Ingestão de cáusticos e endoscopia – quando podemos realmente ajudar no quadro agudo?
A ingestão de cáusticos representa problema relevante tanto pelos danos agudos como crônicos, envolvendo pacientes de todas as faixas etárias. Na população pediátrica está habitualmente associada a ingestão acidental principalmente de produtos de limpeza armazenados de forma incorreta e reaproveitamento de embalagens. Nas outras faixas etárias, tentativas de suicídio através da ingesta intencional de cáusticos são causa relevante, senão a mais frequente e grave.
Os agentes cáusticos podem sem ácidos (ácido muriático, ácido sulfúrico, ácido fórmico -“formol”) ou álcalis (bases), dos quais os principais representantes em nosso meio são o hipoclorito de sódio (água sanitária) e hidróxido de sódio (soda cáustica). O potencial de dano relevante está associado a dois fatores principais, o pH do produto (maior risco com pH<2 ou >11) e o volume ingerido.
A ingestão de cáusticos alcalinos está associada a dano por necrose por liquefação onde há saponificação dos lipídeos, desnaturação de proteínas e trombose capilar com potencial de danos mais profundos e perfuração. O dano secundário à ingestão de ácidos está associado por sua vez à necrose por coagulação. Há uma evolução natural no processo de dano e cicatrização da mucosa que pode ser dividido em três fases principais:
- Fase aguda (até 10 dias) – necrose aguda (liquefação ou coagulação), trombose e ativação de cascata inflamatória; início da deposição de colágeno e re-epitelização.
- Fase sub-aguda (10 dias – 6 a 8 semanas) – maior atividade dos mecanismos de reparação, aumento de colágeno e reepitelização o que pode conferir melhora sintomática inicial, com potencial de retorno à dieta oral. Considerada uma fase “traiçoeira” pois os sintomas melhoram enquanto o esôfago se reepiteliza e forma possíveis estenoses.
- Fase crônica (>6 a 8 semanas) – fase de cicatrização e estenoses. Há recrudescimento de sintomas de odinofagia, disfagia e vômitos pelo estabelecimento de estenoses cicatriciais no esôfago.
Manejo inicial
O manejo inicial visa oferecer suporte, com avaliação de possíveis danos às vias áreas, hidratação, dieta zero e realização de exames complementares. Os laboratoriais incluem hemograma, ureia, creatinina, enzimas hepáticas, enquanto os exames de imagem podem incluir radiografia simples (avaliar pneumoperitônio, pneumotórax ou pneumomediastino) e endoscopia. A tomografia tem capacidade de avaliar a profundidade do dano ao trato digestivo (não avaliada pela endoscopia), sendo utilizada em diversos centros, porém não é utilizada rotineiramente em nosso meio.
Endoscopia
A endoscopia digestiva alta possui papel importante no tratamento dos pacientes com ingestão cáustica através da classificação das lesões e consequente identificação do grupo de pacientes com maior risco para desenvolvimento de estenoses, os quais devem ser incluídos em um programa de dilatação. A classificação utilizada é a Classificação de Zargar, sendo bastante simples:
- Grau 1 – edema e enantema;
- Grau 2 a – Friabilidade, erosões, eritema, exsudato inflamatório difuso;
- Grau 2 b – úlceras superficiais ou profundas, confluentes ou não;
- Grau 3 a – áreas de necrose;
- Grau 3 b – necrose extensa.
A endoscopia deve ser realizada o quanto antes, preferencialmente nas primeiras 24h da ingesta e no máximo até 48h após. Após esse período, o risco de agravamento de lesões é maior e a endoscopia deve ser suspensa, podendo ser realizada após 3 semanas da ingestão, momento onde podem ser iniciadas as sessões de dilatação nos pacientes de risco para desenvolvimento de estenoses (Zargar 2b ou 3). Alguns estudos sugerem a realização de estudo contrastado para confirmar a presença de estenose antes da dilatação, o que também pode ser realizado nos pacientes que não conseguiram fazer endoscopia nas primeiras 48h. A presença de necrose esofágica pode estar associada a perfuração sendo importante avaliar a profundidade da lesão com tomografia. Quadros de necrose extensa habitualmente são cirúrgicos.
É importante considerar que a ingestão de cáusticos pode desencadear uma série de alterações sistêmicas como acidose metabólica, distúrbios eletrolíticos, insuficiência renal e também danos (ou hiperatividade) das vias aéreas (principalmente os mais voláteis) requerendo cuidado adicional na sedação destes pacientes.
Mensagens principais:
- A endoscopia deve ser realizada precocemente (máximo 48h);
- Não induzir vômitos pelo risco de refluxo ao esôfago e agravamento dos danos;
- Zargar 1 e 2a – baixo risco de desenvolvimento de estenoses;
- Zargar 3a e 3b – risco de perfuração;
- Risco aumentado de estenose e perfuração – pH <2 ou >11;
- Danos às vias aéreas com cáusticos voláteis;
É importante avaliar que em muitas ocasiões não temos informações fidedignas relacionadas ao produto ingerido por diversos motivos:
- Crianças ou responsáveis podem desconhecer o produto ingerido ou não darem informações verdadeiras por temor de possíveis repercussões;
- Pacientes com tentativa de suicídio estão atravessando momento de grande pesar e instabilidade emocional, desconhecida pelo emergencista e podem maximizar ou minimizar dados relevantes;
- Produtos formulados, manipulados, diluídos podem conter substâncias desconhecidas ou causarem reações químicas incertas;
- Ingestão de produtos cáusticos em ambientes de trabalho, escolas, creches, fazendas, casa de terceiros etc – o temor de repercussões negativas e responsabilização por danos podem influenciar funcionários e familiares.
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Referências
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Como citar este artigo
Ferreira F. Ingestão de cáusticos e endoscopia – quando podemos realmente ajudar no quadro agudo? Endoscopia Terapêutica 2022. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/ingestao-de-causticos-e-endoscopia–quando-podemos-realmente-ajudar-no-quadro-agudo/