Quando utilizar endoclipes profiláticos após polipectomia ou mucosectomia de lesões sésseis do cólon?

A colonoscopia e polipectomia de pólipos adenomatosos diminuem o risco do câncer colorretal, no entanto, o sangramento tardio pós-polipectomia (DPPB) é uma conhecida complicação potencialmente grave que ocorre entre 0,23% e 1,9% para pólipos em geral e em 7% para grandes pólipos ressecados através de mucosectomia (EMR). Os principais fatores de risco para o desenvolvimento do DPPB incluem o tamanho, a morfologia e localização do pólipo, bem como o uso de agentes anti-agregantes plaquetários e anticoagulantes.

A discussão do papel do fechamento profilático com endoclipes de forma rotineira para prevenção do DPPB já se arrasta há anos, sempre com resultados conflitantes entre os diversos trabalhos que abordam o tema (vide artigo prévio sobre SANGRAMENTO TARDIO PÓS-MUCOSECTOMIA DE CÓLON. SERÁ QUE PODEMOS EVITAR ESSE DRAMA?). Os defensores referenciam estudos que evidenciaram redução na incidência, enquanto os contrários apontam falta de evidência comprovada e o alto custo de sua implementação. De fato, o uso de endoclipes aumenta o custo do procedimento, com um estudo de Liaquat et al. estabelecendo o valor unitário de US$ 150,00 por clipe e estimando uma conta total de US$ 555,00 por paciente, em média. Todavia, a despesa do sistema de saúde decorrente do manejo de um DPPB pode facilmente suplantar o custo dos endoclipes, especialmente se houver necessidade de internação hospitalar e repetição da colonoscopia, ou menos frequentemente, se for necessária angiografia ou cirurgia.

O Guideline de 2017 da Sociedade Europeia de Endoscopia Gastrointestinal (ESGE) para Polipectomia e EMR colorretal recomenda hemostasia profilática de rotina apenas para grandes pólipos pediculados (cabeça ≥ 20 mm ou pedículo ≥ 10 mm), usando injeção de adrenalina e/ou hemostasia mecânica (por exemplo, endoloops ou clipes). As diretrizes indicam que a hemostasia profilática mecânica pode ser superior à injeção de adrenalina, conforme evidenciado por estudos que descobriram que o uso de dispositivos mecânicos para pré-tratamento do pedículo do pólipo, sozinhos ou em combinação com injeção de adrenalina, diminuiu significativamente o sangramento pós-polipectomia em comparação à injeção de adrenalina sozinha. No entanto, para pólipos não pediculados (ou seja, sésseis), a diretriz da ESGE não recomendou o fechamento com endoclipes de rotina para evitar sangramento tardio.

Desde o Guideline de 2017, houve alguns ensaios clínicos randomizados (RCT) adicionais publicados que abordaram essa questão, portanto, uma reavaliação das evidências de alta qualidade se fazia necessária e foi efetivamente realizada por Kamal et al. (2020) numa meta-análise intitulada “Hemoclipes profiláticos na prevenção de sangramento tardio pós-polipectomia para pólipos colorretais ≥ 1 cm: Meta-análise de ensaios clínicos randomizados”. Buscando responder definitivamente à questão “clipar ou não clipar”, os desfechos primários de interesse foram DPPB com pólipos ≥ 2 cm e pólipos de 1 a 1,9 cm. Os desfechos secundários incluíram DPPB para todos os pólipos ≥ 1 cm, pólipos proximais, pólipos distais, uso de terapia anticoagulante/antiplaquetária, perfuração e síndrome pós-polipectomia. Um total de nove RCTs (oito publicações completas e um resumo) foram incluídos em sua análise, compreendendo 3764 pólipos, dos quais 1917 tiveram colocação de clipe profilático e 1847 não. Os resultados desta meta-análise demonstram uma redução significativa no DPPB com a colocação de clipe profilático em pólipos do cólon proximal ≥ 2 cm.

As conclusões da meta-análise de Kamal et al. são corroboradas por outra meta-análise publicada por Spadaccini et al (2020). Sua revisão de nove RCTs demonstrou uma redução de risco de quase 50% no DPPB com clipagem profilática em pólipos do cólon proximal ≥ 2 cm, mas nenhum benefício significativo da clipagem geral. Suas constatações se traduziram em um NNT (número necessário para tratar – com endoclipes) de 23 pacientes para prevenir um DPPB em lesões desse tamanho.

Por último, uma terceira meta-análise publicada em 2022 por  Forbes et al. analisou dados individuais de pacientes em ensaios randomizados que avaliaram a eficácia do fechamento com endoclipes após EMR de pólipos colorretais não pediculados (LNPCP) do cólon proximal ≥20 mm para prevenção de eventos adverso. De 3145 citações, 4 ensaios foram incluídos, representando 1248 pacientes com LNPCP proximais. A taxa geral de sangramento clinicamente significativo pós-EMR foi de 3,5% e 9,0% em pacientes clipados e não clipados, respectivamente. Restou a conclusão, portanto, que o fechamento com endoclipes profilático é eficaz na prevenção e deve ser considerado um componente padrão pós-EMR de LNPCP no cólon proximal.

A despeito da evidência dos novos conhecimentos de que o fechamento com endoclipes de pólipos sésseis grandes (≥ 2 cm) do cólon proximal comprovadamente reduz o risco de DPPB, faz-se necessário algumas ponderações antes de adotar esta prática de maneira sistemática e irrestrita, uma vez que determinadas variáveis tem a capacidade de modificar o desfecho da custo-efetividade:

  • Tamanho da lesão – defeitos maiores exigem mais clipes para fechar e podem não ser passíveis de fechamento completo em muitos casos. Existem evidências de que o fechamento parcial ou incompleto do defeito da polipectomia ou EMR não é eficaz na redução do DPPB e que, mesmo em mãos de especialistas, 43% dos sítios de EMR com tamanho ≥ 20 mm não puderam ser totalmente fechados com clipes.
  • Custo-benefício – pode variar substancialmente dependendo do número de clipes necessários para cada caso, bem como do custo local de cada clipe.
  • Seguimento pós polipectomia ou EMR – considerando que significativa parte das ressecções de lesões >20mm ocorre em piecemeal, o que comprovadamente aumento chance de recidiva, os clipes podem dificultar a vigilância pós procedimento, uma vez que sua presença prolongada resulta no crescimento de tecido de granulação, tornando difícil, por vezes, distingui-lo de um adenoma. Mesmo depois de expelidos, a entidade bem descrita de “artefato de clipe” pode prejudicar a avaliação de locais de cicatriz de EMR/ polipectomia e, na ausência de experiência na interpretação de padrões de mucosas, potencialmente resultar em ressecção adicional desnecessária.
  • Novas técnicas de ressecção – técnicas emergentes como polipectomia e EMR com alça fria demonstram taxas muito baixas de sangramento tardio, mesmo para pólipos grandes, incluindo adenomas e lesões serrilhadas sésseis, sendo improvável que o fechamento com endoclipes de rotina nestas situações valha a pena.

Diante de todo o exposto, é bastante razoável considerar que consensos ou diretrizes futuras de sociedades de especialidade que abordem o tema aqui discutido passem a sugerir o fechamento profilático do leito cruento com endoclipes após polipectomias com alça quente (“hot snare”) ou EMR de pólipos sésseis do cólon proximal com tamanho ≥20 mm para fins de redução da incidência de DPPB. No entanto, ainda que eventualmente possa não ser recomendada como rotina padrão, devido a múltiplos fatores inerentes ao paciente, lesão e/ou procedimento que afetam os riscos e benefícios da aplicação profilática do clipe, sua consideração meticulosa pelo endoscopista em cada caso continuará sendo uma postura bastante apropriada.

Referências Bibliográficas:

  1. Alexandra Marc et al. Prevention of delayed post-polypectomy bleeding: Should we amend the 2017 ESGE Guideline? Endoscopy International Open 2020; 08: E1111–E1114
  2. Liaquat H, Rohn E, Rex DK. Prophylactic clip closure reduced the risk of delayed postpolypectomy hemorrhage: experience in 277 clipped large sessile or flat colorectal lesions and 247 control lesions. Gastrointest Endosc. 2013 Mar;77(3):401-7. doi: 10.1016/j.gie.2012.10.024. Epub 2013 Jan 11. PMID: 23317580.
  3. Monika Ferlitsch et al. Colorectal polypectomy and endoscopic mucosal resection (EMR): European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) Clinical Guideline. Endoscopy 2017; 49(03): 270-297
  4. Faisal Kamal et al. Prophylactic hemoclips in prevention of delayed post-polypectomy bleeding for ≥ 1 cm colorectal polyps: meta-analysis of randomized controlled trials. Endoscopy International Open 2020; 08: E1102–E1110
  5. Marco Spadaccini et al. Prophylactic Clipping After Colorectal Endoscopic Resection Prevents Bleeding Of Large, Proximal Polyps: Meta-Analysis Of Randomized Trials. Gastroenterology 2020 Jul;159(1):148-158.e11.
  6. Nauzer Forbes et al. Clip closure to prevent adverse events after EMR of proximal large nonpedunculated colorectal polyps: meta-analysis of individual patient data from randomized controlled trials. Gastrointest Endosc 2022;96:721-31.

Como citar este artigo

Ribeiro MSI Endoscopia Terapeutica Quando utilizar endoclipes profiláticos após polipectomia ou mucosectomia de lesões sésseis do cólon?, 2024 vol II. Disponível em: Quando utilizar endoclipes profiláticos após polipectomia ou mucosectomia de lesões sésseis do cólon? • Endoscopia Terapeutica.




IPMN: o que mudou de Fukuoka a Kyoto

1. Introdução

As lesões císticas pancreáticas tem sido cada vez mais diagnosticadas, tanto pelo aumento da incidência dessas lesões quanto pela realização e acesso crescente a exames de imagem que eventualmente identificam tais lesões. A neoplasia mucinosa papilar intraductal (IPMN) é uma das principais lesões císticas do pâncreas, tanto pela sua incidência quanto pelo seu potencial de transformação maligna, porém sua apresentação e evolução apresentam um espectro amplo  de possibilidades. Como o potencial maligno do IPMN de ducto secundário varia de 1 a 38%, é fundamental identificar quais lesões apresentam risco aumentado e quais podem ser apenas acompanhadas, evitando cirurgias desnecessárias que envolvem riscos e morbi-mortalidade consideráveis. Já o IPMN de ducto principal apresenta um potencial maligno maior, de 33 a 85%, sendo indicada a ressecção cirúrgica sempre que o ducto pancreático principal (DPP) esteja dilatado em 10 mm ou mais e o paciente apresente condições clínicas e expectativa de vida compatível com a abordagem cirúrgica (1).

Para padronizar o manejo dos IPMN com base nas melhores evidências disponíveis, a Associação Internacional de Pancreatologia (IAP) publicou o primeiro guideline contemplando as lesões císticas pancreáticas mucinosas – IPMN e cistoadenoma mucinoso – em 2006 (2). Este guideline foi revisado em 2012 (3) e, posteriormente em 2017, um novo guideline com foco apenas nos IPMN foi publicado, e ficou conhecido como o consenso de Fukuoka (4). Os critérios de Fukuoka foram amplamente divulgados e discutidos ao longo dos últimos anos, sendo ferramenta chave no manejo dos IPMN, que já foi tema de publicação no Endoscopia Terapêutica (clique aqui para Critérios de Fukuoka para IPMN). Mais recentemente, em 2022 no encontro da IAP realizado em Kyoto, o consenso de Fukuoka foi revisado, sendo o novo guideline publicado na Pancreatology em 2024 (5).

Neste artigo, iremos abordar o novo guideline de Kyoto, enfatizando o que mudou desde o último consenso em Fukuoka à luz do recente artigo publicado na The New England Journal of Medicine sobre o tema (1), sendo essas as duas referências para os próximos tópicos (1, 5).

2. Conceitos e definições

Não houve mudança em relação às definições dos três tipos de IPMN, que podem ser de ducto secundário (“Branch duct-IPMN” ou BD-IPMN), de ducto principal (“Main-duct IPMN” ou MD-IPMN) ou misto – quando contempla os critérios tanto para BD-IPMN quanto para MD-IPMN. Os cistos pancreáticos >5mm com comunicação com o DPP devem ser classificados como BD-IPMN, enquanto uma dilatação do DPP >5mm sem fator obstrutivo é classificado como MD-IPMN. A importância e manejo de cistos pancreáticos assintomáticos <5mm permanece controverso.

Figura 1: Tipos de IPMN na ressonância magnética. Adaptado de Ohtsuka T, et al. Pancreatology. 2024 (5).

Os IPMN podem apresentar displasia de baixo grau ou displasia de alto grau – que também pode ser chamada de carcinoma in situ -, podendo chegar a carcinoma invasivo (CI). O objetivo no manejo dos IPMN é distinguir os IPMN de baixo grau (maioria) dos de alto grau, que evoluirão para carcinoma invasivo.

Em relação aos subtipos morfológicos, são reconhecidos três tipos: gástrico (mais frequente e melhor prognóstico), intestinal e pancreatobiliar (maior risco de malignização). O tipo oncocítico foi separado como entidade própria, sendo denominado neoplasia oncocítica papilar intraductal, devido principalmente estudos genéticos que identificaram diferenças significativas.

3. Investigação diagnóstica e exames complementares

Os exames de imagem primários na avaliação dos IPMN são a ressonância magnética (RM) e a tomografia computadorizada (TC), sendo a ecoendoscopia indicada para avaliação de achados sugestivos de displasia de alto grau e carcinoma invasivo.

Punção ecoguiada

A punção ecoguiada não está indicada de rotina. Ela deve ser indicada apenas quando há dúvida diagnóstica para diagnóstico diferencial com outras lesões císticas ou em casos nos quais a punção poderá mudar a conduta. Quando há evidência de alto risco para displasia de alto grau ou carcinoma invasivo na RM, a cirurgia está indicada e não há indicação de punção ecoguiada.

Para o diagnóstico diferencial com as demais lesões císticas pancreáticas, o CEA e a amilase são tradicionalmente os principais marcadores utilizados, porém estudos mais recentes destacam a glicose como importante marcador para distinguir lesões mucinosas de não mucinosas. Glicose <50ng/ml apresenta sensibilidade de 93%, especificidade de 89% e acurácia que pode chegar até 90 a 94%, tendo um rendimento melhor que o CEA – que apresenta uma sensibilidade de 58% e especificidade de 87%. É importante ressaltar que tais marcadores não apresentam relação com displasia de alto grau ou carcinoma in situ.

Em relação a punção ecoguiada com o objetivo de identificar displasia de alto grau ou carcinoma invasivo em casos limítrofes, a sensibilidade para identificação citológica no fluido cístico é de apenas 28,7%, porém o achado suspeito ou positivo apresenta especificidade de 91-100% e 100% respectivamente, e a ressecção cirúrgica estaria indicada. Para superar a baixa sensibilidade da punção aspirativa, foram desenvolvidos “microforceps” para biópsias através da agulha, que apresentam maior sensibilidade, apesar de um risco um pouco aumentado de pancreatite e sangramento. A punção ecoguiada também pode possibilitar a análise genética do conteúdo, que pode se relacionar tanto na confirmação do diagnóstico de IPMN (alterações nos genes KRAS e GNAS) quanto com risco de displasia de alto grau e carcinoma invasivo (alterações nos genes TP53, CTNNB1, CDKN2A, SMAD4, e genes envolvidos na via mTOR) – estes apresentando alta especificidade (92-98%) porém baixa sensibilidade (9-39%). Quando identificada áreas sólidas, as punções (se indicada) devem ser dirigidas a estas áreas, onde o rendimento diagnóstico é maior. No caso de avaliação de nódulos murais, a ecoendoscopia com contraste pode definir o caráter neoplásico ou não-neoplásico do nódulo, evitando a necessidade de punção ecoguiada, que apresenta um risco de “seeding” de cerca de 0,3%.

Pancreatoscopia

Pode ser útil nos casos de MD-IPMN e tipo misto com indicação de cirurgia para delimitar a extensão da ressecção e evitar a pancreatectomia total em alguns casos. Ela não deve ser realizada no intra-operatório pelo risco de disseminação neoplásica peritoneal e pela possível super-estimativa da extensão da lesão a ser ressecada, uma vez que a acurácia para diferenciar displasia de baixo grau (que não precisa ser ressecada) de alto grau (que deve ser ressecada) é baixa. Dessa forma, quando indicada, a pancreatoscopia deve ser realizada antes do procedimento cirúrgico, ficando a margem intra-operatória a critério da avaliação anatompatológica de congelação.

O que mudou: 1) a análise genética do material da punção ecoguiada pode auxiliar no diagnóstico e identificação de lesões de alto risco. 2) a pancreatoscopia pode auxiliar em alguns casos de MD-IPMN e tipo misto e, quando indicada, deve ser realizada antes da cirurgia (e não no intra-operatório).

4. Avaliação do risco – estigmas de alto risco e características preocupantes

Talvez a principal contribuição dos guidelines que abordam os IPMN seja identificar os achados e fatores que aumentam o risco de evolução para câncer e atribuir condutas a partir desses fatores. Desde a publicação de 2012 os termos “estigmas de alto risco” (high risk stigmata – HRS) e “características preocupantes” (worrisome features – WF) vem sendo utilizados para identificar os fatores que apresentam alto risco e risco intermediário, respectivamente.

4. a) Estigmas de alto risco

  • Icterícia obstrutiva em paciente com lesão cística na cabeça do pâncreas
  • Nódulo mural com realce ≥ 5mm ou componente sólido
  • Ducto pancreático principal ≥ 10mm
  • Citologia suspeita ou positiva (caso tenha sido indicada punção ecoguiada)

O que mudou: citologia suspeita ou positiva foi definida como estigma de alto risco

Figura 2: Estigmas de alto risco. Adaptado de Gonda TA, et al. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024 (1).

4. b) Características preocupantes (CP)

> Clínica

  • Pancreatite aguda
  • Aumento de CA 19-9
  • Início ou exacerbação aguda de Diabetes no último 1 ano

> Imagem

  • . Cisto ≥ 30mm
  •   Nódulo mural com realce < 5mm
  •   Paredes císticas espessadas ou com realce
  •   Ducto pancreático principal ≥ 5mm e <10mm
  •   Mudança abrupta de calibre do DPP com atrofia distal
  •   Linfadenopatia
  •   Crescimento cístico ≥ 2,5mm/ano

A presença de múltiplas CPs aumenta significativamente o risco de displasia de alto grau e carcinoma invasivo:

– 1 CP: 22% de risco
            – 2 CP: 34% de risco
            – 3 CP: 59% de risco
            – ≥4 CP: até 100% de risco

O que mudou: 1) um critério clínico novo foi incorporado – início ou exacerbação de diabetes no último ano; 2) um critério foi alterado – crescimento cístico ≥ 2,5mm/ano (antes era ≥ 5mm/2 anos; 3) foi incorporado o conceito de que múltiplas características preocupantes aumentam o risco de displasia de baixo grau e carcinoma invasivo.

Figura 3: Representação de 8 das 10 características preocupantes. Adaptado de Gonda TA, et al. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024 (1).

5) Fatores adicionais para avaliação nos pacientes com “características preocupantes”

Os pacientes que não têm estigmas de alto risco, porém apresentam alguma CP, devem ser avaliados para fatores adicionais que possam direcionar a conduta para o seguimento clínico ou uma tendência à indicação cirúrgica.

Foram alterados os três fatores considerados previamente em Fukuoka (que eram: presença de nódulo mural definitivo > 5mm, características suspeitas para envolvimento do DPP e citologia suspeita ou positiva). No atual guideline de Kyoto, esses fatores são: 1) pancreatite de repetição com piora da qualidade de vida; 2) múltiplas características preocupantes; 3) jovem com bom status clínico para cirurgia. A presença de um desses três fatores direciona para uma abordagem cirúrgica, enquanto a ausência dos três direciona para o seguimento clínico com exames de imagem periódicos.

O que mudou: os três fatores adicionais a serem avaliados em pacientes sem estigmas de alto risco porém com alguma CP – 1) pancreatite de repetição com piora da qualidade de vida; 2) múltiplas características preocupantes; 3) jovem com bom status clínico para cirurgia.

6) Seguimento de IPMN não ressecado

O risco de progressão dos BD-IPMN apresenta relação com o tamanho inicial do maior cisto ao diagnóstico, e, portanto, o seguimento preferencialmente com RM das lesões não candidatas à ressecção cirúrgica baseia-se no tamanho do maior cisto:

  • < 20mm: reavaliação em 6 meses. Se estável, a cada 18 meses
  • ≥ 20 mm <30mm: reavaliação em 6 e 12 meses. Se estável, a cada 12 meses
  • ≥ 30mm: a cada 6 meses

Em relação ao seguimento de lesões <20mm sem CP que permanecem estáveis, há controvérsia na literatura, de forma que o novo guideline admite duas possibilidades: manter o seguimento OU parar o seguimento após 5 anos. Dessa forma, os candidatos a interrupção do seguimento com exames de imagem são:                     

  • Cistos <20mm sem estigmas de alto risco ou CPs, estáveis por pelo menos 5 anos;
  • Pacientes não candidatos à cirurgia ou com expectativa de vida < 10 anos.

O seguimento dos IPMN é importante não só devido ao risco de progressão da lesão, mas também pelo risco aumentado em desenvolver adenocarcinoma de pâncreas sem relação com o IPMN, que pode ser até 5x maior do que a população geral, segundo estudos japoneses. Esse mecanismo foi chamado de “dupla carcinogênese” dos IPMN, e é um dos argumentos defendidos por aqueles que advogam em manter o seguimento mesmo em lesões pequenas estáveis.

Em relação aos BD-IPMN multifocais – que correspondem a 20-40% dos casos – não há risco aumentado de progressão e o manejo e seguimento deve ser de acordo com a maior lesão.

O que mudou: o seguimento de acordo com o tamanho do maior cisto, que antes distinguia quatro grupos (<1cm, 1-2cm, 2-3cm e > 3cm) foi reduzido para apenas três grupos (< 2cm, ≥ 2cm <30cm e ≥ 3cm).

7) Seguimento de IPMN não invasivo ressecado

  • Seguimento de IPMN não invasivo ressecado:
  • – Pancreatectomia total: seguimento por 5 anos;
  • – Pancreatectomia parcial: a cada 6-12 meses, até o paciente não ser mais candidato à cirurgia.

8) Algoritmo de manejo de BD-IPMN pelo guideline de Kyoto (adaptado)

  • Sublinhado em vermelho: critério novos;
  • Sublinhado em amarelo: critério que foram modificados em relação à Fukuoka.
Figura 4: Algoritmo de manejo de IPMN pelo guideline de Kyoto. Adaptado de Ohtsuka T, et al. Pancreatology. 2024 (5).

Referências:

  1. Gonda TA, Cahen DL, Farrell JJ. Pancreatic Cysts. N Engl J Med. 2024;391(9):832-843. doi:10.1056/NEJMra2309041
  2. Tanaka M, Chari S, Adsay V, et al. International consensus guidelines for management of intraductal papillary mucinous neoplasms and mucinous cystic neoplasms of the pancreas. Pancreatology. 2006;6(1-2):17-32. doi:10.1159/000090023
  3. Tanaka M, Fernández-del Castillo C, Adsay V, et al. International consensus guidelines 2012 for the management of IPMN and MCN of the pancreas. Pancreatology. 2012;12(3):183-197. doi:10.1016/j.pan.2012.04.004
  4. Tanaka M, Fernández-Del Castillo C, Kamisawa T, et al. Revisions of international consensus Fukuoka guidelines for the management of IPMN of the pancreas. Pancreatology. 2017;17(5):738-753. doi:10.1016/j.pan.2017.07.007
  5. Ohtsuka T, Fernandez-Del Castillo C, Furukawa T, et al. International evidence-based Kyoto guidelines for the management of intraductal papillary mucinous neoplasm of the pancreas. Pancreatology. 2024;24(2):255-270. doi:10.1016/j.pan.2023.12.009

Como citar este artigo

Proença IM. Endoscopia Terapeutica. IPMN: o que mudou de Fukuoka à Kyoto, 2024 vol II. Disponivel em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/ipmn-o-que-mudou-de-fukuoka-a-kyoto/




Mucosectomia por imersão (underwater) com auxílio de cap – um alternativa para casos difíceis

Paciente masculino, 45 anos, previamente hígido, foi submetido a colonoscopia em outro serviço que identificou um pólipo séssil de 6 mm de diâmetro, 0-Is pela classificação de Paris, com superfície lisa e amarelada, localizado em reto médio. Na ocasião foi realizada ressecção parcial da lesão com alça a frio. Resultado anatomopatológico e imunohistoquímico evidenciaram tumor neuroendócrino bem diferenciado (grau 1 – Ki67<2%), com margens comprometidas.

Paciente veio encaminhado para realizar nova colonoscopia na tentativa de ressecção completa da lesão. Durante o procedimento foi observada uma diminuta lesão amarelada no reto, discretamente elevada, correspondente à área de polipectomia prévia com presença de lesão residual (Figuras 1, 2 e 3). Realizada tentativa de mucosectomia pela técnica de imersão (“underwater”), não havendo pega adequada com a alça para ressecção. Foi optado, então, pela realização da mucosectomia por imersão assistida por cap, que consiste na imersão do espaço intraluminal com água, seguido por sucção da lesão com auxílio de cap endoscópico, afim de formar um pseudopólipo, e assim facilitar a apreensão e ressecção da lesão (Figura 4). Com o uso dessa técnica foi possível apreender a lesão residual com a alça e realizar sua ressecção completa (Figuras 5 e 6). O resultado anatomopatológico confirmou a presença de tumor neuroendócrino bem diferenciado (grau 1 – Ki67<2%), com margens laterais e profunda livres.

Figura 1: aspecto endoscópico da lesão residual em reto distal
Figura 2: aspecto endoscópico da lesão residual em reto distal
Figura 3: aspecto endoscópico da lesão residual em reto distal com auxílio de NBI
Figura 4: aspiração da lesão com auxílio de cap para formação de pseudopólipo
Figura 5: apreensão do pseudopólipo com alça de polipectomia
Figura 6: aspecto pós ressecção endoscópica

Discussão

A mucosectomia underwater assistida por cap (CAP-UEMR) consiste na utilização de cap endoscópico para sucção da lesão a ser ressecada sob imersão em água, até que seja formado um “pseudopólipo” passível de apreensão e ressecção. Se a ressecção em monobloco não for possível, pode-se realizar novos “pseudopólipos” e ressecar à piece-meal, até que se alcance o resultado desejado, conforme ilustrado na figura abaixo:

Fonte: Ilustração de Uchima Hugo et al. Endoscopy 2023.

O estudo foi uma análise observacional retrospectiva de 83 procedimentos de ressecção endoscópica pela técnica CAP-UEMR, realizados em dois centros entre setembro de 2020 e dezembro de 2021. O desfecho primário foi o sucesso técnico, definido como ressecção completa macroscópica da lesão no índice CAP-UEMR. Os desfechos secundários foram as taxas de sangramento e perfuração. As 83 lesões tratadas tinham um tamanho médio de 20 mm. Foram incluídas 64 lesões deprimidas ou planas (18 previamente manipuladas, 9 com acesso difícil), 11 lesões do apêndice e 8 lesões da válvula ileocecal. Os resultados mostraram uma taxa de sucesso técnico de 100%, com ressecção macroscópica completa alcançada em todas as 83 lesões. Houve 7 casos de sangramento intraoperatório e 2 casos de sangramento tardio, todos tratados endoscopicamente. Nenhuma perfuração ou outras complicações ocorreram. Entre as 64 lesões com colonoscopia de acompanhamento, apenas 1 recorrência foi detectada, que foi tratada endoscopicamente.

Concluiu-se que a CAP-UEMR pode ser uma técnica segura e eficaz para facilitar a ressecção de lesões colorretais complexas. O estudo possui suas limitações, sendo as principais o possível viés de seleção e design retrospectivo e necessidade de estudos comparativos para determinar a eficácia específica do CAP-UEMR em relação a outras técnicas de ressecção.

Referência

Uchima H, Calm A, Muñoz-González R, Caballero N, et al. Underwater cap-suction pseudopolyp formation for endoscopic mucosal resection: a simple technique for treating flat, appendiceal orifice or ileocecal valve colorectal lesions. Endoscopy. 2023 Nov;55(11):1045-1050. doi: 10.1055/a-2115-7797. Epub 2023 Jun 22. PMID: 37348544.

Como citar este artigo

Retes FA. Camilo VF. Castro RFM. Mucosectomia por imersão (underwater) com auxílio de cap – um alternativa para casos difíceis. Endoscopia Terapeutica, 2024 vol II. disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/mucosectomia-por-imersao-underwater-com-auxilio-de-cap-um-alternativa-para-casos-dificeis/




Uso do escore SPICE (Smooth Protuding lesion Index at Capsule Endoscopy) para diferenciar massa subepitelial de abaulamento inocente.

Quem avalia exame de cápsula endoscópica com certeza se depara com abaulamentos na luz do intestino delgado que o iniciante imediatamente acreditará ser uma lesão subepitelial. Será que ele lembrou que poderia ser uma contração ou uma compressão extrínseca?

Em um exame onde só imagens são avaliadas, sem toque nem possibilidade de movimentar o aparelho para posições que possibilitem melhor visualização, é realmente desafiador conseguir diferenciar a causa do abaulamento. Falaremos sobre o escore SPICE (Smooth Protuding lesion Index at Capsule Endoscopy), que pode nos auxiliar nesta situação. O SPICE utiliza características da lesão, de apresentação e seu o tempo de visualização. SPICE > 2 tem sensibilidade de 83,3% e especificidade de 86,4% para massa subepitelial. Um abaulamento benigno é definido como protuberância redonda de mucosa com aparência normal, com margens suaves mal definidas e base maior que a altura. Seria como se colocássemos um objeto debaixo de um lençol, fazendo com que o lençol levantasse suavemente, com margens suaves e imprecisas. O escore se utiliza destas características para tentar definir que tipo é o abaulamento.

Escore SPICE

Critérios Não Sim
Margem mal definida com a mucosa adjacente 1 0
Diâmetro maior que a altura 1 0
Lúmen visível nas imagens em que aparece 0 1
Imagem da lesão aparece por mais de 10 minutos 0 1
Um valor > 2 é preditivo de massa subepitelial

Por exemplo: o tempo entre o primeiro e o último aparecimento do abaulamento na imagem abaixo é de 7 minutos (Figura 1). No caso, temos Score SPICE 1 (0 + 0 + 1 + 0 ).

Figura 1.

Uma característica relatada por Min et. al (que corresponderia ao primeiro critério da SPICE) é o grau de inclinação da base da protusão em relação a mucosa. Uma massa subepitelial bem definida formaria uma inclinação aguda, como se quisesse formar um pedículo. Um ângulo agudo (< 90º) tem maior possibilidade de ser criado por massa subepitelial (Figura 2) porém, um ângulo obtuso poderá ser formado por uma lesão, compressão extrínseca ou contração (Figura 3). Comparando com a SPICE, um ângulo menor que 90o tem a mesma especificidade e maior sensibilidade (92% x 32%).

Apesar das ferramentas existentes, continua desafiador determinar com certeza a natureza de uma protusão em um exame de cápsula endoscópica mas estudos tem favorecido sua melhor definição, auxiliando no seguimento dos pacientes.

E você, teria dificuldade em afirmar se um abaulamento trata-se de massa subepitelial ou um artefato?

Referências

  1. Min M, Noujaim MG, Green J et al. Role of mucosal protrusion angle in discriminating between true and false masses of the small-bowel on video capsule endoscopy. J Clin Med 2019; 8: 418
  2. Rosa B, Margalit-Yehuda R, Gatt K, Sciberras M, Girelli C, Saurin JC, Valdivia PC, Cotter J, Eliakim R, Caprioli F, Baatrup G, Keuchel M, Ellul P, Toth E, Koulaouzidis A. Scoring systems in clinical small-bowel capsule endoscopy: all you need to know! Endosc Int Open. 2021 Jun;9(6):E802-E823. doi: 10.1055/a-1372-4051. Epub 2021 May 27. Erratum in: Endosc Int Open. 2021 Jun;9(6):C6. doi: 10.1055/a-1521-0901. Erratum in: Endosc Int Open. 2021 Jun;9(6):C7. doi: 10.1055/a-1525-7686. PMID: 34079861; PMCID: PMC8159625.
  3. Girelli CM, Porta P, Colombo E et al. Development of a novel index to discriminate bulge from mass on small-bowel capsule endoscopy. Gastrointest Endosc 2011; 74: 1067–1074

Como citar este artigo

Brito HP. Endoscopia Terapeutica. Uso do escore SPICE (Smooth Protuding lesion Index at Capsule Endoscopy) para diferenciar massa subepitelial de abaulamento inocente, 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/uso-do-escore-spice-smooth-protuding-lesion-index-at-capsule-endoscopy-para-diferenciar-massa-subepitelial-de-abaulamento-inocente/




Você já ouviu falar sobre a Escala de Aldrete?

Os procedimentos de endoscopia são realizados sob sedação venosa, salvo raras exceções, com uma série de recomendações a respeito da segurança do paciente durante a sedação (clique aqui para Sete passos para anestesia segura em procedimentos endoscópicos). E o que acontece depois do exame? Após a sedação, como avaliar objetivamente quando o paciente está realmente apto a sair da sala de exame e do consultório?

Foram desenvolvidas algumas escalas para avaliar parâmetros clínicos do paciente que permitam liberar o mesmo com segurança após anestesia, seja ela local, loco-regional, sedação ou anestesia geral.  

A escala de Aldrete e Kroulik foi desenvolvida em 1970 com o objetivo de determinar condições de alta após anestesia através da avaliação de cinco parâmetros simples: atividade motora, respiração, nível de consciência, pressão arterial e coloração da pele/leito ungueal (avaliação de hipoxemia). Em 1995 os mesmos autores modificaram a escala substituindo a avaliação subjetiva de hipoxemia por dados da oximetria de pulso. Vide critérios a seguir:

  1. Atividade motora
    Movimenta os quatro membros – 2 pontos
    Movimenta dois membros – 1 ponto
    Não move os membros – 0 pontos
  2. Respiração
    Capaz de respirar profundamente – 2 pontos
    Dispneia / limitação à respiração – 1 ponto
    Apneia – 0 pontos
  3. Nível de consciência
    Completamente acordado – 2 pontos
    Desperta ao chamado – 1 ponto
    Não responde – 0 pontos
  4. Circulação –  pressão arterial
    Pressão arterial (PA) até 20% do nível pré-anestésico – 2 pontos
    PA em 20-49% do nível pré anestésico – 1 ponto
    PA em 50% nível pré anestésico – 0 pontos
  5. Saturação de oxigênio
    Mantém saturação de oxigênio (SO2) > 92% em ar ambiente – 2 pontos
    Mantém SO2 >90% com oxigênio suplementar – 1 ponto
    Mantém SO2 <90% com oxigênio suplementar – 0 pontos

Cada parâmetro avaliado varia de 0 a 2 pontos, totalizando uma pontuação máxima de 10 na escala, sendo considerado como critério de alta um escore de 9 ou 10. Pacientes que estão com pontuação de 8 ou menos precisam de maior monitorização e possivelmente cuidados, intervenções de acordo com a necessidade como uso de cateter de oxigênio, expansão volêmica, drogas vasopressoras, uso de antagonistas como flumazenil.

A escala é objetiva, envolvendo parâmetros facilmente mensuráveis, rápida, sem trazer gastos, sendo utilizada regularmente nas salas de recuperação anestésica para determinar critérios de alta após sedação ou anestesia geral. Embora a escala possa ser aplicada por qualquer profissional de saúde que receba treinamento, a interpretação e tomada de decisão sobre a alta do paciente é de responsabilidade do médico.

Foi criada também a Escala de Aldrete para procedimentos ambulatoriais incluindo todos os cinco parâmetros da escala modificada e adicionando outros quatro parâmetros: sangramento (aspecto curativo), deambulação, alimentação, micção espontânea. O paciente é considerado apto para alta quando atinge um escore de 18 ou mais nesta escala.

  1. Atividade motora
    Movimenta os quatro membros – 2 pontos
    Movimenta dois membros – 1 ponto
    Não move os membros – 0 pontos
  2. Respiração
    Capaz de respirar profundamente – 2 pontos
    Dispneia / limitação à respiração – 1 ponto
    Apneia – 0 pontos
  3. Nível de consciência
    Completamente acordado – 2 pontos
    Desperta ao chamado – 1 ponto
    Não responde – 0 pontos
  4. Circulação –  pressão arterial
    Pressão arterial (PA) até 20% do nível pré-anestésico – 2 pontos
    PA em 20-49% do nível pré anestésico – 1 ponto
    PA em 50% nível pré anestésico – 0 pontos
  5. Saturação de oxigênio
    Mantém saturação de oxigênio (SO2) > 92% em ar ambiente – 2 pontos
    Mantém SO2 >90% com oxigênio suplementar – 1 ponto
    Mantém SO2 <90% com oxigênio suplementar – 0 pontos
  6. Curativo
    Limpo e seco – 2 pontos
    Molhado porém sem expandir – 1 ponto
    Molhado, expandindo – 0 pontos
  7. Deambulação
    Fica em pé e anda em linha reta – 2 pontos
    Tontura quando em pé – 1 ponto
    Tontura em posição supina – 0 pontos
  8. Alimentação
    Apto a tomar líquidos – 2 pontos
    Nauseado – 1 ponto
    Vômitos – 0 pontos
  9. Micção espontânea
    É capaz de urinar – 2 pontos
    Não urina mas está confortável – 1 ponto
    Não urina e sente desconforto – 0 pontos

Uma outra escala também é muito utilizada para avaliar a alta do paciente é a Modified Post-Anaesthetic Discharge Scoring System (MPADSS) que se destaca por incluir a avaliação da dor nos critérios de alta.

  1. Sinais vitais
    Frequência cardíaca e pressão arterial variando até 20% do nível pré-anestésico – 2
    Frequência cardíaca e pressão arterial entre 20% e 40% do nível pré-anestésico – 1
    Frequência cardíaca e pressão arterial com mais de 40% do nível pré-anestésico – 0
  2. Atividade
    Marcha adequada, sem tonturas ou nível similar ao pré anestésico – 2
    Necessita de assistência para deambular – 1
    Não deambula – 0 
  3. Náuseas e vômitos
    Sem queixas/ queixas mínimas controladas com medicação oral -2
    Queixa moderada tratada com medicação venosa – 1
    Queixas intensas ou contínuas apesar do tratamento – 0
  4. Dor
    Ausente ou mínima (escala visual analógica [VAS] =0-3) – 2
    Moderada (VAS= 4-6) – 1
    Intensa (VAS= 7-10) – 0
  5. Sangramento
    Ausente ou mínimo – 2
    Moderado (1 episódio de hematêmese ou sangramento retal) – 1
    Severo (2 ou mais episódios de hematêmese ou sangramento retal) – 0

Nesta escala o paciente é considerado apto para alta quando atinge escore igual ou superior a 9 em duas medidas consecutivas.

Foi realizada uma comparação entre a escala de Aldrete modificada e a MPADSS em publicação envolvendo 120 pacientes em cada grupo, em pacientes submetidos a endoscopia ambulatorial sob sedação venosa. Houve maior percentagem de pacientes considerados recuperados dentro da primeira hora pós sedação no grupo avaliado pela escala de Aldrete (42,5% vs 25%, p<0,01) embora a taxa de pacientes com sonolência no momento da alta tenha sido maior (19,1% vs 5%, p<0,01); não houve diferença significativa na taxa de efeitos adversos nas primeiras 24h entre ambos grupos.

É importante respeitar todas as etapas para a realização de uma endoscopia segura, não esquecendo da relevância em avaliar as condições de alta do paciente, algo que se torna mais fácil com auxílio de escalas objetivas como as citadas.

Referências

  1. Yamaguchi D, Morisaki T, Sakata Y, Mizuta Y, Nagatsuma G, Inoue S, Shimakura A, Jubashi A, Takeuchi Y, Ikeda K, Tanaka Y, Yoshioka W, Hino N, Ario K, Tsunada S, Esaki M. Usefulness of discharge standards in outpatients undergoing sedative endoscopy: a propensity score-matched study of the modified post-anesthetic discharge scoring system and the modified Aldrete score. BMC Gastroenterol. 2022 Nov 4;22(1):445.
  2. Trevisani L, Cifalà V, Gilli G, Matarese V, Zelante A, Sartori S. Post-Anaesthetic Discharge Scoring System to assess patient recovery and discharge after colonoscopy. World J Gastrointest Endosc. 2013 Oct 16;5(10):502-7.
  3. Oliveira Filho GR. Rotinas de cuidados pós-anestésicos de anestesiologistas brasileiros [Postanesthetic routines of Brazilian anesthesiologists]. Rev Bras Anestesiol. 2003 Aug;53(4):518-34.

Como citar este artigo

Ferreira F. Você já ouviu falar sobre a Escala de Aldrete? Endoscopia Terapeutica, 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/voce-ja-ouviu-falar-sobre-a-escala-de-aldrete/




Esfincterotomia transpancreática

A canulação biliar é etapa fundamental no sucesso da CPRE, sendo o acesso biliar difícil associado a maiores taxas de falha na CPRE e eventos adversos documentados na literatura1.

Na falha de acesso à via biliar pela técnica convencional métodos alternativos de acesso pela CPRE podem ser empregados, tais como a fístula suprapapilar, cateterização por duplo fio guia, esfincterotomia transpancreática (ETP), pré-corte e diferentes técnicas de acesso por Rendez Vous2.

A ETP, descrita por Goff em 1995 3, vem recentemente sendo discutida como importante método de acesso, nos casos de cateterização inadvertida do DPP.

A técnica consiste em, após a cateterização do ducto pancreático principal, direcionar o papilótomo para o eixo da via biliar às 11h, realizando a esfincterotomia (Figura 1).

Figura 1: ilustração da técnica de esfincterotomia transpancreática.

Na sequência é recomendada a passagem de uma prótese pancreática e em seguida procedida a cateterização da via biliar (Figura 2).

Figura 2: esfincterectomia transpancreática seguida de passagem de prótese pancreática.

Uma das vantagens potenciais do método é o acesso ser direcionado pela presença do fio guia, em contrapartida à fístula suprapapilar, podendo beneficiar endoscopistas em treinamento4.

Nos últimos anos foram realizados novos trabalhos, avaliando as taxas de sucesso da ETP, assim como a ocorrência de eventos adversos relacionados. Clique para saber mais sobre Estratégias de prevenção de pancreatite pós-CPRE.

Dois estudos retrospectivos se destacam pelas grandes amostras de pacientes submetidos à CPRE5,6. O primeiro realizou comparação entre um grupo controle cujo acesso convencional obteve sucesso, ETP, duplo fio-guia e pré-corte com estilete, as taxas de sucesso foram respectivamente 94,9% / 87,2% / 74,5% / 69.6%, não houve diferença significativa em eventos adversos entre o grupo controle e a ETP, nesta a taxa de pancreatite foi de 1,1% e a de sangramento 0,3%. O segundo trabalho citado avaliou pacientes submetidos à ETP em comparação aos com acesso biliar convencional, o sucesso técnico da ETP foi de 95,9%, a ocorrência de pancreatite nesse grupo de 2,8% e o desfecho de sangramento apresentou-se significativamente superior quando comparado ao acesso convencional (10,9%, P=0,005), atribuindo porém o risco de sangramento a tentativas prévias de acesso por pré-corte.

Em ensaio clínico randomizado multicêntrico comparando ETP e duplo fio-guia em acesso biliar difícil7, Kylänpää e colaboradores demonstraram superioridade da ETP na realização de acesso biliar (84,6 % x 69,7 %; P = 0.01), sem diferença na taxa de pancreatite (13,5 % x 16,2 %).

Por fim, a metanálise comparando as diferentes técnicas de acesso à via biliar difícil8, favoreceu a realização de ETP em relação à persistir na tentativa com técnica tradicional, duplo fio guia, pré-corte e canulação assistida por prótese pancreática para o desfecho de acesso bem sucedido à via biliar.

Com base nos trabalhos avaliados a esfincterotomia transpancreática se demonstra como método seguro e eficaz para a canulação biliar em casos de falha do acesso convencional, devendo ser uma opção no arsenal do endoscopista. É importante destacar que a seleção da técnica para o acesso biliar em caso de falha na canulação convencional deve considerar o aspecto endoscópico da papila, patologia de base, ocorrência de cateterização do DPP e a expertise do endoscopista.

Referências

  1. Testoni PA, Mariani A, Aabakken L, Arvanitakis M, Bories E, Costamagna G, Devière J, Dinis-Ribeiro M, Dumonceau JM, Giovannini M, Gyokeres T, Hafner M, Halttunen J, Hassan C, Lopes L, Papanikolaou IS, Tham TC, Tringali A, van Hooft J, Williams EJ. Papillary cannulation and sphincterotomy techniques at ERCP: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) Clinical Guideline. Endoscopy. 2016 Jul;48(7):657-83.
  2. Kouanda A, Bayudan A, Hussain A, Avila P, Kamal F, Hasan MK, Dai SC, Munroe C, Thiruvengadam N, Arain MA. Current state of biliary cannulation techniques during endoscopic retrograde cholangiopancreatography (ERCP): International survey study. Endosc Int Open. 2023 Jun 21;11(6):E588-E598.
  3. Goff JS. Common bile duct pre-cut sphincterotomy: transpancreatic sphincter approach. Gastrointestinal Endoscopy. 1995 41(5), 502–505.
  4. Su WC, Wang CC, Hsiao TH, Chen HD, Chen JH. The impact of transpancreatic precut sphincterotomy on the quality of ERCP in a low-volume setting. Gastrointest Endosc. 2024 May;99(5):747-755.
  5. Barakat MT, Girotra M, Huang RJ, Choudhary A, Thosani NC, Kothari S, Sethi S, Banerjee S. Goff Septotomy Is a Safe and Effective Salvage Biliary Access Technique Following Failed Cannulation at ERCP. Dig Dis Sci. 2021 Mar;66(3):866-872.
  6. Papaefthymiou A, Florou T, Koffas A, Kateri C, Pateras K, Fytsilis F, Chougias D, Bektsis T, Manolakis A, Kapsoritakis A, Potamianos S. Efficacy and safety of transpancreatic sphincterotomy in endoscopic retrograde cholangiopancreatography: a retrospective cohort study. Ann Gastroenterol. 2022 Nov-Dec;35(6):648-653.
  7. Kylänpää L, Koskensalo V, Saarela A, Ejstrud P, Udd M, Lindström O, Rainio M, Tenca A, Halttunen J, Qvigstad G, Arnelo U, Fagerström N, Hauge T, Aabakken L, Grönroos J. Transpancreatic biliary sphincterotomy versus double guidewire in difficult biliary cannulation: a randomized controlled trial. Endoscopy. 2021 Oct;53(10):1011-1019.
  8. Facciorusso A, Ramai D, Gkolfakis P, Khan SR, Papanikolaou IS, Triantafyllou K, Tringali A, Chandan S, Mohan BP, Adler DG. Comparative efficacy of different methods for difficult biliary cannulation in ERCP: systematic review and network meta-analysis. Gastrointest Endosc. 2022 Jan;95(1):60-71.e12.

Como citar este artigo

Logiudice FP. Esfincterotomia trans pancreática. Terapeutica Endoscopica, 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/esfincterotomia-trans-pancreatica/




Pólipos Hiperplásicos na Endoscopia – Risco de Neoplasia, Conduta e Recidiva

Os pólipos gástricos são achados comuns, estando presente em 0,5% a 23% das endoscopias digestivas altas (1). A incidência de cada tipo histológico é variável de acordo com a população estuda, sendo os pólipos de glândulas fúndicas e os hiperplásicos os mais comuns. Um estudo feito no Brasil (2) mostrou que os pólipos hiperplásicos são os mais prevalentes, correspondendo a 71,3% dos pólipos, enquanto nos Estados Unidos (3) os de glândulas fúndicas são os mais comuns, representando 77%.

Os pólipos hiperplásicos são mais frequentes na sexta ou sétima décadas de vida, com uma questionável predominância no sexo feminino (4). Sua etiologia está geralmente associada a uma regeneração exacerbada da mucosa secundária a agressão contínua. Dessa forma, existe uma forte associação entre o pólipo hiperplásico e a presença de infeção pelo H. pylori, gastrite crônica, gastrite autoimune, metaplasia intestinal, gastropatia química, cirrose hepática e pós-terapia hemostática de angiectasias gástricas (4,5). Na maioria dos casos são assintomáticos no entanto, podem causar anemia, hemorragia digestiva ou até dificuldade do esvaziamento gástrico.

Tipicamente eles são solitários, menores que 20 mm e localizados no antro (60%) (4), vide figuras 1 a 3. Múltiplos pólipos podem estar presentes em até 20% dos casos (4). Geralmente são sésseis, com superfície lisa ou discretamente lobulada, friáveis e hiperemiados. No entanto podem crescer e atingir tamanhos maiores que 100 mm, associado a erosões ou úlceras superficiais em sua superfície.

Figura 1: pólipo hiperplásico em antro.
Figura 2: pólipo hiperplásico intruso no piloro.
Figura 3: pólipo hiperplásico extruindo do piloro.

Risco de malignização

A presença de displasia ou malignidade pode ocorrer em 1,9% a 10,4% dos pólipos hiperplásicos (6). No entanto essa prevalência pode variar de acordo com a população. Em pacientes asiáticos a displasia pode ocorrer em 1,4% a 16,4% dos casos e malignidade em 1,1% a 4,4%. Já em pacientes ocidentais a displasia pode acontecer em 3,3% a 9,7% dos casos e a malignidade em 0,6% a 2,1% (7).

O principal fator de risco para a presença de displasia ou malignidade é o tamanho do pólipo, especialmente aqueles maiores que 25 mm (5,8). Outros fatores que podem estar associados são: idade maior que 65 anos, presença de metaplasia intestinal e displasia na mucosa adjacente (5,8).

Conduta

A Sociedade Americana de Endoscopia Gastrointestinal (ASGE) recomenda a ressecção de todos os pólipos hiperplásicos maiores que 5 mm (9), enquanto o guideline britânico recomenda a retirada daqueles maiores que 10 mm (10). Outras indicações seriam a presença de displasia à biópsia ou pólipos sintomáticos (11).

A pesquisa de H. pylori é fundamental nesses casos, uma vez que existe uma associação entre a presença do pólipo hiperplásico e a infecção pelo H. pylori, que pode chegar a até 37% (4,8). Além disso, a erradicação da bactéria pode promover a regressão do pólipo em até 84% dos casos, especialmente dos pólipos menores, e parece reduzir as taxas de recidiva pós-ressecção (12).

Um exame cuidadoso do restante do estômago também é muito importante, pois esses pacientes apresentam outras alterações que predispõe ao câncer gástrico, como atrofia gástrica e metaplasia intestinal. A taxa de lesões malignas sincrônicas pode chegar a 7,1% (11).

O seguimento endoscópico ainda não está bem estabelecido. Recomenda-se repetir a endoscopia digestiva alta em 12 meses, especialmente naqueles pacientes que apresentaram displasia (11).

Recidiva

Os pólipos hiperplásicos apresentam altas taxas recidiva, mesmo quando ressecados em monobloco (R0), podendo variar de 12% a 51% (6,8).  O tempo médio para o diagnóstico da recorrência é entre 1 e 2 anos e não necessariamente estão associados a riscos maiores de displasia ou malignidade (5,12).

O mecanismo pelo qual ela acontece ainda não está bem estabelecido. Aparentemente a técnica de ressecção, seja mucosectomia ou dissecção endoscópica de submucosa não tem relação a recidiva. A infecção pelo H. pylori, conforme descrito anteriormente, parece ter uma associação tanto com o surgimento do pólipo quanto com a sua recidiva após a ressecção (12). Portanto seu tratamento deve ser sempre tentado. A localização no antro também se relaciona a uma maior recorrência, acredita-se que pela maior contratilidade local e um provável refluxo biliar (6). Outros fatores que podem estar associados são: pólipos grandes (maiores que 16 mm), múltiplos, superfície lobulada, idade menor que 65 anos e presença de cirrose (5,6).

Conclusão

Os pólipos hiperplásicos são achados relativamente comuns em endoscopias digestivas altas do dia a dia. Geralmente são pequenos e assintomáticos. No entanto, devido ao risco de displasia e malignidade, mesmo que pequeno, eles devem ser ressecados, principalmente quando maiores que 10 mm. Deve-se dar atenção especial para a pesquisa de H. pylori e de outras entidades que podem estar associadas como gastrite, atrofia e metaplasia. Apesar de altas taxas de recidiva, ainda não está bem estabelecido nenhum protocolo de seguimento.

Referencias

  1. Yacoub H, Bibani N, Sabbah M, et al. Gastric polyps: a 10-year analys of 18,496 upper endoscopies. BMC Gastroentereol. 2022;22:70.
  2. Morais DJ, Yamanaka A, Zeitume JM et al. Gastric polyps: a retrospective analys of 26,000 digestives endoscopies. Arq Gastroenterol. 2007;44:14-7.
  3. Carmack SW, Genta RM, Schuler CM et al. Am J Gastroenterol. 2009;104:1524-1532.
  4. Kovari B, Kim BH, Lauwers GY. The pathology of gastric and duodenal polyps: current concepts. Histopathology. 2021;78:106-124.
  5. Forté E, Petit B, Walter T, et al. Risk of neoplastic change in large gastric hyperplastic polyps and recurrence after endoscopic resection. Endoscopy. 2020;52:444-453.
  6. Kim Y, Kang S, Ahn J, et al. Risk factors associated with recurrence of gastric hyperplastic polyps: a single-center, long-term, retrospective cohort study. Surgical Endoscopy. 2023;37:7563-7572.
  7. Bar N, Kinaani F, Sperber AD, et al. Low Risk of Neoplasia and Intraprocedural Adverse Events in Gastric Hyperplastic Polypectomy. J Clin Gastroenterol. 2021;55:851-855.
  8. João M, Areia M, Alves S, et al. Gastric Hyperplastic Polyps: A Benign Entity? Analys of Recurrence and Neoplastic Transformation in a Cohort Study. GE Port J Gastroenterol. 2021;28:328-335.
  9. Evans JA, Chandrasekhara V, Chathadi KV et al. The role of endoscopy in the management of premalignant and malignant conditions of the stomach. Gastrointest Endosc. 2015;82:1-8.
  10. Banks M, Graham D, Jansen M et al. British Society of Gastroenterology guidelines on the diagnosis and management of patients at risk of gastric adenocarcinoma. Gut. 2019;68:1545-1575.
  11. Cheesman AR, Greenwald DA, Shah SC. Current Management of Benign Epithelial Gastric Polyps. Curr Treat Options Gastro. 2017;15:676-690.
  12. Cho YS, Nam SY, Moon HS et al. Helicobacter pylori eradication reduces risk for recurrence of gastric hyperplastic polyp after endoscopic resection. Korean J Intern Med. 2023;38:167-175.

Como citar este artigo

Retes FA. . Pólipos Hiperplásicos na Endoscopia – Risco de Neoplasia, Conduta e Recidiva. Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/uncategorized/polipos-hiperplasicos-risco-de-neoplasia-conduta-e-recidiva/




Microlitíase biliar e dispepsia

Introdução

A microlitíase biliar é uma entidade identificada e descrita a relativamente pouco tempo, ainda sendo tema de muita controvérsia na literatura, desde sua definição e diagnóstico até sua relevância clínica e manejo. Com o aumento da disponibilidade do exame de ecoendoscopia e a consequente ampliação das indicações e solicitações deste exame, tornou-se uma condição cada vez mais identificada em uma população muito heterogênea de pacientes, que varia desde pacientes com obstrução das vias biliares, passando por pacientes com dor abdominal ou dispepsia, chegando até pacientes assintomáticos em exames “de rotina” ou indicados por outros motivos. Tal situação nos faz questionar, investigar e revisitar o conceito e o manejo desta condição que se torna cada vez mais presente no nosso dia a dia.

Já foi discutido anteriormente a questão da microlitíase biliar e do barro biliar neste portal, onde foram apontadas as diferenças ecográficas das duas entidades consideradas no nosso meio e possíveis condutas, bem como a relevância da microlitíase biliar no contexto da investigação etiológica da pancreatite aguda.

Neste artigo, avaliaremos as definições mais aceitas na literatura bem como as controvérsias ainda não resolvidas e discutiremos a relação entre a microlitíase biliar e sintomas dispépticos.

Definição

As definições para microlitíase biliar e barro biliar variam imensamente na literatura, e vão desde descrições distintas para as duas entidades, passando por autores que as tratam como sinônimos, até publicações que ignoram uma ou outra entidade.

Para tentar resolver esse problema facilmente identificável na literatura, Żorniak e col. (1) publicaram um consenso sobre o tema em 2023. O estudo contou com três principais etapas de elaboração: inicialmente foi realizada uma revisão sistemática da literatura que identificou 69 artigos originais e 26 artigos de revisão que definiam “microlitíase biliar” e “barro biliar”; em um segundo momento, 30 “experts” em ecoendoscopia foram consultados através de um questionário sobre o tema; por fim, as definições mais aceitas foram organizadas e revalidadas pelos autores, passando por uma última etapa de votação.

Para demonstrar a heterogeneidade na literatura, cito alguns dos descritores mais encontrados nesta revisão:

– Microlitíase biliar: “sinal/foco/forma hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior”, “sinal/foco/forma hiperecoica necessariamente com sombra acústica posterior”, “sinal/foco/forma hiperecoica necessariamente sem sombra acústica posterior”, “imagem ecogênica móvel sem sombra acústica posterior”.
Em relação ao tamanho, os estudos variaram desde <1mm até <10mm, porém a grande maioria definiu entre <3mm ou <5mm.

– Barro biliar: “substância fluida”, “nível fluido”, “múltiplos cálculos sem sombra acústica posterior”, “conteúdo em camadas na porção pendente da vesícula”, “conteúdo de baixa amplitude ecográfica”, “imagens hiperecoicas móveis sem combra acústica porterior”, “agregado hiperecoico sem sombra acústica posterior”, “material um pouco hiperecoico móvel”, “material ecogênico homogêneo”, “material ecogênico heterogêneo”.

Observa-se tanto uma sobreposição quanto uma troca ou mistura de definições entre as duas entidades na literatura especializada.

Com a difícil missão de determinar um consenso, os autores chegaram nas seguintes definições (original em inglês e respectiva tradução pelo autor deste artigo):

  • Microcálculo biliar: “calculi in the biliary tract and gallbladder of ≤5 mm in diameter with acoustic shadowing” / “cálculo nas vias biliares ou vesícula biliar com sombra acústica posterior com diâmetro menor ou igual 5mm”
  • Barro biliar: “Discrete, hyperechoic material inside the gallbladder or the bile duct, without acoustic shadowing, which sediments in the most dependent part of the gallbladder.” / “Material discretamente hiperecoico, sem sombra acústica posterior, com sedimentação na parte mais pendente da vesícula biliar”
  • Cálculo biliar: “calculi in the biliary tract and gallbladder of >5 mm in diameter with acoustic shadowing” / “cálculo nas vias biliares ou vesícula biliar com sombra acústica posterior com diâmetro maior que 5mm”

Em outro trabalho, Quispel e col. (2) estudaram o grau de concordância entre ecoendoscopistas em relação a microlitíase biliar e barro biliar. Eles avaliaram a concordância entre 41 ecoendoscopistas “experts” utilizando 30 vídeos. As definições aceitas neste trabalho foram (original em inglês e tradução do autor deste artigo):

  • Barro biliar (“sludge”): “Layered, cloud shaped, mobile echoic bile duct content, without acoustic shadowing” / “conteúdo ecogênico móvel em camadas sem sombra acústica posterior”
  • Microlitíase biliar (“microlithiasis”): “Hyperechoic circumscript bile duct content, < 3mm with or without acoustic shadowing” / “imagem hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior menor que 3mm”
  • Cálculo biliar (“stones”): “Hyperechoic circumscript bile duct content, ≥ 3mm with or without acoustic shadowing” / “imagem hiperecoica com ou sem sombra acústica posterior maior ou igual a 3mm”

Neste estudo, houve uma concordância interobservador considerada moderada para um ou mais cálculos biliares – kappa de Fleiss (IC95%) 0,46 (0,13-0,78) -, fraca para microlitíase – kappa de Fleiss (IC95%) 0,25 (0,07-0,43) – e muito fraca para barro biliar – kappa de Fleiss (IC95%) 0,16 (0,07-0,25).

Em nosso meio, tendemos a definir de forma diferente tanto do consenso publicado quanto do estudo de Quispel e col., como demonstrado no artigo publicado previamente (“Microcálculos e barro biliar – Quais seus valores para a prática clínica?”) e no último manual de ecoendoscopia da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (SOBED) (3).

Microcálculos/microlitíase: imagem móvel, hiperecoica, sem sombra acústica posterior e ≤3mm

Microlitíase biliar

Barro biliar: conteúdo ecogênico móvel, sem sombra acústica posterior, com formação de nível.

Barro biliar

Cálculo: imagem hiperecoica com sombra acústica posterior, independentemente do tamanho (podem ser chamados de cálculos pequenos se menores que 5mm).

Cálculo biliar

No entendimento do autor deste artigo, as definições que utilizamos no nosso meio apresentam maior correlação com os achados ecográficos e com os diferentes perfis de pacientes. Porém, com a publicação do consenso, caso a comunidade de ecoendoscopistas passe a utilizar a classificação proposta, a tendência será unificar os achados que hoje consideremos em nosso meio “microlitíase biliar” e “barro biliar” denominando ambos como “barro biliar”, enquanto o termo “microlitíase biliar” será utilizado para cálculos pequenos ≤5mm.

De qualquer forma, o mesmo consenso fez um levantamento retrospectivo que mostrou que não há diferença em relação a gravidade da pancreatite aguda biliar, independente de qual entidade biliar (cálculo, microcálculo ou barro) esteja relacionada ao evento, e alguns autores consideram que barro biliar e microlitíase biliar compartilham a mesma significância clínica (4).

Por fim, acreditamos que ainda haverá discussões na literatura para estabelecimento das definições para que haja uma melhor comunicação tanto entre os ecoendoscopistas, quanto entre médicos assistentes/solicitantes, e também na própria literatura, afim de homogeneizar a nomenclatura para estudos futuros. Dessa forma, até uma pacificação sobre o tema na literatura, sugere-se aos ecoendoscopistas descreverem os achados com precisão no corpo do laudo e realizar adequada documentação de imagens, para que o médico assistente/solicitante tenha ferramentas para interpretar corretamente os achados e tomar as melhores condutas cabíveis em cada caso, independente da definição utilizada na conclusão do laudo.

Microlitíase biliar e sintomas dispépticos

Como comentado na introdução deste artigo, com o aumento da disponibilidade da ecoendoscopia, os pedidos de exame para pacientes com sintomas dispépticos variados se tornaram parte importante da agenda de ecoendoscopia nos grandes centros, com identificação de “microcálculos/barro biliar” em um amplo perfil de pacientes e levando muitas vezes a indicação de colecistectomia. Tal cenário nos faz questionar o papel da ecoendoscopia para este perfil de pacientes, a indicação da colecistectomia e a relação com os sintomas apresentados.

Montenegro e col. (4) estudaram retrospectivamente pacientes com sintomas dispépticos variados, encaminhados para realização de ecoendoscopia após resultados negativos para litíase biliar por ultrassonografia abdominal, que foram diagnosticados com microlitíase e/ou barro biliar na ecoendoscopia e submetidos a colecistectomia. Eles excluíram pacientes assintomáticos e pacientes que tiveram qualquer complicação relacionada a litíase biliar (pancreatite, colangite, colestase ou colecistite).

Neste artigo, os autores utilizaram a seguinte definição (original em ingês e tradução do autor deste artigo):
            – Minilithiasis and/or biliary sludge (minilitíase e/ou barro biliar): “the presence of isoechoic and/or hyperechoic focus without an acoustic shadow less than 5 mm, which could be viewed with or without a massage in the epigastrium or right hypochondrium” / “presença de focos isoecoicos e/ou hiperecoicos sem sombra acústica posterior, menores que 5mm, que podem ser visualizados com ou sem compressão do epigástrio ou hipocôndrio direito”

A partir de uma base de dados de 1121 pacientes que realizaram ecoendoscopia entre os anos de 2014 e 2018, foram incluídos 50 pacientes compatíveis com os critérios de inclusão.

Dentre os sintomas relatados, 58% (29/50) apresentavam cólica biliar típica e 42% (21/50) apresentavam sintomas atípicos, sendo estes: dor no quadrante superior direito (24%), epigastralgia + dor no quadrante superior direito (2%), epigastralgia + náuseas/vômitos (6%), epigastralgia isolada (2%), dor abdominal difusa com ou sem distensão (8%).

Setenta porcento dos pacientes (35/50) tiveram remissão dos sintomas após a colecistectomia. No grupo dos pacientes com cólica biliar típica, a remissão foi de 86,2% enquanto no grupo de pacientes com sintomas atípicos foi de 47,6%. No grupo de pacientes com sintomas atípicos, houve diferença importante na resposta ao tratamento de acordo com o sintoma apresentado, notando-se remissão na maior parte dos pacientes com dor no quadrante superior direito e em nenhum dos 4 pacientes com dor abdominal difusa. A tabela abaixo resume os sintomas pré e pós-colecistectomia (tabela 2 do artigo original).

Tabela com sumário dos sintomas pré e pós-colecistectomia de Montenegro e col. (4)

Foi identificada apenas uma (2%) complicação com necessidade de reabordagem pós colecistectomia devido a hemoperitônio e 18% (9/50) de pacientes que evoluíram com diarreia pós colecistectomia.

Os autores concluem que pacientes com quadro de cólica biliar típica com presença de microcálculos/barro biliar à ecoendoscopia devem ser submetidos à colecistectomia, enquanto pacientes com sintomas atípicos devem ser amplamente investigados para descartar outras etiologias antes de serem submetidos a colecistectomia, sendo esta avaliação a chave para uma adequada correlação entre os sintomas e os achados ecográficos e consequente resolução dos sintomas após colecistectomia.

Jang e col. (5) estudaram o uso de medicações litolíticas (Ácidos Quenodesoxicólico e Ursodesoxicólico) para tratamento de pacientes com diagnóstico de dispepsia funcional refratária (DFR). A DFR é definida como sintomas dispépticos sem causa definida, persistentes após tratamento com sintomáticos, sendo difícil a diferenciação entre dispepsia funcional e dispepsia biliar em muitos casos.

Neste estudo prospectivo não-randomizado simples cego, foram incluídos 37 pacientes com diagnóstico de DFR e com exames de Endoscopia Digestiva Alta (EDA), ultrassom de abdome e exame de contratilidade da vesícula biliar normais. Importante notar que não foi realizada ecoendoscopia nos pacientes deste estudo. Foi utilizado uma escala de sintomas chamada de “Escala de sintomas globais de 7 pontos” (“7-point global symptom scale”), que relaciona os sintomas dispépticos com a severidade e impacto na vida do paciente, na qual 1 ponto o paciente refere não ter problemas com os sintomas dispépticos e 7 o paciente apresente um problema muito severo que interfere e limita as atividades diárias. Os sintomas relatados foram dor epigástrica, queimação epigástrica, saciedade precoce e empachamento pós-prandial.

Após 12 semanas de tratamento, a média da escala de sintomas caiu de 5,6 para 2,6, sendo que 94,6% (35/37) referiram algum grau de melhora dos sintomas e apenas 5,4% (2/37) não apresentaram nenhuma melhora.

Os autores concluem que grande parte dos pacientes diagnosticados com DFR podem ter na realidade dispepsia biliar, podendo ser beneficiados com o tratamento proposto com litolíticos. Eles ainda pontuam que a microlitíase biliar não foi adequadamente avaliada no estudo, podendo estar presente em parte ou totalidade dos pacientes que responderam ao tratamento.

Avaliando em conjunto os estudos apresentados, podemos inferir que a microlitíase/barro biliar deve ser considerada no diagnóstico diferencial em pacientes com dispepsia, porém o sucesso do tratamento – seja com colecistectomia ou com litolíticos – depende do tipo de sintoma apresentado e a exclusão de outras etiologias.

É importante considerar que são estudos de baixa qualidade metodológica para avaliar a eficácia do tratamento, mas que apontam para uma possibilidade que deve ser considerada e melhor estudada, preferencialmente com ensaios clínicos randomizados.

Conclusão

A microlitíase biliar é um tema ainda muito controverso, com divergências que vão desde a definição até o tratamento, principalmente quando relacionada a sintomas dispépticos.

Em relação a definição de microlitíase e barro biliar, há um debate que teremos que percorrer para chegarmos a conclusões mais consensuais e compatíveis com os achados do dia a dia. Considerando a literatura disponível, que se mostra ainda muito controversa apesar do esforço em estabelecer um consenso, cabe ao ecoendoscopista descrever e documentar com precisão os achados para que o médico interlocutor consiga identificar corretamente a entidade descrita, independente da definição utilizada.

Em relação a microlitíase/barro biliar e os sintomas dispépticos, alguns estudos de baixa qualidade metodológica sugerem a possibilidade de correlação entre tais entidades e sintomas dispépticos, com possível melhora dos sintomas em parte dos pacientes após colecistectomia ou tratamento com litolíticos. Entretanto é fundamento ressaltar que cada paciente deve ser avaliado com parcimônia, considerando os sintomas apresentados e realizando ampla investigação de outras etiologias mais prováveis, especialmente quando sintomas considerados atípicos para doença biliar são os mais importantes.

Referências

  1. Żorniak, M., Sirtl, S., Beyer, G., Mahajan, U. M., Bretthauer, K., Schirra, J., Schulz, C., Kohlmann, T., Lerch, M. M., Mayerle, J., & LMU Microlithiasis Expert Survey Team (2023). Consensus definition of sludge and microlithiasis as a possible cause of pancreatitis. Gut72(10), 1919–1926. https://doi.org/10.1136/gutjnl-2022-327955
  2. Quispel, R., Schutz, H. M., Hallensleben, N. D., Bhalla, A., Timmer, R., van Hooft, J. E., Venneman, N. G., Erler, N. S., Veldt, B. J., van Driel, L. M. J. W., & Bruno, M. J. (2021). Do endosonographers agree on the presence of bile duct sludge and the subsequent need for intervention?. Endoscopy international open9(6), E911–E917. https://doi.org/10.1055/a-1452-8919
  3. De Araújo W.C., Nahoum R.G., Como eu faço: pesquisa de pancreatite idiopática. In: Salomão B.C., Moura E.G.H.M. Ecoendoscopia como eu faço? / núcleo de ecoendoscopia SOBED – São Paulo : Editora dos Editores, 2023. Cap. 5 p.87-96
  4. Montenegro, A., Andújar, X., Fernández-Bañares, F., Esteve, M., & Loras, C. (2022). Usefulness of endoscopic ultrasound in patients with minilithiasis and/or biliary sludge as a cause of symptoms of probable biliary origin after cholecystectomy. Gastroenterologia y hepatologia45(2), 91–98. https://doi.org/10.1016/j.gastrohep.2021.03.010
  5. Jang, S. I., Lee, T. H., Jeong, S., Kwon, C. I., Koh, D. H., Kim, Y. J., Lee, H. S., Do, M. Y., Cho, J. H., & Lee, D. K. (2022). Efficacy of Chenodeoxycholic Acid and Ursodeoxycholic Acid Treatments for Refractory Functional Dyspepsia. Journal of clinical medicine11(11), 3190. https://doi.org/10.3390/jcm11113190

Como citar este artigo

Proença IM. Microlitíase biliar e dispepsia. Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/microlitiase-biliar-e-dispepsia/




Antrombóticos (Antiagregantes e Anticoagulantes): Manejo na Endoscopia

O termo antitrombótico compila as drogas que possuem efeito antiagregante plaquetário ou anticoagulante. Muitos pacientes têm feito uso dessas medicações contínuas em situações clínicas como fibrilação atrial, implante de valvas mecânicas, trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar.

Visando redução dos riscos e um uso adequado das drogas antitrombóticas periprocedimentos, incluindo aqueles com abordagens endoscópicas, faz-se necessário um adequado entendimento dos processos de hemostasia, dos mecanismos de ação dessas medicações, suas indicações de uso, farmacocinética e abordagem em caso de sangramento. Para tal, as condutas citadas serão baseadas nos Guidelines da American Society for Gastrointestinal Endoscopy (ASGE) e European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) [1,2].

Mecanismos de Coagulação

A hemostasia primária é o processo inicial da coagulação desencadeado pela lesão vascular. Imediatamente, mecanismos locais produzem vasoconstrição, alteração da permeabilidade vascular com produção de edema, vasodilatação dos vasos tributários da região em que ocorreu a lesão e adesão das plaquetas. O endotélio do vaso lesionado libera difosfato de adenosina, serotonina e tromboxano A2. As plaquetas respondem a essas citocinas com a expressão de glicoproteína IIb/IIIa e junto à molécula de adesão celular plaqueta endotélio tipo 1 levam a formação de um tampão plaquetário inicial (Figura 1).

Figura 1: Início de agregação plaquetária em área de lesão de vaso (adaptado de National Bleeding Disorders Foundation – hemophilia.org)

Na hemostasia secundária, a coagulação sanguínea consiste na conversão de uma proteína solúvel do plasma, o fibrinogênio, em um polímero insolúvel, a fibrina, por ação de uma enzima denominada trombina (Figura 2).

Figura 2: Formação de fibrina em lesão tecidual (adaptado de National Bleeding Disorders Foundation – hemophilia.org)

Isso ocorre com a exposição do fator tecidual no local da lesão endotelial junto com as cascatas de coagulação em suas vias intrínseca e extrínseca (Figura 3).

Figura 3: Formação de fibrina em lesão tecidual (adaptado de Parekh et al. Am J Gastroenterol 2014) [3]

Drogas Antitrombóticas

Além das drogas antigas como a Varfarina, um antagonista da vitamina K com ação anticoagulante, e o ácido acetil salicílico (AAS), um inibidor da ciclooxigenase com efeito antiagregante plaquetário, temos novas classes de drogas que serão discutidas a seguir.

Antiagregante plaquetários: Tienopiridinas

As tienopiridinas atuam como antagonistas do receptor P2Y12, inibindo a agregação plaquetária dependente da adenosina difosfato que é liberada após a lesão endotelial, durante a hemostasia primária. As principais drogas desse grupos são Clopidogrel (Plavix), Prasugrel (Effient) e Ticagrelor (Brillinta).

Antiagregante plaquetários: Inibidores da GPIIbIIIa

Os inibidores do complexo glicoprotéico IIb/IIIa constituem classe heterogênea de fármacos capazes de bloquear a via final comum da agregação plaquetária. Para uso clínico, por via endovenosa, constituído por: Tirofiban (Aggrastat), Abciximab (ReoPro) e Eptifibatide (Integrilin).

– Anticoagulante: Varfarina e Heparinas

Apesar de possuir largo tempo de utilização e efetividade bem definida, a Varfarina (Warfarin, conhecido como Coumadin e Marevan) possui algumas desvantagens frente às novas drogas anticoagulantes que são: sua estreita janela terapêutica e margem de segurança necessitando de monitorização laboratorial frequente, inicio lento de ação, com alcance de faixa terapêutica somente após alguns dias em muitos casos, e a potencial influência da dieta e outras medicações na sua atividade.   Por outro lado, é uma droga difusamente conhecida, com potencial de reversão dos seus efeitos de modo rápido e fácil com uso de vitamina K ou mesmo plasma.

Já as heparinas interagem com a antitrombina, um anticoagulante natural que inativa os fatores IXa, Xa e XIa, aumentando o efeito deste anticoagulante em mais de 1000 vezes. Representando pela Heparina não fracionada (HNF) e as de baixo peso molecular (HBPM), devido ao seu tempo de meia-vida curto, elas são utilizadas como método de ponte: troca de anticoagulante de longa duração por curta em procedimentos de alto risco.

 – Anticoagulante: Inibidores Xa

Representando pela Rivaroxabana (Xarelto), os inibidores do fator Xa inibem competitivamente o fator X ativado e atuam da cascata como um todo, já que o fator X unifica as vias intrínseca e extrínseca da coagulação. Ao se associar com o fator Va o fator X forma um complexo chamado protrombinase que atua na transformação da protrombina em trombina. A rivaroxabana atua prevenindo a formação da protrombinase e consequentemente da trombina.

 – Anticoagulante: Inibidores diretos da Trombina

Os inibidores diretos da trombina são representados pelas drogas Bivalirudina (Angiomax) e Dabigatran (Pradaxa). A Bivalirudina é um droga utilizada principalmente em procedimentos de intervenção coronariana percutânea. Já o Dabigatran é uma droga aprovada na prevenção de isquemia cerebral em casos de fibrilação atrial não valvular e no tromboembolismo venoso.

Vide resumo da tabela abaixo com o tempo de duração dos antitrombóticos equivalente ao tempo de suspensão caso seja indicado (Tabela 1).

Tabela 1: Tempo de duração e suspensão das drogas antitrombóticas (Comissão Científica SOBED 2017-2018).

Manejo Endoscópico

Com base nos conceitos acima, a forma como iremos abordar quaisquer procedimentos endoscópicos baseiam-se na janela terapêutica: em que há menor risco de sangramento (baixo risco do procedimento ou suspensão da medicação antitrombótica) versus o risco tromboembólico (doença trombótica de base), ilustrado na Figura 4.

Figura 4: Ilustração da janela terapêutica (modificado de Huo et al., Science Bulletin, 2019) [4].

Para isso, devemos inicialmente avaliar o risco versus benefício e adiar, quando possível, os procedimentos eletivos até que a terapia antitrombótica de curto prazo seja concluída. Antes da suspensão de qualquer medicação antitrombótica, o paciente deverá realizar avaliação com seu médico prescritor quanto à suspensão das medicações e indicação do exame.

Sendo um exame indicado, o primeiro passo é seguir com estratificação de risco de sangramento do procedimento, seguido de estratificação de risco tromboembólico e conduta.

Risco de sangramento do procedimento

BAIXO Risco de Sangramento ALTO Risco de Sangramento
Procedimentos diagnósticos com ou sem biópsia Polipectomia endoscópica
CPRE com passagem de prótese biliar
ou pancreática (Sem esfincterotomia)
CPRE com esfincterotomia
Colocação de próteses esofágicas, enterais ou colônicas Ampulectomia
Ecoendoscopia diagnóstica Mucosectomia e ESD
Dilatação de estenose
Tratamento de varizes
Gastrostomia endoscópica
Ecoendoscopia com punção ou terapêutica
Ablação esofágica ou gástrica
Tabela 2: Estratificação de risco de sangramento do procedimento

Risco tromboembólico

Baixo Risco Tromboembólico Alto Risco Tromboembólico
Válvula cardíaca biológica Válvula cardíaca metálica mitral ou aórtica
Válvula cardiáca com Fibrilação Atrial
Fibrilação Atrial com Estenose Mitral
Fibrilação Atrial Sem Alto Risco (CHADS 2  ≤ 4 pontos):
* Insuficiência cardíaca (1 ponto)
* Hipertensão (1 ponto)
* Idade > 75 anos (1 ponto)
* Diabetes mellitus (1 ponto)
* AVE ou AIT (2 pontos)
Fibrilação Atrial Com Alto Risco
(CHADS 2  >4 pontos)
Fibrilação Atrial com AVE ou AIT com menos de 3 meses
TVP com mais de 3 meses de tratamento TVP com menos de 3 meses de tratamento
Tabela 3: Estratificação de risco tromboembólico

Conduta

  • Procedimentos de BAIXO Risco de Sangramento:

    • Mantém antiagregação;
    • Mantém Varfarina se dentro da faixa terapêutica, caso contrário, aguardar correção de dose com especialista;
    • Suspender outros anticoagulantes somente no dia;

  • Procedimentos de ALTO Risco de Sangramento e BAIXO Risco Tromboembólico:

    • Suspender Clopidogrel, Ticagrelol ou Prasugrel 7 dias antes e reiniciar 1 a 2 dias após procedimento, mantendo sempre o AAS;
    • Suspender anticoagulantes orais diretos (DOAC – Direct Oral AntiCoagulants: Dabigatrana, Rivaroxabana, Apixabana e Edoxabana) 3 dias antes, sendo 5 dias se doença renal com clearance de 30-50mL/min, e retomar em 2 a 3 dias após procedimento;
    • Suspender Varfarina 5 dias antes (checar se INR<1,5 antes do exame) e retomar dose usual ao fim do dia do procedimento.

  • Procedimentos de ALTO Risco de Sangramento e ALTO Risco Tromboembólico:

    • Suspender Clopidogrel, Ticagrelol ou Prasugrel 7 dias antes e reiniciar 1 a 2 dias após procedimento, mantendo sempre o AAS;
    • Suspender anticoagulantes orais diretos (DOAC – Direct Oral AntiCoagulants: Dabigatrana, Rivaroxabana, Apixabana e Edoxabana) 3 dias antes, sendo 5 dias se doença renal com clearance de 30-50mL/min, e retomar em 2 a 3 dias após procedimento;
    • Realizar ponte de anticoagulação: Suspender Varfarina 5 dias antes, com início de HBPM (Enoxaparina) 3 dias antes do procedimento, seguida de suspensão no dia do procedimento. Retomar o uso da Varfarina ao fim do dia do procedimento, mantendo a HBPM até faixa de INR terapêutica.

  • Manter AAS em todos os casos, principalmente para prevenção secundária. As exceções são: suspender imediatamente em quadro agudo de sangramento, prevenção primária que poderá ser suspensa 5 dias antes em procedimentos de alto risco de sangramento e, segundo a ESGE, suspender para ampulectomia. [1,5]
  • Em casos de alto risco trombóticos de pacientes com stent coronariano ou dúvidas do risco tromboembólico, recomenda-se avaliação do cardiologista para manejo de antiagregação e anticoagulação.

Referências:

  1. Veitch AM, Radaelli F, Alikhan R, et al. Endoscopy in patients on antiplatelet or anticoagulant therapy: British Society of Gastroenterology (BSG) and European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) guideline update. Endoscopy. 2021 Sep;53(9):947-969. doi: 10.1055/a-1547-2282. Epub 2021 Aug 6. PMID: 34359080; PMCID: PMC8390296.
  2. ASGE Standards of Practice Committee; Acosta RD, Abraham NS, et al. The management of antithrombotic agents for patients undergoing GI endoscopy. Gastrointest Endosc. 2016 Jan;83(1):3-16. doi: 10.1016/j.gie.2015.09.035. Epub 2015 Nov 24. Erratum in: Gastrointest Endosc. 2016 Mar;83(3):678. PMID: 26621548.
  3. Parekh PJ, Merrell J, Clary M, Brush JE, Johnson DA. New anticoagulants and antiplatelet agents: a primer for the clinical gastroenterologist. Am J Gastroenterol. 2014 Jan;109(1):9-19. doi: 10.1038/ajg.2013.228. PMID: 24402526.
  4. Huo Y, Jeong YH, Gong Y, et al. 2018 update of expert consensus statement on antiplatelet therapy in East Asian patients with ACS or undergoing PCI. Sci Bull (Beijing). 2019 Feb 15;64(3):166-179. doi: 10.1016/j.scib.2018.12.020. Epub 2018 Dec 28. PMID: 36659616.
  5. Biondi-Zoccai GG, Lotrionte M, Agostoni P, et al. A systematic review and meta-analysis on the hazards of discontinuing or not adhering to aspirin among 50,279 patients at risk for coronary artery disease. Eur Heart J. 2006 Nov;27(22):2667-74. doi: 10.1093/eurheartj/ehl334. Epub 2006 Oct 19. PMID: 17053008.

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Kum AST e Medrado B. Antrombóticos (Antiagregantes e Anticoagulantes): Manejo na Endoscopia. Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/antromboticos-antiagregantes-e-anticoagulantes-manejo-na-endoscopia/




Stents de aposição de lúmen nas drenagens de coleções fluidas pancreáticas e risco de sangramento – onde estamos?

Desde a introdução dos stents metálicos de aposição de lúmen (LAMS) em 2012, as aplicações e usos desses dispositivos têm crescido constantemente. Eles têm sido empregados em uma ampla variedade de procedimentos, incluindo o tratamento de estenoses gastrointestinais luminais, para cistogastrostomia e necrosectomia endoscópica direta, para drenagem da vesícula biliar e para gastrojejunostomia.

Os LAMS estão sendo cada vez mais preferidos em relação aos stents plásticos (duplo pigtail) para pacientes submetidos à drenagem ecoguiada de coleções fluidas pancreáticas (PFC) por possuírem implantação tecnicamente fácil e amplo lúmen que facilita o rápido escoamento do conteúdo do cisto, no entanto, foram relatados eventos adversos tardios, como sangramento, migração e sepultamento do stent. A maioria dos estudos que descreve tais complicações não foi prospectiva e as definições utilizadas não foram uniformes, o que limita a padronização dos eventos adversos relacionados aos LAMS. Clique aqui para rever a Classificação de Atlanta para coleções fluidas peripancreáticas.

Uma auditoria de um ensaio clínico randomizado comparando a eficácia dos LAMS com stents plásticos de duplo pigtail relatou uma taxa inesperadamente alta de sangramento grave. O estudo observou que 10 de 31 pacientes (32,2%) no braço de tratamento LAMS tiveram complicações, incluindo três episódios de sangramento tardio começando três semanas após a colocação do stent. 1 O protocolo do estudo foi alterado e foi postulado que os stents plásticos tendem a gravitar em direção ao lúmen paulatinamente enquanto os LAMS poderiam ocasionar um rápido colapso da cavidade, resultando no risco de contato entre os vasos retroperitoneais e a flange distal do stent. O atrito prolongado poderia gerar erosão e ruptura dos vasos, causando sangramento agudo grave. Considerando essa hipótese, o tempo de permanência do stent além de 4 semanas foi relatado como um preditor de sangramento tardio e formou-se consenso para remoção do mesmo antes deste prazo na prática clínica. Todavia, essa recomendação é baseada principalmente em dados de uma coorte de centro único, limitando a generalização dos resultados. 1, 2

Um estudo de coorte prospectivo com revisão sistemática sobre eventos hemorrágicos após a colocação de LAMS compilou 21 estudos envolvendo 1.378 pacientes com uma taxa de sangramento de 3,8% (52/1378), dos quais 46,2% (24/52) ocorreram na primeira semana após a colocação de LAMS. A conclusão após análise dos casos publicados foi de que o risco de sangramento estaria relacionado a fatores inerentes ao próprio procedimento ao invés do tempo de permanência do stent, inferindo que um protocolo de remoção precoce dos LAMS para PFC é eficaz em prevenir tal desfecho. 3

Em 2022 foi publicada a análise retrospectiva do maior banco de dados multicêntrico (1.018 pacientes) existente sobre o uso de LAMS para drenagem de PFC (18 unidades do Reino Unido e Irlanda), aumentando o conhecimento neste cenário. Nenhum dos fatores analisados, como tipo (WON versus pseudocisto), tamanho da coleção (≤10 cm versus >10 cm) ou tempo de remoção do stent (≤4 semanas versus 4–8 semanas versus >8 semanas), mostrou correlação com eventos adversos tardios. Esses resultados fornecem mais evidências indiretas para manutenção da LAMS in situ além de 4 semanas, caso necessário clinicamente. 4

Para mais informações de manejo pós-drenagem ecoguiada de coleções peripancreáticas: clique aqui.

O uso de LAMS para o manejo das PFC tem excelentes taxas de sucesso técnico e clínico, no entanto, o índice de eventos adversos não é desprezível e deve ser cuidadosamente considerado antes das drenagens, em particular para WON. A prorrogação da sua permanência às vezes é necessária em pacientes com necrose pancreática extensa que obtém melhora clínica discreta ao cabo de 4 semanas. Até que haja mais estudos prospectivos para elucidarem este dilema, as descobertas de um grande conjunto de dados da vida real (banco de dados multicêntrico) acrescentam-se à literatura existente sobre o manejo dos LAMS para a drenagem de PFC e apoiam seu uso estendido em pacientes onde clinicamente indicado, desde que haja supervisão estreita.

Imagens de Necrosectomia Endoscópica Direta em paciente com WON após drenagem através de LAMS

Referências

  1. Bang JY, Navaneethan U, Hasan MK, et al. Non-superiority of lumen-apposing metal stents over plastic stents for drainage of walled-off necrosis in a randomised trial. Gut. 2018;68:1200–1209.
  2. Bang JY, Hasan M, Navaneethan U, et al. Lumen-apposing metal stents (LAMS) for pancreatic fluid collection (PFC) drainage: may not be business as usual. Gut. 2017;66(12):2054–2056.
  3. Waseem Ahmad, Syed A. Fehmi, Thomas J. Savides, Gobind Anand, Michael A. Chang, Wilson T. Kwong. Protocol of early lumen apposing metal stent removal for pseudocysts and walled off necrosis avoids bleeding complications. Scand J Gastroenterol. 2020 Feb;55(2):242-247.
  4. Manu Nayar , John S Leeds , UK & Ireland LAMS Colloborative, Kofi Oppong. Lumen-apposing metal stents for drainage of pancreatic fluid collections: does timing of removal matter? Gut 2022;71:850–853.

Como citar este artigo

Ribeiro MSL. Stents de aposição de lúmen nas drenagens de coleções fluidas pancreáticas e risco de sangramento – onde estamos? Endoscopia Terapeutica 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/stents-de-aposicao-de-lumen-nas-drenagens-de-colecoes-fluidas-pancreaticas-e-risco-de-sangramento-onde-estamos/