopancreatografia por Ressonância Magnética: 

Ectasia de vias biliares extrahepáticas e ducto pancreático principal, com colédoco de 1,8 cm, possivelmente secundária ao divertículo duodenal. Divertículo duodenal de 2,6 cm determinando impressão em colédoco distal. 

Ecoendoscopia:

Dilatação do ducto colédoco sem fator obstrutivo – janela transbulbar (ducto colédoco medindo cerca de 16 mm). Discreta dilatação do ducto pancreático principal. Vesícula com mínimas formações polipóides de 2,5 mm, sem imagens sugestivas de cálculos em seu interior.




Síndrome de Lemmel

Introdução

A incidência de divertículos duodenais é rara e varia entre 1-27%, sendo mais frequente a localização periampular (70-75%). A síndrome de Lemmel trata-se da obstrução do ducto biliar devido a ação de um divertículo duodenal periampular quando o mesmo comprime ou obstrui a via biliar, podendo ocasionar sintomas como icterícia, dor abdominal e alterações nos níveis de enzimas hepáticas na ausência de coledocolitíase (vide Figura 1). É uma condição que precisa ser considerada em casos de obstrução biliar inexplicada, especialmente em pacientes com divertículos duodenais.

Fig 1. Divertículo duodenal. Ilustração cedida pela Dra. Fernanda Prado Logiudice (SP).

Classificação

Pode ser classificada de acordo com a posição da papila em relação ao divertículo: tipo I (intradiverticular), II (peridiverticular) ou III (próximo ao divertículo). Em nosso caso foi identificada através de duodenoscopia o tipo II, conforme ilustrado na imagem abaixo (Figura 2).

Fig 2. Duodenoscopia da papila duodenal maior peridiverticular (esq).
Imagem cedida por Dr. Diego Rangel (BA) e Dra. Sâmara Martins (BA).

Sintomatologia

A maioria dos casos é assintomática e diagnosticada incidentalmente durante exames endoscópicos, mas complicações podem ocorrer em 5% dos casos, como colangite, icterícia obstrutiva, sangramento, perfuração, diverticulite, pancreatite e coledocolitíase.

Diagnóstico

Exames laboratoriais podem estar alterados, como nível de bilirrubinas e enzimas canaliculares e hepáticas, entretanto, não são determinantes para o diagnóstico da Síndrome de Lemmel, pois podem estar dentro dos níveis da normalidade. Dentre os exames de imagem, a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) demonstra-se mais abrangente, já que utiliza a endoscopia de visão lateral (duodenoscopia) para identificação do divertículo periampular e a colangiografia para avaliar a dilatação da via biliar, além de possibilitar a terapêutica. Apesar disso, os exames de tomografia computadorizada, ressonância magnética e endoscopia digestiva alta são inicialmente mais utilizados devido ao fácil acesso. Além deles, outros exames de imagem também podem ser utilizados, como exame radiológico contrastado, ultrassonografia endoscópica ou mesmo a laparoscopia. No caso em questão, a paciente já havia realizado exame de ressonância de abdome (Figura 3) e ecoendoscopia, ambos corroborando a hipótese diagnóstica.

Fig 3. Colangiorressonância demonstrando dilatação da via biliar extra-hepática e divertículo duodenal identificado pela seta.

Tratamento

O tratamento, apesar de ainda não bem estabelecido pela literatura, é baseado na sintomatologia e, portanto, sendo recomendada abordagem conservadora em pacientes assintomáticos. A esfincterotomia através de CPRE com ou sem colocação de stent pode ser uma excelente opção terapêutica para pacientes com obstrução da via biliar ou mesmo colangite. Outra opção terapêutica possível é o tratamento cirúrgico através da diverticulectomia, entretanto, com elevada morbimortalidade. No caso ilustrado (Figuras 4-6), a paciente foi tratada com esfincterotomia e esfincteroplastia com balão, seguida de drenagem da via biliar com prótese biliar plástica.

Fig 4. Imagem colangiográfica da CPRE exibindo dilatação importante da via biliar principal.
Imagem cedida por Dr. Diego Rangel (BA) e Dra. Sâmara Martins (BA).
Fig 5. Papilotomia endoscópica (esq.). Dilatação endoscópica da papila com balão (dir.).
Imagens cedidas por Dr. Diego Rangel (BA) e Dra. Sâmara Martins (BA).
Fig 6. Drenagem endoscópica da via biliar com prótese plástica: imagem endoscópica (esq.) e imagem colangiográfica (dir.). Imagens cedidas por Dr. Diego Rangel (BA) e Dra. Sâmara Martins (BA).

Referências

  1. Love JS, Yellen M, Melitas C, et al. Diagnosis and Management of Lemmel Syndrome: An Unusual Presentation and Literature Review. Case Rep Gastroenterol 2022; Dec 16;16(3):663-674. doi:10.1159/000528031.
  2. Battah A, Farouji I, DaCosta TR, et al. Lemmel’s Syndrome: A Rare Complication of Periampullary Diverticula. Cureus 2023; Mar 16;15(3):e36236. doi: 10.7759/cureus.36236.

Como citar este artigo

Martins S. e Logiudice FP. Endoscopia Terapeutica, 2024 vol I. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/sindrome-de-lemmel/




Estratégias de prevenção de pancreatite pós CPRE: quais as recomendações mais atuais?

Sabemos que a CPRE permite o tratamento minimamente invasivo de diversas condições pancreatobiliares com morbidade substancialmente menor do que as abordagens cirúrgicas tradicionais. No entanto, o principal evento adverso inerente ao procedimento, e também um dos mais temidos, é a pancreatite pós-CPRE (PEP). Variados artigos apontam para um risco de PEP em até 15% dos procedimentos de alto risco. Embora normalmente leve, a PEP pode se apresentar menos frequentemente de forma grave, estando associada à mortalidade de 1 em 500 pacientes e a um significativo aumento de custos de internação hospitalar. 

A literatura tem endereçado nos últimos anos diversos estudos com a finalidade de reduzir o risco de PEP e nesse texto trazemos de forma resumida os dados mais relevantes da última publicação: “American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on post-ERCP pancreatitis prevention strategies: summary and recommendations” publicado em fevereiro de 2023.

Resumo das recomendações

O guideline ainda apontou para algumas lacunas de conhecimento que precisam ser mais exploradas na definição de cuidados e prevenção de PEP. Entre os temas, podemos citar principalmente o papel da estratégia preventiva combinada com uso de stents pancreáticos, hidratação e indometacina. Faltam evidências mais robustas para indicar o uso sistematizado de tais estratégias, mas existem dados apontando para um potencial benefício, por exemplo, do uso de AINE associado a hidratação vigorosa na redução da gravidade da PEP. Novos estudos são necessários para esse e outros esclarecimentos nos cuidados preventivos da PEP, mas fica evidente o já importante ganho de possibilidades e evidências nos últimos anos, trazendo ainda mais segurança a um cenário sempre desafiador para quem lida cotidianamente com CPRE. E vocês, como tem atuado na rotina?  

Referência

Buxbaum JL, Freeman M, Amateau SK, Chalhoub JM, Coelho-Prabhu N, Desai M, Elhanafi SE, Forbes N, Fujii-Lau LL, Kohli DR, Kwon RS, Machicado JD, Marya NB, Pawa S, Ruan WH, Sheth SG, Thiruvengadam NR, Thosani NC, Qumseya BJ; (ASGE Standards of Practice Committee Chair). American Society for Gastrointestinal Endoscopy guideline on post-ERCP pancreatitis prevention strategies: summary and recommendations. Gastrointest Endosc. 2023 Feb;97(2):153-162. doi: 10.1016/j.gie.2022.10.005. Epub 2022 Dec 12. PMID: 36517310.




Você sabe a melhor forma de identificar e manejar os pacientes com risco aumentado de coledocolitíase?

A incidência de colelitíase sintomática entre os americanos adultos é em torno de 10%. No Brasil  estudos retrospectivos mostram uma incidência de até 9,3%.   Entre estes pacientes, 10-20% podem apresentar coledocolitíase concomitante.

A CPRE transformou o tratamento dos cálculos na via biliar principal de uma operação de grande porte em um procedimento minimamente invasivo.   Porém, apresenta uma incidência não desprezível de efeitos adversos (5-15%) como pancreatite, sangramento e perfuração.  Assim é importante selecionar de forma correta os pacientes que serão submetidos ao procedimento para evitar a realização de exames desnecessários.

A ESGE recomenda que os pacientes com colelitíase sintomática em programação de colecistectomia devem realizar a dosagem de enzimas hepáticas e ultrassom de abdome. Estes exames servem como triagem para avaliar o risco de coledocolitíase concomitante e determinar os pacientes que se beneficiariam  de uma investigação adicional.

Agora, como devemos utilizar os resultados desta triagem?

Preditores do Risco de Coledocolitíase

Em 2010 a ASGE publicou uma lista de preditores para avaliar o risco de coledocolitíase. Baseado nestes critérios os pacientes eram divididos em risco alto, intermediário e baixo risco.  Para os de alto risco a recomendação era ir direto para a CPRE. Os de risco intermediário deveriam investigar melhor através da realização de colangiorressonância ou ecoendoscoscopia antes da decisão terapêutica.  Os de baixo risco poderiam ir para colecistectomia direto. 

Tabela 1. Preditores clínicos publicados em 2010 pela ASGE.  Adaptado de Maple et al 2010.  Atenção, estes critérios foram revisados. 

Porém,  estudos posteriores utilizando estes critérios demonstraram que  a acurácia variava de 70 a 80%, levando a até 30% de CPRE desnecessárias. 

Devido a isso, tanto a associação Americana (ASGE) quanto a europeia (ESGE) revisaram estes preditores em seus guidelines mais recentes.

Os novos critérios estão resumidos na tabela abaixo:

Tabela 2 Preditores de coledocolitíase publicados pela ASGE e ESGE. Adaptado de Buxbaum et al 2019 e  Manes et al 2019.

Os pacientes com quadro de colangite ou cálculo visualizado no ultrassom de abdome ou em tomografia/RNM são considerados como de alto risco.   A ASGE inclui um critério a mais, que é a presença de Bilirrubina total maior do que 4 mg/dl associada à dilatação da via biliar como critério de alto risco.   Estes pacientes podem ser submetidos a CPRE direto, antes da colecistectomia e sem a necessidade de investigação adicional.

Os pacientes com alteração de enzimas hepáticas (TGO, TGP, FA, GGT) ou com dilatação da via biliar no ultrassom (>6 mm com vesícula in situ) são considerados de risco intermediário. Novamente a ASGE tem um critério a mais que é a idade maior do que 55 anos.  O racional para este critério é que pacientes com mais de 55 anos tem uma maior incidência de coledocolitíase não associada à alteração de enzimas hepáticas.   Os dois guidelines sugerem que os pacientes com critérios intermediários sejam submetidos à colangiorressonância ou ecoendoscopia para avaliar a presença de coledocolitíase antes da colecistectomia.  Na impossibilidade de realizar estes exames, a colangiografia intraoperatória é indicada como alternativa.

Já os pacientes que não apresentam nenhum destes critérios são considerados como de baixo risco e podem realizar a colecistectomia direto, com ou sem colangiografia intraoperatória.

Nos critérios de 2010 a pancreatite aguda era um critério de risco intermediário.  Porém, estudos confirmaram que a incidência de coledocolitíase residual após um episódio de pancreatite leve varia de apenas 10 a 30%.  Devido a isso ela deixou de ser critério de risco.  Os pacientes após a resolução da pancreatite aguda devem ser avaliados de acordo com os critérios acima. Se não apresentares critérios de alto ou médio risco podem ir para a colecistectomia direto.

E qual dos critérios eu devo seguir? ASGE ou ESGE?

Um estudo incluindo 1042 pacientes comparou os critérios da ASGE e da ESGE para a avaliação da presença de coledocolitíase.  Os resultados mostraram que os dois critérios são válidos e muito bons, com especificidade de 96,87% para os da ASGE e 98,24% para os da ESGE.

Comparando os dois critérios, o da ESGE é ligeiramente mais específico, com os critérios da ASGE apresentando um número discretamente maior de pacientes falso positivos.

Conclusão

Apesar da CPRE ser uma técnica minimamente invasiva, ela não é isenta de complicações!

Devido a isso, a avaliação da probabilidade pré-teste em pacientes com suspeita de coledocolitíase é essencial para diferenciar os pacientes que irão se beneficiar de uma avaliação mais aprofundada dos que poderão ir direto para a CPRE.

Referências

Manes G, Paspatis G, Aabakken L et al. Endoscopic management of common bile duct stones: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) guideline. Endoscopy 2019; 51: 472–491

Maple JT, Ben-Menachem T. ASGE Standards of Practice Committee. et al. The role of endoscopy in the evaluation of suspected choledocholithiasis. Gastrointest Endosc 2010; 71: 1–9




Quiz !! Participou do nosso Webinar ?

Paciente masculino, 45 anos, antecedente de pancreatite há cerca de 2 meses. Refere que na época do quadro ficou ictérico. Após melhora do quado procurou cirurgião, que realizou investigação com ultrassonografia de vias biliares demonstrando vesícula biliar com múltiplos pequenos cálculos e vias biliares normais. Os exames laboratoriais demonstravam aumento de gamaglutamil transferase (gamaGT). De posse destes resultados, o cirurgião solicitou a realização de CPRE, antes da cirurgia.





A papilotomia antes da passagem de prótese para drenagem biliar é eficaz em prevenir pancreatite pós-CPRE?

Visto que a eficácia da papilotomia para prevenir pancreatite pós-CPRE antes da passagem de prótese para drenagem biliar não está bem estabelecida, este estudo controlado e randomizado japonês publicado em Agosto de 2021 objetivou avaliar o efeito de realizar papilotomia antes da passagem de prótese biliar na ocorrência dessa complicação.

Risk of pancreatitis following biliary stenting with/without endoscopic sphincterotomy: A randomized controlled trialClinical Gastroenterology and Hepatology
DOI: 10.1016/j.cgh.2021.08.016

Introdução

A pancreatite pós-CPRE ocorre em cerca de 3-4% em paciente submetidos a colocação de prótese para drenagem biliar, com uma taxa de mortalidade de 0,7%.

Nessas situações, a papilotomia antes da colocação da prótese é realizada para prevenir pancreatite pós-CPRE, por separar os orifícios do ducto pancreático principal e biliar, o que provavelmente diminui a pressão no orifício do ducto pancreático.

Embora estudos prévios tenham mostrado que a papilotomia nessas situações previne a pancreatite pós-CPRE, tiveram limitações por serem retrospectivos e com amostras pequenas. Por outro lado, um outro estudo não mostrou eficácia da papilotomia em pacientes com obstrução biliar distal submetidos a passagem de prótese de 10 fr. Os autores realizaram então um estudo multicêntrico controlado e randomizado para avaliar o efeito da papilotomia antes da colocação da prótese com relação a pancreatite pós-CPRE. 

Além disso, eles consideraram o cenário de não-inferioridade como ideal porque a papilotomia é geralmente considerada como método padrão-ouro na prática clínica. Então, o estudo objetivou avaliar prospectivamente a não-inferioridade de não fazer a papilotomia em relação a fazer a papilotomia antes de colocação de prótese em pacientes com estenose biliar de qualquer etiologia.

Material e métodos

Estudo realizado em 26 centros com alto volume no Japão. Entre fevereiro de 2017 e julho de 2020, os autores recrutaram pacientes com obstrução biliar distal ou hilar de qualquer etiologia que necessitassem de descompressão biliar com passagem de prótese por via endoscópica. Nesse estudo, obstrução distal foi definida como aquela localizada a jusante do ducto cístico e a obstrução hilar, a montante do cístico.  Foram alocados 370 pacientes (185 em cada grupo).

Os critérios de inclusão foram: 1) diagnóstico clínico de obstrução biliar confirmado por imagem (TC, RM, US ou ecoendoscopia), 2) necessidade de drenagem biliar endoscópica com prótese plástica ou dreno nasobiliar, 3) papila duodenal maior sem manipulação prévia, 4) idade >20 anos. Pacientes com colangite grave, pancreatite aguda, história de CPRE prévia, entre outros, foram excluídos.

Todos os procedimentos foram realizados por endoscopistas com mais de 10 anos de experiência em CPRE ou que estavam em treinamento sob rigorosa supervisão. Após a canulação seletiva da via biliar e colangiografia, os participantes foram então formalmente registrados e randomizados nos grupos papilotomia ou não-papilotomia. As papilotomias foram realizadas utilizando a técnica padrão, com corrente blend. Em ambos os grupos, próteses de 7, 8,5 ou 10 Fr ou drenos nasobiliares (em pacientes que necessitavam de drenagem em dois segmentos) de 5,6 ou 7 fr foram usados para drenagem biliar.

Foram registrados eventos adversos ao procedimento (pancreatite, colangite, colecistite, perfuração, sangramento e outros eventos com risco de vida que ocorreram dentro de 30 dias.

Resultados

Entre os 185 pacientes do grupo não-papilotomia, 175 terminaram o acompanhamento e no grupo papilotomia, 181 pacientes.

A etiologia mais comum em ambos os grupos foi câncer de pâncreas. A localização da estenose não diferiu em ambos os grupos (p=0,911). Em relação a característica dos procedimentos, uma proporção significativamente maior de pacientes do grupo não-papilotomia foram submetidos a colocação de prótese pancreática (28/185 vs 14/185; p=0,022). Não houve diferença significativa entre os grupos em relação a outras características do procedimento, incluindo uso de AINE via retal (p=0,729). Em ambos os grupos, a prótese mais usada foi de 7 fr.

  • Desfecho primário

Pancreatite pós-CPRE ocorreu em 36 pacientes no grupo não-papilotomia (20,6%; 26 leves, 5 moderadas 3 e 5 graves) e em 7 pacientes no grupo papilotomia (3,9%; 5 leves e 2 graves), com p <0,001. Houve uma diferença de 16,7% na incidência de pancreatite entre os grupos (IC 95% 10,1% – 23,3%). Isto indica que a diferença entre os dois grupos no IC 95% não estava dentro da margem de não-inferioridade definida de 6%; isto é, a não-inferioridade da não realização de papilotomia em relação a papilotomia antes da colocação da prótese não foi atestada. Eles obtiveram um resultado similar no cenário intenção de tratar (15,7%; IC95% 9,3% – 22%).

  • Desfechos secundários

Não houve diferença significativa entre as incidências de colangite, colecistite, perfuração e recorrência da obstrução entre os grupos. Entretanto, a ocorrência de sangramento foi significativamente maior no grupo papilotomia que no grupo não-papilotomia (8/181 vs 1/175, p=0,048). Entre os 8 casos de sangramento no grupo papilotomia, um foi considerado evento adverso grave porque o paciente necessitou de terapia intensiva e múltiplas intervenções para hemostasia.

  • Análise de subgrupos

Entre os pacientes com câncer de pâncreas ou dilatação do ducto pancreático principal (diâmetro > 6mm), não houve diferença significativa na incidência de pancreatite entre os grupos papilotomia e não-papilotomia. Por outro lado, independente da localização da estenose, a ocorrência de pancreatite foi significativamente maior no grupo não-papilotomia. Em relação ao diâmetro da prótese, não houve diferença significativa na ocorrência de pancreatite entres os grupos com próteses de grande calibre ou múltiplas próteses enquanto foi significativamente maior no grupo não-papilotomia com próteses finas.

  • Análise multivariada

Na análise multivariada, os autores encontraram que a não realização de papilotomia e a inserção do fio-guia no ducto pancreático principal foi associado de forma significativa com a ocorrência de pancreatite pós-CPRE (não-papilotomia: OR 5,54, IC 95% 2,475 – 12,421, p< 0,001; inserção do fio-guia: OR 2,466, IC 95% 1,100 – 5,529, p=0,028)

Discussão

Neste estudo, a não-inferioridade de não realizar a papilotomia em relação a realização da papilotomia antes da passagem da prótese não foi comprovada. Por outro lado, os resultados suportam o efeito preventivo da papilotomia antes da prótese na ocorrência de pancreatite pós-CPRE.

Uma preocupação é que a maior proporção de pacientes nos quais a canulação do ducto biliar foi difícil talvez poderia ter aumentado a incidência de pancreatite pós-CPRE no grupo de não-papilotomia.  Análise univariada usada para identificar fatores associados a dificuldade de canulação (tempo de canulação > 14 minutos, endoscopista em treinamento ou troca de operador) nos casos com pancreatite em cada grupo revelou que o tempo de canulação tendeu a ser maior no grupo não-papilotomia, embora a diferença não tenha sido significativa. Assim, descartar completamente a relação entre dificuldade de canulação e alta incidência de pancreatite no grupo não-papilotomia permanece difícil. No entanto, a análise multivariada mostrou que os fatores relacionados a dificuldade de canulação, incluindo tempo de canulação maior que 14 mm e colocação de prótese pancreática, não afetou a incidência de pancreatite. Em outras palavras, a dificuldade de canulação não aumentou diretamente a incidência de pancreatite no grupo não-papilotomia.

A incidência de sangramento após o procedimento foi significativamente maior no grupo papilotomia, incluindo um caso grave. Assim, embora a papilotomia seja benéfica para prevenção de pancreatite em casos de colocação de próteses de diâmetros menores, ela não deve ser realizada rotineiramente em todos os pacientes, e sim avaliada caso a caso, atentando para o uso de anticoagulantes e alterações na coagulação do paciente. 

Entre as limitações do estudo estão: 1) maior proporção de estenoses malignas que benignas (apenas 20/370, 5,4%), portanto talvez o resultado desse estudo não deva ser extrapolado para estenoses benignas; 2) as intervenções para profilaxia pós-CPRE, incluindo prótese pancreática e uso de supositórios de AINE, foram realizadas a critério de cada endoscopista após randomização. A proporção de pacientes que receberam AINE não foi diferente entre os grupos. Porém, o número de pacientes submetidos a colocação de prótese pancreática foi maior no grupo não-papilotomia; 3) o estudo não foi realizado em cenário completamente cego. Os resultados da randomização não foram ocultados dos participantes ou dos endoscopistas que realizaram o procedimento. Essas condições de cegamento incompleto podem resultar em viés de avaliação, o que pode ter afetado o resultado primário do estudo.

Conclusão

A realização de papilotomia antes da colocação da prótese biliar em pacientes com estenose biliar pode ter efeito preventivo sobre a ocorrência de pancreatite pós-CPRE.

Esse mês, na mesma revista, foi publicada uma carta ao editor muito interessante sobre esse artigo, intitulada: Endoscopic sphincterotomy and Post Endoscopic Retrograde Cholangiopancreatography Pancreatitis: In an Era of Declining Mystery, the Unknown Persists.  DOI: 10.1016/j.cgh.2021.08.045

Os autores escrevem que, embora o estudo tenha sido bem desenhado e forneça evidencias que a papilotomia deva ser realizada antes da colocação da prótese em estenose biliar, merece algumas considerações:

  1. Em situações em que a maioria das CPREs foi realizada por endoscopistas em treinamento, uma análise de subgrupo em casos de canulação difícil de acordo com os critérios da ESGE (mais que 5 contatos com papila, mais que 5 minutos de tentativa de canulação e mais que 1 canulação não-intencional do ducto pancreático) seria útil;
  2. O uso de AINE via retal e passagem de prótese pancreática para prevenção de pancreatite foi decidida pelo endoscopista. É importante saber qual grupo de pacientes recebeu as estratégias preventivas combinadas em cada grupo e, entre aqueles, quantos desenvolveram pancreatite;
  3. No grupo não-papilotomia, mais procedimentos foram feitos por estagiários em treinamento e a troca de operadores foi necessária com mais frequência para concluir o procedimento. Assume-se que a troca de operadores teria sido necessária em caso tecnicamente desafiadores e de canulação difícil. É importante saber se teve alguma diferença na incidência de pancreatite nesse subgrupo de pacientes;
  4. Nesse estudo, onde todos os pacientes apresentavam estenose, os autores não mencionaram se foi feita dilatação da papila ou da área de estenose para passagem das próteses ou se feita colangioscopia. Isso pode ter afetado de forma independente os resultados (pancreatite, colangite ou sangramento).

Os autores concluíram que a papilotomia reduziu o risco de pancreatite pós-CPRE. Entretanto, essa conclusão pode ser prematura sem considerar outras variáveis de confusão.

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Vale a reflexão!

E você? Faz papilotomia de rotina antes de passar a prótese nesses pacientes com estenose biliar?




CPRE com sistema troca rápida: menor tempo e menor taxa de complicações.

Cenas que, infelizmente, você já viu antes:

  • fio-guia no chão durante um procedimento difícil;
  • assistente pouco experiente com dificuldade na coordenação do manejo do fio-guia;
  • perda da canulação na troca acessórios.

Para solucionar este tipo de situação, foram desenvolvidas plataformas com fios-guia curtos que permitem uma troca rápida dos acessórios, tornando as CPREs mais seguras e rápidas.

Nesta publicação vamos explorar suas vantagens, funcionalidades e formas de uso.

 

Evolução da endoscopia biliopancreática

A técnica e os acessórios da colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) evoluíram progressivamente ao longo das últimas décadas. Percebeu-se que a melhor opção para a canulação é usar o papilótomo. Posteriormente, ficou claro que a cateterização seletiva com o fio-guia é mais eficaz. Contudo, a manipulação do fio-guia pela técnica tradicional é pouco prática e implica em algumas dificuldades como as citadas no início do texto. Além disso, não diminui a incidência de pancreatite pós CPRE em relação às demais técnicas de canulação(1).

O fio-guia hidrofílico tradicionalmente utilizado na CPRE possui comprimento entre 420 e 480cm, sendo bastante longo para permitir a troca de acessórios “over the wire”. Neste processo, não é raro a perda acidental da canulação ou queda de parte do fio no chão. A necessidade de um excelente grau de comunicação com o auxiliar também pode gerar dificuldade durante o acesso papilar. Enquanto o endoscopista ajusta a posição do endoscópio e do cateter, o assistente fica responsável pela manopla do papilótomo e pelo avanço do fio-guia. A forma como este avanço é feito traumatiza a papila em maior ou menor grau, implicando diretamente no índice de pancreatite pós CPER.(2

 

(Vídeo 1: Removendo o papilótomo tradicional com fio-guia de 450cm. Observem o contraste com os vídeos subsequentes)

 

Visando otimizar as manobras do procedimento, surgiu a ideia de um sistema com fio-guia de manipulação mais fácil e rápida. Este sistema possui três pilares: fio-guia curto (185 a 270 cm), acessórios que permitam troca sobre o fio-guia curto e uma de trava para fixar o guia. O primeiro sistema nesta plataforma foi introduzido no mercado em 1999 pela Boston Scientific o sistema RX. Posteriormente, a Cook em 2004 e a Olympus em 2005, lançaram suas próprias plataformas. (2) Atualmente vários fabricantes como Mediglobe e MI Tech também aderiram ao sistema baseado no fio-guia curto, mas a importação para o Brasil não é universal entre os fornecedores.

 

(Vídeo 2: Montando o dispositivo de trava + deixando o papilótomo com fio-guia curto prontos para a cateterização)

 

Vantagens

    • Índice de Complicações

A intensidade do trauma à papila durante as tentativas de canulação biliar está diretamente relacionado ao índice de pancreatite pós-CPER. Nos papilótomos com fio-guia curto, o endoscopista controla pessoalmente o avanço do guia, permitindo uma coordenação precisa com a movimentação do aparelho e do papilótomo. O endoscopista também recebe o feedback táctil do fio-guia que não é possível na técnica tradicional. Tal característica permite decisões mais precisas quanto à direção, à força utilizada e à resistência mecânica presente contra o avanço do guia.

Um estudo prospectivo randomizado comparando a linha de troca rápida RX da Boston Scientific com a linha padrão do mesmo fabricante obteve um resultado bastante impactante. A amostra planejada de 500 pacientes precisou ser encerrada precocemente em 216 casos devido à significante diferença de eventos adversos com implicações de segurança para o grupo controle. O índice de complicação foi quatro vezes menor (2,8% versus 11,2%) no grupo de pacientes abordados com a linha de troca rápida RX. (3)

 

(Vídeo 3: O endoscopista controla o papilótomo e o fio-guia. Após a cateterização, a remoção do papilótomo é simples, rápida e segura.)

 

  • Tempo de Procedimento e exposição à radiação

O tempo de procedimento também é significativamente menor com os acessórios de troca rápida. O fio-guia curto travado permite uma troca rápida e segura sem a necessidade de ações sincronizadas entre o endoscopista e seu assistente. O método reduz o tempo de procedimento ente 25 a 60%. A exposição à radiação também é significativamente reduzida com menos no tempo de uso da radioscopia.(4)

 

CONCLUSÃO

Diante dos melhores resultados, a migração para o sistema de troca rápida em grande parte dos países foi expressiva. Essa evolução ficou bem ilustrada em estudo tcheco que mostrou uma progressão de zero para 98% dos procedimentos usando a troca rápida em um período de quatro anos em 1506 pacientes(5). Atualmente, 90% dos endoscopistas norte americanos usam troca rápida.

O uso da técnica tradicional de CPRE com fio-guia longo ainda é bastante prevalente no Brasil. A exposição de um maior número de endoscopistas brasileiros ao sistema de troca rápida provavelmente impactará favoravelmente nas CPREs. Mais estudos em nosso país são garantidos.

 

BIBLIOGRAFIA

  1. Bailey AA, Bourke MJ, Williams SJ, Walsh PR, Murray MA, Lee EYT, et al. A prospective randomized trial of cannulation technique in ERCP : effects on technical success and post − ERCP pancreatitis. 2008;296–301.
  2. Reddy SC, Draganov P V. ERCP wire systems: The long and the short of it. World J Gastroenterol. 2009;15(1):55–60.
  3. Buxbaum J, Leonor P, Tung J, Lane C, Sahakian A, Laine L. Randomized Trial of Endoscopist-Controlled vs. Assistant-Controlled Wire-Guided Cannulation of the Bile Duct. Am J Gastroenterol [Internet]. 2016;111(12):1841–7. Available from: http://dx.doi.org/10.1038/ajg.2016.268
  4. Technology Status Evaluation Report, Report E. Short-wire ERCP systems. 2007;66(4).
  5. Maceček J, Staňka B,  Konvička P. Hybrid short-wire ERCP technique, five years of experience. Gastroent Hepatol 2021; 75(3): 200–206.



É correta a indicação de CPRE para todos os pacientes assintomáticos portadores de coledocolitíase?

Recentemente foi publicado, no World Journal of Gastroenterology, um artigo sobre manejo da coledocolitíase assintomática intitulado Remaining issues of recommended management in current guidelines for asymptomatic common bile duct stones. Os autores questionam sobre a indicação irrestrita de CPRE para esse grupo de pacientes.

Os guidelines atuais para tratamento da coledocolitíase recomendam sua remoção por via endoscópica como primeira escolha de tratamento. Ao decidir pela CPRE nesses pacientes assintomáticos, o risco de complicações pós-CPRE e o resultado da história natural desses pacientes devem ser comparados.

Introdução

A CPRE é amplamente aceita como primeira escolha no tratamento da coledocolitíase. Para pacientes assintomáticos, o tratamento endoscópico para remoção desses cálculos é fortemente recomendado nos guidelines atuais pelo risco potencial de evolução para icterícia obstrutiva, colangite aguda e pancreatite biliar.

Porém, a CPRE é um procedimento com alto risco de complicação, incluindo pancreatite, colangite, sangramento e perfuração em 4-15,9% dos pacientes. A mais comum delas, pancreatite pós-CPRE, apresenta uma incidência geral de 9,7%.

Alguns pesquisadores relataram recentemente o risco de complicações relacionadas à CPRE com foco em portadores assintomáticos de coledocolitíase. A taxa de incidência geral de complicações nesses pacientes foi relatada em aproximadamente 15-25%, com uma incidência de pancreatite de 12-20%. Portanto, o risco de complicações nesse grupo, especialmente pancreatite pós-CPRE, parece ser maior que o relatado previamente.

Ao determinar a indicação de CPRE nesses pacientes, o risco de complicações biliares na abordagem conservadora – wait-and-see – deve ser considerado. Estudos prévios sobre a história natural da coledocolitíase relataram que a taxa de complicações biliares da abordagem wait-and-see para portadores assintomáticos variou entre 0 e 25,3% durante um período de acompanhamento de 30 dias a 4,8 anos.

Os autores esclarecem as questões remanescentes sobre as recomendações atuais das diretrizes no manejo dos portadores de coledocolitíase assintomática revisando as diretrizes atuais, os estudos anteriores sobre o risco de complicações pós-CPRE e a história natural do portador assintomático.

Epidemiologia

A prevalência de coledocolitíase em pacientes com colelitíase sintomática é estimada em 10-20%. Em pacientes com icterícia e dilatação do ducto biliar comum no US abdome, a prevalência durante a colecistectomia é relatada em <5%. Entretanto, não há estudos com foco na prevalência de coledocolitíase em pacientes com colelitíase assintomática, a maioria dos estudos é baseada em colangiografia intraoperatória em pacientes submetidos à colecistectomia. Embora a prevalência da coledocolitíase deva aumentar devido ao envelhecimento da população mundial, ela permanece desconhecida.

Métodos diagnósticos para coledocolitíase

Os guidelines recentes recomendam o uso da ecoendoscopia ou da colangioRM para diagnóstico de coledocolitíase em pacientes com suspeita. Uma meta-análise recente revelou que a sensibilidade para ecoendoscopia e colangioRM é de 97% vs. 90% e a especificidade de 87% vs. 92%, respetivamente. Entretanto, o odds ratio da ecoendoscopia foi significativamente maior que o da colangioRM pela sua alta taxa de detecção de cálculos pequenos quando comparada à colangioRM, enquanto a especificidade não teve significância estatística entre as duas modalidades.Embora a tomografia computadorizada seja um dos métodos diagnósticos para coledocolitíase, TC de rotina não é recomendada nos guidelines por diversas desvantagens, como exposição à radiação, efeitos colaterais do agente de contraste e baixa capacidade diagnóstica quando comparada com a eco e a colangioRM. Vários estudos que avaliaram a capacidade diagnóstica da TC abdome mostraram que a TC convencional teve sensibilidade razoável (69-87%) e especificidade (68-96%) para o diagnóstico de coledocolitíase.

Recomendações dos guidelines atuais no manejo da coledocolitíase assintomática

  • ESGE (European Society of Gastrointestinal Endoscopy): extração dos cálculos em todos os pacientes com coledocolitíase, independente se sintomático ou não, que estão aptos suficiente para tolerar a intervenção (recomendação forte/baixo nível de evidência).
  • BSG (The British Society of Gastroenterology): a extração dos cálculos é recomendada se possível. A evidência do benefício da remoção do cálculo é maior para pacientes sintomáticos (recomendação forte/baixo nível de evidência).
  • JSE (The Japanese Society of Gastroenterology): coledocolitíase assintomática deve ser tratada pelo risco de desenvolver complicações biliares (nível de evidência A/grau de recomendação forte).
  • ASGE (American Society for Gastrointestinal Endoscopy): coledocolitíase deve ser tratada se detectada, independentemente da presença ou ausência de circunstâncias clínicas atenuantes significativas (qualidade moderada).

Embora o risco ao longo da vida da coledocolitíase não tratada seja desconhecido, complicações, como dor, icterícia obstrutiva, colangite aguda, abscesso hepático, pancreatite biliar, cirrose biliar secundária e hipertensão portal, são potencialmente fatais. As diretrizes disponíveis recomendam o tratamento para pacientes assintomáticos, embora a qualidade de evidência seja baixa. Uma abordagem conservadora pode ser considerada apenas em pacientes em que o risco de extração dos cálculos seja maior que o risco de permanecer com coledocolitíase.

Risco de complicações pós-CPRE para pacientes com coledocolitíase assintomática

Recentemente, muitos estudos revelaram que o risco de complicação pós-CPRE em pacientes com coledocolitíase assintomática é maior que em pacientes sintomáticos. Um estudo retrospectivo multicêntrico, incluindo 164 pacientes com coledocolitíase assintomáticos e 949 sintomáticos, mostrou que a incidência de complicação nos assintomáticos foi de 19,5% e, nos sintomáticos, de 6,2%. Em particular, a pancreatite pós-CPRE foi significativamente maior nos pacientes sem sintomas do que nos sintomáticos (20,8% vs. 6,9%, respectivamente). A possível explicação para isso é a ausência de alteração nas bilirrubinas e de dilatação do ducto biliar comum e dificuldade de canulação, que são fatores de risco relacionados à pancreatite pós-CPRE.

História natural da coledocolitíase assintomática

Cerca de 2 a 4% dos pacientes com colelitíase assintomática tornam-se sintomáticos com os anos. Múltiplos cálculos, resultados negativos na colecistografia e idade jovem são fatores de risco para transição de assintomáticos para sintomáticos. O risco potencial de complicações intra e pós-operatórias relacionadas à cirurgia explica por que os guidelines atuais são contra a colecistectomia laparoscópica para pacientes com colelitíase assintomática em uma vesícula normal.

Embora a história natural ao longo dos anos da coledocolitíase seja menos compreendida que a da colelitíase, muitos estudos avaliaram sua história natural de curto a médio prazo.

Dados do estudo GallRiks, incluindo 594 pacientes com diagnóstico de coledocolitíase incidental descoberta durante colangiografia intraoperatória e que não foram tratados, relatam que 25,3% (150/594) evoluíram para desfechos desfavoráveis definidos como clareamento incompleto da via biliar e/ou complicações dentro de 30 dias do pós-operatório da colecistectomia. Entre 3234 pacientes submetidos a qualquer procedimento para remoção dos cálculos, incluindo CPRE pós ou intra-operatória, coledocotomia laparoscópica ou aberta ou extração transcística, 12,7% (411/3234) desenvolveram desfechos desfavoráveis. Entretanto, existem vários aspectos que não foram elucidados nesse estudo.

Um estudo recente de Hakuta et al relatou que, dos 114 pacientes com coledocolitíase assintomática submetidos à estratégia wait-and-see, 18% desenvolveram complicações, entre elas, colangite em 16 pacientes (14%), colecistite em 1 paciente (0,9%) e colestase em 4 pacientes (3,5%), sem pancreatite biliar durante o período médio de acompanhamento de 3,2 anos.

Em alguns pacientes, os cálculos podem ser drenados para o duodeno espontaneamente sem necessidade de intervenção. Collin et al demonstraram a passagem espontânea de cálculos pequenos sem complicações sérias em 24 de 46 pacientes com falha de enchimento nas colangiografias intraoperatórias durante a colecistectomia dentro de 6 semanas da cirurgia. A passagem espontânea e assintomática de cálculos pequenos com menos de 8 mm também foi vista em aproximadamente 20% dos pacientes no intervalo entre o diagnóstico na ecoendoscopia e a CPRE.

Novos estudos prospectivos são necessários.

Recorrência de cálculos no colédoco após remoção endoscópica

O estudo nacional coreano incluindo 46.181 pacientes com coledocolitíase demonstrou que 5.228 (11,3%) tiveram uma primeira recorrência em um seguimento médio de 4,3 anos. As taxas cumulativas de segunda e terceira recorrência após a inicial foram de 23,4% e 33,4%. Portanto, quanto maior a frequência de recorrência de cálculos, maior a taxa de recorrência de cálculos.Os fatores de risco para recorrência única foram o tamanho do ducto biliar comum, vesícula biliar deixada in situ com cálculos biliares e aerobilia após a CPRE, e o fator de risco para recorrências múltiplas foi o número de cálculos na primeira recorrência.

Problemas remanescentes nas diretrizes atuais

Ao indicar a CPRE para portadores de coledocolitíase assintomáticos, o risco de complicações precoces e tardias pós-CPRE e a história natural da coledocolitíase assintomática devem ser considerados.

Como relatado previamente, o risco de complicações precoces pós-CPRE nesses pacientes é de aproximadamente 15-25%, com incidência de pancreatite pós-CPRE de 12-20%. O risco de complicações tardias pós-CPRE, incluindo recorrência de cálculos e colangite, pode ser estimado em aproximadamente 10%. O risco de complicações biliares na abordagem wait-and-see durante o período médio de acompanhamento de 30 dias a 4,9 anos foi estimado em aproximadamente 0-25%. Portanto, CPRE para portadores de coledocolitíase assintomática pode ter resultados piores que a abordagem wait-and-see.

O fato de não existirem estudos prospectivos randomizados para comparar o risco da CPRE vs. conduta conservadora nesses pacientes assintomáticos é um problema sério, pela importância da questão.

Pela ausência de estudos controlados e randomizados sobre essa questão, os pacientes devem ser informados que as diretrizes atuais que indicam CPRE para pacientes assintomáticos baseiam-se nas evidências dos pacientes sintomáticos e na opinião de especialistas.

Estratégias para reduzir complicações pós-CPRE em pacientes com coledocolitíase assintomática

Um estudo prévio relatou que o uso do pré-corte, a dilatação do esfíncter e o envolvimento de estagiários foram fatores de risco significativos para o desenvolvimento de pancreatite pós-CPRE em pacientes assintomáticos. Um outro relatou que CPRE nesses casos realizada por endoscopistas experientes apresenta a mesma segurança que em pacientes sintomáticos. CPRE, nos pacientes portadores de coledocolitíase, deve, portanto, ser realizada por endoscopistas experientes. Profilaxia, como colocação de prótese pancreática, deve ser considerada em pacientes assintomáticos com fatores de risco, como pré-corte e dilatação balonada do esfíncter.

Um estudo retrospectivo revelou que procedimentos com canulação biliar maior que 15 minutos é um fator de risco significativo para pancreatite pós-CPRE. Uma alternativa seria tentar extrair o cálculo em um segundo procedimento se o tempo de canulação ultrapassar 15 minutos.

Conclusão

Embora as diretrizes atuais recomendem a CPRE para coledocolitíase assintomática, há necessidade de uma mudança de perspectiva nessa indicação. Até onde se sabe, não existem estudos randomizados sobre se a CPRE é a melhor alternativa nesse grupo de pacientes que a abordagem conservadora. Por enquanto, o risco de induzir complicações precoces e tardias pós-CPRE vs. risco de complicações relacionadas à história natural da doença não podem ser comparados.

Portanto, por ora, continuaremos indicando CPRE na coledocolitíase assintomática.

Como citar este artigo

Arraes L. É correta a indicação de CPRE para todos os pacientes assintomáticos portadores de coledocolitíase?. Endoscopia Terapêutica; 2021. Disponível em: http://endoscopiaterapeutica.net/pt/artigoscomentados/e-correta-a-indicacao-de-cpre-para-todos-os-pacientes-assintomaticos-portadores-de-coledocolitiase

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Alergia a Contraste em CPRE

 

contraste

Contrastes iodados são fundamentais para uma boa qualidade de imagem na CPRE. No entanto, é muito comum recebermos pacientes com antecedente de reação alérgica a contraste iodado em procedimentos radiológicos (ex: tomografia computadorizada). Por outro lado, a ocorrência de reação alérgica em pacientes submetidos a CPRE é extremamente rara.

Qual o risco de reação alérgica ao contraste iodado na CPRE?

O que fazer em casos de antecedente de reação alérgica?

 

Vários estudos já confirmaram que ocorre absorção sistêmica de contraste após a CPRE. A concentração sérica de iodo após CPRE pode aumentar até 90 x, o que  corresponde a cerca de 1% da elevação observada com administração endovenosa em procedimentos radiológicos e cerca de 0.6% da observada durante uma coronariografia.

 

Felizmente, a ocorrência de reação adversa em CPRE é extremamente rara:

  • Bilbao et al reportaram 3 reações adversas manifestadas como eritema e rash, em 8.681 CPREs;
  • Sable et al não encontraram manifestações alérgicas pós CPRE, apesar de antecedente de hipersensibilidade intravascular em 2 pacientes;
  • Draganov e col realizaram estudo prospectivo envolvendo 601 pacientes submetidos a CPRE com contraste hiperosmolar. Destes, 80 tinham antecedente de reação alérgica (39 leve, 21 moderada e 20 grave). Nenhum paciente recebeu profilaxia e não houve relato de manifestações alérgicas em nenhum destes pacientes.

 

A pancreatografia parece estar associada a maior absorção sistêmica de iodo do que a colangiografia.

 

Tipos de Contraste

Contrastes iodados são ácidos benzoicos hidrofílicos, com baixa afinidade por proteínas e baixa solubilidade aos lipídeos.

Podem ser divididos em iônicos (geralmente são de alta osmolaridade) e não iônicos (baixa osmolaridade)

  • Alta osmolaridade: custo menor
  • Baixa osmolaridade: menor chance de reações adversas.
  • Qualidade de imagem: semelhante

 

A qualidade de imagem dos meios iônicos e não iônicos são muito semelhantes. A diluição do agente com água diminui sua atenuação. Em geral, prefere-se o contraste um pouco diluído para o diagnóstico de cálculos em colédoco dilatado. Para estudo de estenoses e do pâncreas, preferimos utilizar contraste puro.

 

meios contraste

Obs: o Gadolíneo é um agente não iodado usado em radiologia para casos com antecedente de reações graves ao agentes iodados. Seu uso já foi descrito em colangiografia. No entanto, o custo é mais elevado, a apresentação do frasco é de 15-20 ml e a atenuação é menor do que os contrastes iodados.

Reações Alérgicas

Muito do que se sabemos sobre reações alérgicas a contraste são conhecimentos dos estudos de radiologia.

A incidência de reações adversas com contraste hiperosmolar é de 5-12%, com os de baixa osmolaridade 1-3% e com gadolínio é de 0.07-2.4%.

 

Existem 2 tipos principais de reações adversas:

  1. Anafilactoide (idiossincráticas)

  • São as verdadeiras alergias. Não dependem nem da dose, nem da velocidade de infusão.
  • Maioria ocorre dentro de 5 minutos da administração.
  • Patogênese pouco compreendida. Acredita-se que não seja mediada por IgE (como as verdadeiras reações anafiláticas) .
  • Mecanismo mais importante envolve liberação de histamina de basófilos e eosinófilos
  • Liberação de compostos vasoativos provocando hipotensão
  • Administração prévia de corticoides e anti-histamínicos pode diminuir sua incidência, porém uma pequena fração dos pacientes pode ter uma verdadeira anafilaxia mediada por IgE
  • Sintomas incluem urticária, prurido, edema cutâneo, coceira na garganta, congestão nasal, podendo em casos graves evoluir para edema de laringe, broncoespasmo e choque anafilático (ver tabela)

 

2. Não anafilactoide (quimiotóxica)

  • Também chamadas de reações fisiológicas, são causadas pela propriedades químicas dos meios de contraste e são dependentes da dose e da velocidade de infusão.
  • As características iônicas dos meios de contraste provocam alterações de sinalização neuronal e cardíaca, ao passo que sua osmolaridade interfere no balanço de fluidos.
  • Sintomas incluem: náusea, cefaleia, flush, hipertensão, tontura, calafrio, ansiedade, alterações no gosto (altered taste), sintomas vago-vagais e nefrotoxicidade.
  • Casos graves podem cursar com arritmia, convulsão e emergência hipertensiva.
  • Geralmente são autolimitadas e não necessita tratamento específico. Tampouco são preveníveis com administração de esteroides.
  • Visto ser dose-dependente e visto a absorção sistêmica pós-CPRE ser muito baixa, não deve ser uma preocupação nos pacientes submetidos a CPRE.

 

Quanto a gravidade, podem ser classificadas em:

  1. Leve: autolimitada, sem progressão
  2. Moderada: mais difusas e geralmente necessitam intervenção medicamentosa
  3. Intensa: risco de morte

 

 

Reação leve Reação moderada Reação intensa
Urticaria/prurido limitado

Edema cutâneo limitado

Garganta “arranhando”

Congestão nasal

Espirro

Urticaria difusa

Eritema difuso sem hipotensão.

Edema facial sem dificuldade respiratória

Sensação de aperto na garganta, mas sem dificuldade respiratória

Broncoespasmo com leve dispneia

Edema difuso ou edema facial

Eritema difuso com hipotensão

Edema de laringe com estridor e/ou hipóxia

Broncoespasmo com hipóxia

Choque anafilático

Prevenção:

A administração profilática de corticoides e anti-histamínicos tem se mostrado eficaz na redução das manifestações alérgicas aos meios de contraste. No entanto, o efeito destes medicamentos se administrados em menos de 4-6h antes do procedimento é insignificante.

Esquema mais utilizado entre os radiologistas é a seguinte associação:

Prednisona: 50 mg VO 13h, 7h e 1h antes da injeção de contraste

+

Difenidramina: 50 mg VO, EV ou IM 1 h antes

 

Recomendações da ASGE

As evidências de segurança provenientes dos estudos do uso endovascular na radiologia não podem ser extrapolados para a endoscopia, visto a baixa incidência de reações adversas, especialmente de reações graves na CPRE.

Não há evidência na literatura para recomendar contrastes não iônicos como método de prevenção de complicações em CPRE (existe evidência para o uso EV, mas não existe esta comprovação para colangiografia).

Em pacientes considerads de alto risco (reação anafilactoide grave com contraste EV) pré-medicações ou substituição do meio de contraste podem ser considerados uma opção, baseado em considerações teóricas.

 

Você já teve algum problema com reação alérgica em CPRE? Qual agente de contraste tem utilizado no seu serviço? Como conduz os casos com antecedente de reação alérgica a contraste?


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Referências:

1: Rose TA Jr, Choi JW. Intravenous Imaging Contrast Media Complications: The Basics That Every Clinician Needs to Know. Am J Med. 2015 Sep;128(9):943-9.

2: Pan JJ, Draganov PV. Adverse reactions to iodinated contrast media administered at the time of endoscopic retrograde cholangiopancreatography (ERCP). Inflamm Allergy Drug Targets. 2009 Mar;8(1):17-20.

3: Mishkin D, Carpenter S, Croffie J, Chuttani R, DiSario J, Hussain N, Liu J, Somogyi L, Tierney W, Petersen BT; Technology Assessment Committee, American Society for Gastrointestinal Endoscopy.. ASGE Technology Status Evaluation Report: radiographic contrast media used in ERCP. Gastrointest Endosc. 2005 Oct;62(4):480-4.

4: Bilbao MK, Dotter CT, Lee TG, Katon RM. Complications of endoscopic retrograde cholangiopancreatography (ERCP). A study of 10,000 cases. Gastroenterology. 1976 Mar;70(3):314-20.

5: Sable RA, Rosenthal WS, Siegel J, Ho R, Jankowski RH. Absorption of contrast medium during ERCP. Dig Dis Sci. 1983 Sep;28(9):801-6.