Esfincterotomia transpancreática

A canulação biliar é etapa fundamental no sucesso da CPRE, sendo o acesso biliar difícil associado a maiores taxas de falha na CPRE e eventos adversos documentados na literatura1.

Na falha de acesso à via biliar pela técnica convencional métodos alternativos de acesso pela CPRE podem ser empregados, tais como a fístula suprapapilar, cateterização por duplo fio guia, esfincterotomia transpancreática (ETP), pré-corte e diferentes técnicas de acesso por Rendez Vous2.

A ETP, descrita por Goff em 1995 3, vem recentemente sendo discutida como importante método de acesso, nos casos de cateterização inadvertida do DPP.

A técnica consiste em, após a cateterização do ducto pancreático principal, direcionar o papilótomo para o eixo da via biliar às 11h, realizando a esfincterotomia (Figura 1).

Figura 1: ilustração da técnica de esfincterotomia transpancreática.

Na sequência é recomendada a passagem de uma prótese pancreática e em seguida procedida a cateterização da via biliar (Figura 2).

Figura 2: esfincterectomia transpancreática seguida de passagem de prótese pancreática.

Uma das vantagens potenciais do método é o acesso ser direcionado pela presença do fio guia, em contrapartida à fístula suprapapilar, podendo beneficiar endoscopistas em treinamento4.

Nos últimos anos foram realizados novos trabalhos, avaliando as taxas de sucesso da ETP, assim como a ocorrência de eventos adversos relacionados. Clique para saber mais sobre Estratégias de prevenção de pancreatite pós-CPRE.

Dois estudos retrospectivos se destacam pelas grandes amostras de pacientes submetidos à CPRE5,6. O primeiro realizou comparação entre um grupo controle cujo acesso convencional obteve sucesso, ETP, duplo fio-guia e pré-corte com estilete, as taxas de sucesso foram respectivamente 94,9% / 87,2% / 74,5% / 69.6%, não houve diferença significativa em eventos adversos entre o grupo controle e a ETP, nesta a taxa de pancreatite foi de 1,1% e a de sangramento 0,3%. O segundo trabalho citado avaliou pacientes submetidos à ETP em comparação aos com acesso biliar convencional, o sucesso técnico da ETP foi de 95,9%, a ocorrência de pancreatite nesse grupo de 2,8% e o desfecho de sangramento apresentou-se significativamente superior quando comparado ao acesso convencional (10,9%, P=0,005), atribuindo porém o risco de sangramento a tentativas prévias de acesso por pré-corte.

Em ensaio clínico randomizado multicêntrico comparando ETP e duplo fio-guia em acesso biliar difícil7, Kylänpää e colaboradores demonstraram superioridade da ETP na realização de acesso biliar (84,6 % x 69,7 %; P = 0.01), sem diferença na taxa de pancreatite (13,5 % x 16,2 %).

Por fim, a metanálise comparando as diferentes técnicas de acesso à via biliar difícil8, favoreceu a realização de ETP em relação à persistir na tentativa com técnica tradicional, duplo fio guia, pré-corte e canulação assistida por prótese pancreática para o desfecho de acesso bem sucedido à via biliar.

Com base nos trabalhos avaliados a esfincterotomia transpancreática se demonstra como método seguro e eficaz para a canulação biliar em casos de falha do acesso convencional, devendo ser uma opção no arsenal do endoscopista. É importante destacar que a seleção da técnica para o acesso biliar em caso de falha na canulação convencional deve considerar o aspecto endoscópico da papila, patologia de base, ocorrência de cateterização do DPP e a expertise do endoscopista.

Referências

  1. Testoni PA, Mariani A, Aabakken L, Arvanitakis M, Bories E, Costamagna G, Devière J, Dinis-Ribeiro M, Dumonceau JM, Giovannini M, Gyokeres T, Hafner M, Halttunen J, Hassan C, Lopes L, Papanikolaou IS, Tham TC, Tringali A, van Hooft J, Williams EJ. Papillary cannulation and sphincterotomy techniques at ERCP: European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE) Clinical Guideline. Endoscopy. 2016 Jul;48(7):657-83.
  2. Kouanda A, Bayudan A, Hussain A, Avila P, Kamal F, Hasan MK, Dai SC, Munroe C, Thiruvengadam N, Arain MA. Current state of biliary cannulation techniques during endoscopic retrograde cholangiopancreatography (ERCP): International survey study. Endosc Int Open. 2023 Jun 21;11(6):E588-E598.
  3. Goff JS. Common bile duct pre-cut sphincterotomy: transpancreatic sphincter approach. Gastrointestinal Endoscopy. 1995 41(5), 502–505.
  4. Su WC, Wang CC, Hsiao TH, Chen HD, Chen JH. The impact of transpancreatic precut sphincterotomy on the quality of ERCP in a low-volume setting. Gastrointest Endosc. 2024 May;99(5):747-755.
  5. Barakat MT, Girotra M, Huang RJ, Choudhary A, Thosani NC, Kothari S, Sethi S, Banerjee S. Goff Septotomy Is a Safe and Effective Salvage Biliary Access Technique Following Failed Cannulation at ERCP. Dig Dis Sci. 2021 Mar;66(3):866-872.
  6. Papaefthymiou A, Florou T, Koffas A, Kateri C, Pateras K, Fytsilis F, Chougias D, Bektsis T, Manolakis A, Kapsoritakis A, Potamianos S. Efficacy and safety of transpancreatic sphincterotomy in endoscopic retrograde cholangiopancreatography: a retrospective cohort study. Ann Gastroenterol. 2022 Nov-Dec;35(6):648-653.
  7. Kylänpää L, Koskensalo V, Saarela A, Ejstrud P, Udd M, Lindström O, Rainio M, Tenca A, Halttunen J, Qvigstad G, Arnelo U, Fagerström N, Hauge T, Aabakken L, Grönroos J. Transpancreatic biliary sphincterotomy versus double guidewire in difficult biliary cannulation: a randomized controlled trial. Endoscopy. 2021 Oct;53(10):1011-1019.
  8. Facciorusso A, Ramai D, Gkolfakis P, Khan SR, Papanikolaou IS, Triantafyllou K, Tringali A, Chandan S, Mohan BP, Adler DG. Comparative efficacy of different methods for difficult biliary cannulation in ERCP: systematic review and network meta-analysis. Gastrointest Endosc. 2022 Jan;95(1):60-71.e12.

Como citar este artigo

Logiudice FP. Esfincterotomia trans pancreática. Terapeutica Endoscopica, 2024 vol II. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/esfincterotomia-trans-pancreatica/




Rastreio de neoplasia pancreática em indivíduos com predisposição genética

A neoplasia pancreática apresenta habitualmente manejo desafiador, em virtude de seu comportamento biologicamente agressivo, resposta limitada às terapias oncológicas e estágio avançado da doença ao diagnóstico. A taxa reportada de sobrevida média em 5 anos é de cerca de 10% e aproximadamente 80% dos pacientes não são elegíveis à tratamento cirúrgico ao diagnóstico.  No entanto, a detecção em estágios iniciais da doença está associada a melhor sobrevida, podendo atingir 93% em 10 anos em diagnósticos no estadio 0 e até 39% em 5 anos em neoplasias estadio I.

Devido à natureza muitas vezes assintomática do câncer pancreático em estágios iniciais, a detecção precoce pode ser desafiadora e geralmente requer métodos de triagem em populações de alto risco.

Em 2022 a ASGE publicou guideline acerca das recomendações de triagem para adenocarcinoma ductal pancreático em indivíduos com susceptibilidade genética.

O guideline sugere a realização de rastreio de neoplasia pancreática em indivíduos com risco aumentado de câncer pancreático devido à suscetibilidade genética. Um total de 25 estudos foram analisados, envolvendo pacientes com síndrome de pancreatite hereditária familiar, síndrome de Peutz-Jeghers, síndrome familiar de melanoma múltiplo atípico e síndrome de Lynch, bem como aqueles com variantes patogênicas nos genes BRCA1, BRCA2, ATM e PALB2. As principais medidas avaliadas incluíram mortalidade por todas as causas, rendimento da triagem para lesões de alto risco, rendimento da triagem para lesões ressecáveis e limítrofes e danos causados pela triagem.

Um dado de destaque na análise dos estudos é que cerca de 60% das neoplasias detectadas pela triagem eram ressecáveis ou limítrofes, enquanto que na prática cotidiana, 20% dos casos sintomáticos são diagnosticados quando ressecáveis ou limítrofes, 30% em estágio localmente avançado e 50% são metastáticos.

Cabe-se ressaltar também possíveis malefícios decorrentes da realização de rastreio, notando-se que, embora no total de pacientes submetidos a rastreio a taxa de cirurgias que não evidenciaram tumores foi de 2,8%, dentre os 181 pacientes operados, 46,6% não apresentaram evidência de neoplasia na peça cirúrgica e a taxa de eventos adversos foi de 19,9%.

Quanto ao método de rastreio, o guideline sugere que tanto a realização de ecoendoscopia quanto de ressonância magnética ou a alternância entre estes métodos são estratégias viáveis.

A ecoendoscopia pode ser preferida em casos de pacientes com risco bastante aumentado para tumor de pâncreas, como na síndrome de Peutz-Jeghers e síndrome familiar de melanoma múltiplo atípico, em situações que pode ser combinada com exames de endoscopia e colonoscopia de rastreio, como nas síndromes de Lynch e Peutz-Jeghers, e em situações de contraindicação à realização de ressonância magnética. Sugere-se que sejam utilizados ecoendoscópios com probes setoriais pelo melhor rendimento diagnóstico.

Já a ressonância magnética pode ser o método de escolha em situações de risco aumentado para a sedação relacionada a procedimentos endoscópicos, em pacientes que priorizem métodos menos invasivos e na possibilidade de realização concomitante de outros exames de imagem.

A periodicidade sugerida do rastreio é anual para todos os grupos de pacientes com risco aumentado de câncer pancreático devido à suscetibilidade genética e as recomendações de idade para início do rastreio estão sumarizadas na tabela:

Variante patogênica / Síndrome Início do rastreio
BRCA2 / BRCA1 / PALB2
Heterozigotos ATM + fam. 1º/2º grau c/ neo de pâncreas
FPC (rastreio recomendado em fam. 1º grau dos afetados)
Lynch + fam. 1º/2º grau c/ neo de pâncreas
50 anos / 10 anos antes do fam. + jovem com neo de pâncreas
FAMMM 40 anos / 10 anos antes do fam. + jovem com neo de pâncreas
Peutz-Jeghers 35 anos / 10 anos antes do fam. + jovem com neo de pâncreas
Pancreatite hereditária autossômica dominante 40 anos

Referência

  1. Sawhney MS, Calderwood AH, Thosani NC, Rebbeck TR, Wani S, Canto MI, Fishman DS, Golan T, Hidalgo M, Kwon RS, Riegert-Johnson DL, Sahani DV, Stoffel EM, Vollmer CM Jr, Qumseya BJ; ASGE guideline on screening for pancreatic cancer in individuals with genetic susceptibility: summary and recommendations. Gastrointest Endosc. 2022 May;95(5):817-826. PMID: 35183358

Como citar este artigo

Logiudice FP. Rastreio de neoplasia pancreática em indivíduos com predisposição genética. Endoscopia Teraupetica 2024, vol 1. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/rastreio-de-neoplasia-pancreatica-em-individuos-com-predisposicao-genetica/




QUIZ! Caso Clínico

CASO CLÍNICO:

Paciente feminina, 76 anos, hipertensa e diabética, refere dor abdominal, sem sintomas colestáticos ou alterações laboratoriais, encaminhada por colega gastroenterologista para avaliação de alterações em exames de imagem. Nega tabagismo, etilismo ou antecedentes cirúrgicos abdominais.

Laboratório:

Hb 15,5; Ht 47%; Leuco 7.800; Plaq 244.000, INR 0,93; Amilase 73; BT 0,7; BD 0,6; FA 79; GGT 25; TGO 32; TGP 23

Colangiopancreatografia por Ressonância Magnética: 

Ectasia de vias biliares extrahepáticas e ducto pancreático principal, com colédoco de 1,8 cm, possivelmente secundária ao divertículo duodenal. Divertículo duodenal de 2,6 cm determinando impressão em colédoco distal. 

Ecoendoscopia:

Dilatação do ducto colédoco sem fator obstrutivo – janela transbulbar (ducto colédoco medindo cerca de 16 mm). Discreta dilatação do ducto pancreático principal. Vesícula com mínimas formações polipóides de 2,5 mm, sem imagens sugestivas de cálculos em seu interior.




Síndrome de Lemmel

Introdução

A incidência de divertículos duodenais é rara e varia entre 1-27%, sendo mais frequente a localização periampular (70-75%). A síndrome de Lemmel trata-se da obstrução do ducto biliar devido a ação de um divertículo duodenal periampular quando o mesmo comprime ou obstrui a via biliar, podendo ocasionar sintomas como icterícia, dor abdominal e alterações nos níveis de enzimas hepáticas na ausência de coledocolitíase (vide Figura 1). É uma condição que precisa ser considerada em casos de obstrução biliar inexplicada, especialmente em pacientes com divertículos duodenais.

Fig 1. Divertículo duodenal. Ilustração cedida pela Dra. Fernanda Prado Logiudice (SP).

Classificação

Pode ser classificada de acordo com a posição da papila em relação ao divertículo: tipo I (intradiverticular), II (peridiverticular) ou III (próximo ao divertículo). Em nosso caso foi identificada através de duodenoscopia o tipo II, conforme ilustrado na imagem abaixo (Figura 2).

Fig 2. Duodenoscopia da papila duodenal maior peridiverticular (esq).
Imagem cedida por Dr. Diego Rangel (BA) e Dra. Sâmara Martins (BA).

Sintomatologia

A maioria dos casos é assintomática e diagnosticada incidentalmente durante exames endoscópicos, mas complicações podem ocorrer em 5% dos casos, como colangite, icterícia obstrutiva, sangramento, perfuração, diverticulite, pancreatite e coledocolitíase.

Diagnóstico

Exames laboratoriais podem estar alterados, como nível de bilirrubinas e enzimas canaliculares e hepáticas, entretanto, não são determinantes para o diagnóstico da Síndrome de Lemmel, pois podem estar dentro dos níveis da normalidade. Dentre os exames de imagem, a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) demonstra-se mais abrangente, já que utiliza a endoscopia de visão lateral (duodenoscopia) para identificação do divertículo periampular e a colangiografia para avaliar a dilatação da via biliar, além de possibilitar a terapêutica. Apesar disso, os exames de tomografia computadorizada, ressonância magnética e endoscopia digestiva alta são inicialmente mais utilizados devido ao fácil acesso. Além deles, outros exames de imagem também podem ser utilizados, como exame radiológico contrastado, ultrassonografia endoscópica ou mesmo a laparoscopia. No caso em questão, a paciente já havia realizado exame de ressonância de abdome (Figura 3) e ecoendoscopia, ambos corroborando a hipótese diagnóstica.

Fig 3. Colangiorressonância demonstrando dilatação da via biliar extra-hepática e divertículo duodenal identificado pela seta.

Tratamento

O tratamento, apesar de ainda não bem estabelecido pela literatura, é baseado na sintomatologia e, portanto, sendo recomendada abordagem conservadora em pacientes assintomáticos. A esfincterotomia através de CPRE com ou sem colocação de stent pode ser uma excelente opção terapêutica para pacientes com obstrução da via biliar ou mesmo colangite. Outra opção terapêutica possível é o tratamento cirúrgico através da diverticulectomia, entretanto, com elevada morbimortalidade. No caso ilustrado (Figuras 4-6), a paciente foi tratada com esfincterotomia e esfincteroplastia com balão, seguida de drenagem da via biliar com prótese biliar plástica.

Fig 4. Imagem colangiográfica da CPRE exibindo dilatação importante da via biliar principal.
Imagem cedida por Dr. Diego Rangel (BA) e Dra. Sâmara Martins (BA).
Fig 5. Papilotomia endoscópica (esq.). Dilatação endoscópica da papila com balão (dir.).
Imagens cedidas por Dr. Diego Rangel (BA) e Dra. Sâmara Martins (BA).
Fig 6. Drenagem endoscópica da via biliar com prótese plástica: imagem endoscópica (esq.) e imagem colangiográfica (dir.). Imagens cedidas por Dr. Diego Rangel (BA) e Dra. Sâmara Martins (BA).

Referências

  1. Love JS, Yellen M, Melitas C, et al. Diagnosis and Management of Lemmel Syndrome: An Unusual Presentation and Literature Review. Case Rep Gastroenterol 2022; Dec 16;16(3):663-674. doi:10.1159/000528031.
  2. Battah A, Farouji I, DaCosta TR, et al. Lemmel’s Syndrome: A Rare Complication of Periampullary Diverticula. Cureus 2023; Mar 16;15(3):e36236. doi: 10.7759/cureus.36236.

Como citar este artigo

Martins S. e Logiudice FP. Endoscopia Terapeutica, 2024 vol I. Disponível em: https://endoscopiaterapeutica.net/pt/assuntosgerais/sindrome-de-lemmel/